Precaução e pressão. Os dois fatores convergiram e a vacina da AstraZeneca está suspensa na maioria dos países europeus. Portugal fez o anúncio ao final do dia, depois de Alemanha, Itália e Espanha se terem juntado aos países que por precaução decidiram interromper a administração da vacina inglesa após serem reportados casos de tromboembolismo entre pessoas vacinadas e duas mortes.
Durante o dia a Agência Europeia do Medicamento, que está a analisar todos os casos, remeteu para quinta-feira uma posição final sobre uma possível relação de causa-efeito entre casos de tromboembolismo graves detetados entre pessoas vacinadas, reiterando no entanto que para já mantém a visão de que os benefícios da vacina são superiores aos riscos de efeitos secundários. Também a Organização Mundial da Saúde apelou aos países que prosseguissem a vacina. Em Portugal a posição do Infarmed e da Direção Geral da Saúde até domingo era também esta, uma vez que não é claro ainda se existe um problema, se será circunscrito a lotes específicos da vacina ou mais geral nem qual a sua dimensão. Numa conferência de imprensa ontem ao final do dia, o presidente do Infarmed e a diretora-geral da Saúde justificaram a decisão de interromper temporariamente a vacina com o princípio de precaução, invocando novos elementos conhecidos durante o dia. Em Portugal mantêm-se apenas notificados ao Infarmed dois casos de tromboembolismo, que as autoridades consideram no entanto “diferentes” dos que fizeram soar os alarmes lá fora, não especificando em quê. Na Europa estão reportados 37 casos de tromboembolismo, cinco graves, entre os 17 milhões que receberam a vacina da AstraZeneca. Ao anunciar a decisão, o governo alemão deu nota pública de sete casos de trombose venosa cerebral, casos graves e raros. Ainda assim, ao final do dia não tinha havido nenhuma nova posição da Agência Europeia do Medicamento nem da OMS, pelo que as decisões dos estados-membros estão a ser tomadas à revelia das posições públicas dos organismos oficiais nesta área. Algo que entre a prudência de serem necessárias investigações e esclarecimentos, especialistas ouvidos pelo i receiam que abra precedentes.
O fator de estranheza
Durante o dia, antes de ser anunciada a decisão do Infarmed e DGS, a posição dos especialistas na área do medicamento ouvidos pelo i era de que até ao momento não havia evidências para uma suspensão imediata da vacinação, aguardando-se a posição da Agência Europeia do Medicamento. Nos últimos dias também tinha sido este o parecer da Sociedade Internacional de Trombose.
João Gonçalves, professor da Faculdade de Farmácia e diretor do Instituto de Investigação do Medicamento defende que mais do que uma suspensão imediata da vacinação seria possível, por precaução, não administrar nesta fase a vacina a pessoas com maiores fatores de risco para eventos tromboembólicos, podendo avançar-se no entanto com a vacinação de pessoas saudáveis. Não desvalorizando os casos reportados, o investigador considera que o mais provável é tratar-se de um problema com alguns lotes e que a dificuldade será perceber a relação de causalidade, dado que estão a ser administrados milhões de vacinas e estas são doenças que ocorrem na população. Um fator de estranheza, aponta, é não terem sido reportados casos no Reino Unido, onde foram administradas a maioria das doses das vacinas da AstraZeneca (11 milhões em 17 milhões). É certo que é o país onde foi desenvolvida a vacina, admite, mas o sistema de farmaco-vigilância do Reino Unido é reconhecido no setor como um dos mais eficazes na Europa. “Um dos sistemas mais avançados de farmaco-vigilância está no Reino Unido, os médicos têm uma forte cultura de reporte e por isso é estranho que não sejam reportados casos. O que penso é que pode ser um problema relacionado com a produção. A AstraZeneca teve de aumentar a produção muito rapidamente e isso pode ter causado algum problema em alguns lotes”, diz João Gonçalves ao i. O investigador considera ainda que tem havido uma “sobre-atenção” em relação aos problemas da vacina da AstraZeneca, quando foram descritos casos de tromboembolismo nos ensaios de todas as vacinas. “É preciso ter calma e aguardar as conclusões”, defende, considerando um dos maiores riscos o aumento da hesitação vacinal.
Filipe Froes, pneumologista e coordenador do gabinete de crise para a covid-19 da Ordem dos Médicos defendeu também ao i que o essencial era clarificar e investigar as dúvidas com transparência, admitindo que nas reações dos países podem pesar motivações ‘extra-científicas’. “Não sei se houvesse dúvidas sobre a segurança das vacinas da Pfizer/BioNTech a Alemanha tomaria a mesma decisão que toma em relação às vacinas da AstraZeneca. É mais fácil tomar a decisão em relação a uma vacina inglesa do que a uma vacina nacional“, diz o médico, recordando que este tipo de situações já ocorreram com outras vacinas. “Se nos lembrarmos do que aconteceu nos últimos 15 anos com as vacinas, este tipo de reações adversas que levantam dúvidas sobre a vacinação verificou-se várias vezes, o que é sinal de que os sistemas de farmacovigilância funcionam, e revelaram-se sempre relações circunstanciais. Não há medicamento nenhum que esteja sujeito a um controlo de segurança tão apertado como as vacinas”, defende, recordando dúvidas em torno da segurança da vacina contra o vírus da gripe H1N1 na pandemia de 2009, de uma das vacinas do vírus do papiloma humano e num lote de uma vacina da gripe, associada a uma morte, que levou à suspensão da vacinação e aumento de internamentos e óbitos.
“Na avaliação de risco não nos podemos esquecer dos riscos de não vacinar. A suspensão da vacinação também não é isenta de riscos se as pessoas ficarem à mercê de um vírus que também lhes pode provocar problemas graves de saúde”. Em função dos dados disponíveis publicamente, o médico defendia não haver motivos para uma suspensão da vacina antes de uma clarificação da Agência Europeia do Medicamento. Já depois do anúncio, sublinhou que perante as várias posições dos países, o processo de vacinação já estava a ser perturbado, mas diz manter a sua visão. “Infelizmente já o vimos acontecer muitas vezes. Todo este ruído que se tornou paralisante só tem um vencedor: os movimentos anti-vacinas. E temo que quando isto se resolver, o dano na confiança nas vacinas nunca será completamente recuperado”.