Eutanásia ainda muito longe do fim

Os partidos que aprovaram a despenalização da eutanásia já estão a trabalhar numa nova lei, mas os constitucionalistas alertam que não será fácil ultrapassar o chumbo do Tribunal Constitucional. A mudança de juízes baralha ainda mais as contas sobre o desfecho deste processo.  

Adecisão do Tribunal Constitucional (TC) sobre a despenalização da eutanásia foi aplaudida de imediato por todos os partidos. Os que são contra viram no chumbo «um cartão vermelho» à maioria que aprovou a lei, mas os defensores da despenalização preferiram destacar que o Tribunal Constitucional disse que «a eutanásia é possível». 

A questão está longe de ser tão simples e há ainda um longo caminho a percorrer, com vários cenários em cima da mesa. A mudança de juízes no TC, nos próximos meses, poderá baralhar ainda mais o desfecho deste processo. «Há muitos cenários possíveis e uma grande embrulhada jurídica», diz o constitucionalista Paulo Otero.

Os partidos que aprovaram a eutanásia não vão desistir e já estão a preparar uma nova lei para corresponder à decisão do TC. Esse é o primeiro passo, mas alguns constitucionalistas consideram que não será uma tarefa fácil. «É um caminho extremamente trabalhoso. É a tal ideia de que é mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha do que o Parlamento conseguir definir o que é lesão grave ou extremamente grave que obtenha consenso cientifico. A grande dificuldade está precisamente no que é o consenso cientifico», afirma Paulo Otero ao Nascer do SOL. 

O professor catedrático de Direito realça que a nova lei vai voltar a Belém e o Presidente da República «não está impedido de, perante um novo conceito, devolver ao TC a pergunta se este novo conceito» viola ou não a Constituição. «Pode suceder que a emenda seja pior do que o soneto», acrescenta. 

Jorge Miranda, também ao Nascer do SOL, lembra que, «se a Assembleia da República  alterar a lei, ela ainda pode ser objeto de novo pedido de apreciação preventiva do Presidente da República». 

O Tribunal Constitucional pediu ao legislador para definir condições «claras, precisas, antecipáveis e controláveis» em que a antecipação da morte medicamente assistida é admissível.

Fausto de Quadros, também professor Catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, explica que «é necessário definir em que casos é que há uma ‘lesão definitiva de gravidade extrema’. O Tribunal exige que essa expressão seja densificada. Como muitos têm dito, não se pode indicar na lei todos os critérios para se determinar os casos em que a lesão é definitiva de gravidade extrema. É quase impossível indicar todos os casos. Por isso, vai ser quase impossível satisfazer-se na prática as exigências do Tribunal nessa matéria».

Ao Nascer do SOL, José de Melo Alexandrino também considera que a tarefa não é fácil. «Na nossa Constituição, não parece que haja fundamento para que o Estado possa ser autorizado pelo legislador (ainda que mediante luz verde concedida por alguém em sofrimento) a provocar a morte a uma pessoa», argumenta o constitucionalista. 

Vital Moreira, ex-deputado do PS, tem outra posição. No Blogue Causa Nossa, o constitucionalista escreveu que «os fundamentalistas da condenação penal da eutanásia não têm razões para festejar», porque o tribunal «não julgou inconstitucional a despenalização em si mesma». Apesar disso, Vital Moreira considera que esta decisão «vai obrigar a apertar a malha da despenalização, restringindo os casos abrangidos». 

Tribunal Constitucional pode mudar de posição 

Se a Assembleia da República voltar a aprovar a despenalização da eutanásia, nada impede Marcelo Rebelo de Sousa de enviar novamente o diploma para o Tribunal Constitucional. E, se isso acontecer, o TC não está vinculado a esta decisão. «O Tribunal não está obrigado pelo precedente quanto ao que decidiu em relação ao artigo 24º, nº 1, da Constituição, pode mudar de opinião e era mau que não pudesse. E pode mudar de opinião por várias razões: porque o pedido pode ser feito de forma diferente; porque os fundamentos podem ser apresentados  ou tratados de modo diferente; ou porque a própria composição do Tribunal mudou. Ninguém pode dizer honestamente que o Tribunal vai decidir amanhã, quanto a uma nova lei que venha eventualmente a ser aprovada na AR,  que a lei é constitucional só porque, em seu entender, ela  não viola o artigo 24, nº 1, da Constituição, independentemente do que ela venha a dispor nos outros pontos que foram postos agora em xeque neste acórdão», argumenta Fausto de Quadros. 

Na prática, o acórdão do nTC considerou que «o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias», ou seja, que a eutanásia é possível. Mas no futuro poderá assumir outra posição. Até, porque, argumentam alguns constitucionalistas, a decisão do Tribunal Constitucional, na parte sobre a inviolabilidade da vida humana, é nula. «Quando um juiz ultrapassa aquilo que lhe é pedido, nesse passo que ultrapassa, a decisão é nula», diz Paulo Otero.

Há outro fator a contribuir para a incerteza sobre o desfecho da despenalização da eutanásia. A composição do TC vai sofrer mudanças e os novos juízes podem ter uma posição diferente. Nos próximos meses, serão indicados cinco novos juízes. Quatro escolhidos pelo PSD e um pelos socialistas.

Deputados preparam nova lei 

O PS reagiu ao chumbo do Constitucional com a garantia de que vai começar a trabalhar numa nova lei. A socialista Isabel Moreira realçou que  o PS quer  «chegar a um diploma que vá ao encontro da decisão do Tribunal Constitucional».

E acrescentou que «o Tribunal disse que a eutanásia é possível» e que «não viola a Constituição». BE, PAN e IL também manifestaram o desejo de não deixar cair o processo. 

O PCP, que votou contra a despenalização, defendeu  que «é difícil encontrar uma solução legislativa compatível com a decisão do TC» e António Filipe adiantou que o PCP «não tencionam tomar nenhuma iniciativa».

O CDS considera que o TC mostrou «um enorme cartão vermelho» aos partidos que aprovaram a lei. Francisco Rodrigues dos Santos criticou a forma «leviana com que tratou uma questão tão sensível, que divide profundamente os portugueses». 

Já o PSD voltou a dividir-se. O eurodeputado Paulo Rangel considerou que a decisão do TC é uma oportunidade única para relançar o referendo, numa posição apoiada por outros membros do partido. Mas Rui Rio travou a discussão sobre uma consulta popular: «Eu, em questões de convicção, posso ficar sozinho, já fiquei algumas vezes na vida, mas não mudo. E só assim é que faz sentido estar na vida». 

* com José Miguel Pires