«Os segundos mandatos são sempre mais difíceis». A frase é do Presidente da República, proferida enquanto caminhava a pé para a Assembleia da República, meia hora antes da posse para um novo mandato, na passada terça-feira. A declaração feita, em movimento, pode até ser uma conclusão histórica da experiência política presidencial portuguesa, mas talvez seja importante acrescentar que as dificuldades são normalmente associadas a uma maior clivagem entre Belém e São Bento, com mais dores de cabeça para o Governo e não tanto para a Presidência da República.
Marcelo Rebelo de Sousa usou a expressão «mais difíceis» com a certeza que os próximos cinco anos serão decisivos. Decisivos para o país e para o seu legado enquanto chefe de Estado. Que inaugurou um novo estilo presidencial, mas que enfrenta a mais grave crise (sanitária, social e económica) que ninguém poderia antecipar há ano e meio.
Na posse, perante uma Sala das Sessões, no Parlamento, com menos de 100 pessoas, Marcelo fez um discurso de vinte minutos onde tocou em todos os pontos nevrálgicos para o país e para o seu mandato. E fê-lo de forma equilibrada. Numa frase, por exemplo, o chefe de Estado sintetizou o que espera (e não quer) nos próximos cinco: «Queremos uma democracia que seja ética republicana na limitação dos mandatos, convergência no regime e alternativa clara na governação, estabilidade sem pântano, justiça com segurança, renovação que evite rutura, antecipação que impeça decadência, proximidade que impossibilite deslumbramento, arrogância, abuso do poder. Assegurá-lo é a primeira prioridade do Presidente da República para estes cinco anos».
De uma assentada, Marcelo avisou contra cenários de ingovernabilidade, pediu convergências e alternativas de governação. Dito de outra forma: ninguém sabe como sairá o país da crise, é preciso combater a pandemia, são necessárias convergências e o mandato de Belém vai para lá do mandato do Parlamento, logo do Governo. Por isso, Marcelo quer alternativas claras ao atual Executivo e avisou contra soluções eleitorais que tornem o país ingovernável, à esquerda ou à direita, ou seja, o tal pântano de que falava. Que não é novo na política portuguesa.
Em dezembro de 2001, na madrugada de 17 de dezembro, António Guterres, então primeiro-ministro socialista, pediu a demissão, depois de uma derrota esmagadora do PS nas autárquicas. Para evitar o «pântano» político, (Guterres fez uma leitura nacional dos resultados), o então chefe do Executivo bateu com a porta. Ora, na altura, havia uma alternativa clara.
O PSD foi a votos, venceu, apesar de ter necessitado do CDS para formar Governo. Agora, com o aumento do número de partidos à direita, o grau de incerteza aumenta sobre formações alternativas às do PS. À esquerda também não é líquido que uma nova geringonça pudesse sair vencedora ou que todos se entendessem. Acresce a tudo isto que as legislativas só estão previstas em 2023. Mas, se o calendário não se cumprir, a incerteza pode aumentar, no rescaldo das autárquicas, e um país a enfrentar uma grave crise social e económica. Ou seja, o grau de imprevisibilidade na política é grande, com preocupações também de conturbação social, após o desconfinamento.
No discurso de posse, Marcelo falou da pandemia da covid-19, mas também das pandemias social e económica. Ontem, após uma audiência na Santa Sé com o Papa Francisco, que durou bem mais do que a meia hora protocolar, o Presidente voltou a lembrar as várias pandemias. E se a crise sanitária pode ter um prazo, as pandemias social e económicas «vão durar anos», avisou Marcelo Rebelo de Sousa.
Na sua tomada de posse, Marcelo pediu um plano para reconstruir a vida das pessoas e deixou um caderno de encargos ao Governo do PS, sublinhando que não basta regressar a fevereiro de 2019, antes da pandemia. É preciso ir mais além para combater desigualdades, reconstruir o tecido empresarial, os rendimentos, os empregos, e claro, desconfinar com sensatez.
A primeira desafinação
Foi neste último ponto que surgiu o primeiro momento desalinhado com o Executivo. Os próximos meses dirão se foi a primeira de várias divergências, até porque Marcelo já reconheceu que os portugueses esperam que seja exigente.
Oficialmente foi tudo combinado e Belém e São Bento juram a pés juntos que essa concertação estratégica foi definida ao jantar na passada quinta-feira, após António Costa regressar de Bruxelas. Problema? O que transpareceu do menu do encontro não foi a sintonia, avançou o Expresso online. De facto, Marcelo queria todas as cautelas com o plano de desconfinamento e não estava seguro de que a versão final do Governo fosse a mais indicada. Mais, no Executivo as opiniões têm-se dividido sobre as várias etapas do plano. Pior, o Presidente da República quebrou a regra e não falou ao país às 20h00 como é seu hábito, após a aprovação de mais um estado de emergência, o décimo terceiro. Na prática, seria difícil fazê-lo.
Tinha voo marcado para Roma às 19 horas de quinta-feira, e o Conselho de Ministros não teria conclusões antes das 20 horas. Por isso, era «impossível» para o Presidente ter os dados todos para falar ao país em tempo útil. Mas os constrangimentos de uma viagem oficial, a primeira do novo mandato, serviram como argumento perfeito para Belém não ter de se comprometer, como tem feito, com as medidas do Executivo.
A partir de Roma, após a audiência com o Papa Francisco, Marcelo repetiu ontem por três vezes, em direto para a RTP 3, que soube do plano completo em Itália e que «fazia sentido ser o primeiro-ministro a apresentar o plano e era impossível ao Presidente estar a intervir depois disto».
Marcelo quis assinalar que a convergência estratégia é para continuar, falou de um plano positivo que «permite confirmar a convergência que tem envolvido o Presidente da República, o Parlamento e o Governo. Em segundo lugar, o plano tem a preocupação de ir até maio, o que é bom, porque não é demasiado longo, é flexível e salvaguarda uma ideia importante que é a Páscoa com confinamento». Porém, há pouco menos de um ano, quando o país começou a desconfinar, Marcelo dividiu-se com António Costa em ações a mostrar que era seguro ir a restaurantes, ir à praia, numa perfeita concertação política, para lá da institucional.
Desta vez, optou por escrever uma nota de um parágrafo a dar conta de que assinou o decreto de renovação do estado de emergência, deixou escapar, numa audiência com Rui Rio, líder do PSD ( e da oposição) que estava preocupado com o Rt ( o índice de transmissão da covid-19) e foi mais curto no preâmbulo do projeto de decreto de renovação do estado de emergência, submetido à Assembleia da República.
«Estando a situação a evoluir favoravelmente, fruto das medidas tomadas ao abrigo do estado de emergência, mas permanecendo sinais externos ainda complexos e impondo acautelar os passos a dar no futuro próximo, entende-se haver razões para o manter por mais 15 dias, nos mesmos termos da última renovação», escreveu o chefe de Estado no projeto de decreto. O Presidente já tinha dito por duas vezes que era preciso cautela com o desconfinamento. E reservou-se porque a mensagem já tinha sido clara em duas renovações do estado de emergência.
E até onde irão as renovações do estado de emergência? Marcelo não foi claro a dizê-lo. «Até maio tem que se ir vendo como vai evoluir a situação», afirmou, sem nada mais acrescentar, ou dar pistas sobre o limite de estados de emergência.
Depois, partiu para Madrid, para uma audiência com o Rei Felipe VI, cumprindo a tradição de há cinco anos com as suas primeiras deslocações a serem feitas ao Vaticano e a Espanha.
Sobre os próximos cinco anos, Marcelo já disse que a gestão dos fundos europeus deve ser feita com eficácia e transparência. E a mensagem é clara: esta é a oportunidade para recuperar o país. Talvez, por isso, Belém tenha escolhido nomes como o de Bernardo Pires de Lima (presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), como consultor, para olhar de perto a aplicação dos fundos europeus, a chamada bazuca europeia, sobre a qual ainda não há certezas absolutas sobre a data da sua chegada.
Mas há uma certeza: o plano de recuperação e resiliência, entregue em Bruxelas, termina em 2026, o ano em que Marcelo deixará Belém. Para memória futura fica uma das primeiras ideias do discurso de Marcelo no Parlamento, na sua tomada de posse: «Sou o mesmo de há cinco anos, sou o mesmo de ontem».