O ex-Presidente da República Cavaco Silva disse há uns dias que vivemos numa situação de democracia amordaçada. Rui Rio, quando lhe pediram um comentário sobre estas declarações, queixou-se de que há muitos comentadores afetos ao PS. O comentário político está refém das agendas dos partidos?
Sobre o dr. Rio e o comentário do dr. Rio, a verdade é que também há diversos líderes partidários demasiado afetos ao PS. Quanto à questão propriamente dita, há muitos anos que uma excentricidade nacional é o papel de dirigentes partidários enquanto comentadores.
É uma particularidade nossa?
Em mais nenhum país civilizado havia semelhante coisa – e se havia o país não era inteiramente civilizado. Hoje, essa bizarria mantém-se, mas com uma agravante: os políticos que fazem comentário ou são do Partido Socialista ou, a julgar pelo que dizem, podiam muito bem ser do Partido Socialista. E mesmo entre os comentadores civis a reverência ao Governo é esmagadora e, para quem não aprecia regimes do género cubano, embaraçosa.
Quase todos os políticos com ambição têm um programa de comentário. Aquela ideia de que a televisão faz os políticos é verdadeira?
É possível que sim, embora a inversa também o seja: às vezes, parece que os políticos é que fazem a televisão. Um autarca de Lisboa (Fernando Medina], por exemplo, é comentador regular de um canal. Talvez no Burundi ou na Venezuela haja casos similares. De qualquer modo, e a julgar pelo próprio Presidente da República, a televisão faz péssimos políticos.
Costuma ter reações negativas dos partidos ou de alguns políticos sobre os artigos que escreve nos jornais?
Reações diretas, que me lembre, nunca. No máximo, tive alguns telefonemas educados a esclarecer um pormenor ou outro. E já tive algumas invocações do direito de resposta, mas essas foram naturalmente públicas. O que também me aconteceu foi um ou outro político concordar comigo e mandá-lo dizer por interposta pessoa, tudo em privado. Salvo raríssimas exceções, não convivo com políticos. Deus me livre.
Disse numa entrevista que o PS controla os empresários, os outros partidos, os media… O Partido Socialista ganhou todas as eleições desde a criação da geringonça, com exceção das presidenciais em que não apresentou candidato, e continua com bons resultados nas sondagens, apesar da pandemia e da crise económica. É mérito de António Costa ou os partidos à direita do PS têm um problema?
A existirem, os méritos do dr. Costa são a ambição e a manha. E a noção de que há uma quantidade suficiente de portugueses que vive direta ou indiretamente à conta do Estado, fora os portugueses que também sonham viver assim. Em países de gente propensa à dependência, manter boa parte dessa população satisfeita ou esperançosa é o bastante para se ganhar eleições. A isto acresce a endoutrinação a cargo dos media.
E a direita…
O resto prende-se de facto com os partidos à direita do PS: dos dois partidos tradicionais, um praticamente desapareceu e o outro, aquele que sempre foi a alternativa de Governo, abdicou dessa função desde que o dr. Rui Rio manda naquilo. Não faltam exemplos da resignação do PSD a esse caráter subalterno, mas o apoio ao professor Marcelo Rebelo de Sousa nas circunstâncias atuais foi a prova definitiva.
A direita passa a vida a falar na hipótese de Passos Coelho regressar à política ativa. Isto mostra que não tem soluções entre as pessoas disponíveis?
Mostra que, para muitos eleitores que não são de esquerda, Pedro Passos Coelho é preferível às pessoas disponíveis. O que é natural.
Porquê?
Por um lado, porque Passos Coelho é competente e deu provas disso. Por outro, porque o dr. Rio é um desastre e dá provas disso. Sobre as demais pessoas disponíveis, quem são? Eu não as conheço e suspeito que a maioria dos portugueses também não. De resto, estamos numa situação tão desesperada que o regresso de Passos Coelho daqui a uns meses não devia ser apenas uma hipótese, mas uma obrigação. Porém, ele é que sabe.
Acha que a direita devia ter reagido à geringonça com uma espécie de frente não socialista?
Não sei. Sei que, logo em 2015 e 2016, a direita não deveria ter reagido como reagiu, com o CDS a teimar no caminho da irrelevância absoluta e boa parte do PSD interessadíssima em livrar-se de Pedro Passos Coelho, cuja saída de resto só pecou por tardia. É claro que hoje há o precedente dos Açores, mas não consigo ver uma frente não socialista constituída por partidos que, por exemplo, legitimam sem um pio os sucessivos estados de emergência tão convenientes ao Governo. Além do mais, tudo isto pressupõe, talvez erradamente, que o PSD e algum CDS são avessos ao socialismo. Não acho que sejam. Às vezes, nem sequer parecem avessos ao PS.
Houve uma discussão dentro do PSD, quando se colocou a questão da coligação nos Açores, sobre como é que se deve lidar com o Chega. Se a solução é conversar com André Ventura ou não existir qualquer aproximação. André Ventura já reivindicou meia dúzia de ministérios. Acha que ele ainda vai ser ministro?
É possível. E se for? Não tenho o dr. Ventura em grande conta, mas dificilmente conseguiria ser pior governante do que a quase totalidade destas criaturas que aceitam os convites do dr. Costa. A questão da extrema-direita aborrece-me tanto quanto a da extrema-esquerda. Pensando bem, aborrece-me muito menos: é que o dr. Ventura não é ministro, e diversas personagens de extrema-esquerda já o são, e outras influenciam o poder como se fossem.
Os ministros deste Governo são comparáveis a André Ventura?
Em que é o dr. Ventura é uma ameaça maior do que o dr. Pedro Nuno Santos? Para já, a extrema-esquerda é um problema. O dr. Ventura ainda não é e não sei se virá a ser.
Ficou surpreendido com os 11% de André Ventura nas eleições presidenciais?
Não. Achei que andaria perto disso.
O voto no Chega é um voto de protesto ou há mesmo quase meio milhão de pessoas que se reveem no discurso de André Ventura?
Há ali protesto, falta de alternativas e identificação com pelo menos alguns dos pontos do discurso do dr. Ventura, que aliás não se distingue pela coerência. Se 500 mil portugueses são racistas? Se calhar a estimativa é feita por baixo, não sei. Também é preciso notar, contra o pensamento oficial, que as pessoas têm direito a ser racistas, comunistas, machistas e o que quiserem. E outras pessoas têm o direito de discordar. Não se percebe a histeria com o Chega num país que banaliza partidos leninistas. Ou melhor: percebe-se muito bem.
Nas últimas eleições apareceram três novos partidos. A Iniciativa Liberal e o Chega parecem estar a crescer. As pessoas começam a estar cansadas dos partidos tradicionais como aconteceu em outros países europeus?
A Iniciativa Liberal e o Chega são partidos tradicionais, que aparecem e até certo ponto prosperam à custa da erosão do PSD e do CDS. Parece-me que são mais estes partidos que deixam fugir os votos do que a Iniciativa Liberal e o Chega os conquistam. De resto, numa altura em que o país vive o maior ataque às liberdades desde 1975, não vejo a Iniciativa Liberal e sobretudo o Chega demasiado preocupados com isso.
O que os preocupa?
A Iniciativa Liberal está preocupadíssima em demarcar-se do Chega. O Chega aflige-se com os ciganos e a nação valente imortal. Com pequenas diferenças, ambos têm sido incapazes de questionar o estado policial em que nos estamos a transformar. O Chega porque venera a força e autoridade, venham elas de onde vierem. A Iniciativa Liberal nem sei bem porquê.
Voltando à geringonça. Escreveu um livro chamado A Ameaça Vermelha. Continua a achar que foi uma golpada?
Continuo. Um partido dito democrático não deve concorrer a eleições sem de alguma forma dar sinais ao eleitorado de que está disponível para posteriormente se aliar a partidos que combatem a democracia. Para lá da artimanha utilitária e reles, era previsível que o resultado disto nunca seria a moderação dos dois partidos comunistas e sim a radicalização do PS.
Foi isso que aconteceu?
Tirando os vínculos que ainda nos ligam à União Europeia, na essência o PS atual distingue-se mal do PCP e sobretudo do Bloco de Esquerda. Também é preciso dizer que a golpada de 2015 se viu legitimada em 2019. E que essa legitimação evidentemente se alarga ao pacto açoriano com o Chega, que a esquerda achou perigosíssimo. Muitas vezes com razão, a esquerda gosta de tomar as pessoas por parvas.
Na sua opinião, o PCP e o Bloco de Esquerda não deviam de ter nenhum contacto com o poder?
Não. Isto num regime democrático, claro. Em regimes anti-democráticos, o PCP e o BE ficam muito bem na proximidade do poder ou no centro do mesmo. São, aliás, praticamente indispensáveis. Só um pormenor: eu sei que os media tratam com carinho o ‘avô’ Jerónimo e a atriz Catarina. Mas, por mais que seja pueril repeti-lo, convém não esquecer que estas duas alminhas lideram partidos totalitários e com um historial mais ou menos longo na defesa de sistemas fundados na opressão violenta. PCP e Bloco genuinamente abominam sociedades livres e indivíduos livres: são organizações que exaltam tiranias e desejam impor-nos uma. Ao caucionar estas forças radicais, o dr. Costa minou, não sei se em definitivo, a frágil democracia que tínhamos.
Se tudo correr bem vamos regressar a uma certa normalidade nos próximos meses. O BE distanciou-se do Governo, mas o PCP viabilizou o Orçamento do Estado. Esta aliança entre o PS e os partidos à sua esquerda vai resistir à crise económica ou prevê eleições antecipadas?
Antes de mais, os senhores que mandam não gostam da normalidade. Por isso falam tanto no ‘novo normal’. A banalização de situações de exceção mantém a população entretida com a covid-19 e, a prazo, ainda mais dependente de paternalismos. Tudo isto concede maior desafogo à ocupação do Estado por parte do PS e à realização das negociatas, essas sim habituais. Além disso, há a expectativa da ‘bazuca’ pela qual o PS saliva de ansiedade. Ou seja, para já o PS tem amplas razões para se agarrar ao poder, e a extrema-esquerda não tem grandes razões para se afastar dele. Sobre a crise económica provocada pelo dr. Costa: será culpa da covid. Como a crise provocada pelo eng. Sócrates foi culpa de Pedro Passos Coelho. O eleitor médio não se distingue pela perspicácia.
Vi algumas críticas, nas redes sociais, por ter escrito, numa crónica no Observador, que faz o que lhe apetece, mesmo quando o país está confinado. Não faz sentido a forma como o Governo tem gerido a pandemia?
Como se vê nos grupos de risco, em que ainda hoje há menor percentagem de velhos vacinados do que sujeitos bem mais novos, o Governo não gere pandemia nenhuma. Em qualquer matéria, por insignificante que seja, o Governo oscila entre a incompetência, a trapaça e o despotismo. Na covid-19, a dimensão do acontecimento limitou-se a ampliar, de modo diretamente proporcional, as características do Governo: inépcia, mentiras, prepotência.
Não alinha com o confinamento?
O Governo nunca soube o que fazer, mente sobre o que faz e não faz, e por fim acaba a fechar dois terços do país numa espécie de prisão domiciliária. À menor prevaricação, o cidadão leva com a Polícia em cima. Por regra, as ditaduras são obra de gente assim, que oculta a incapacidade com intrujices e pune os descrentes através do uso da força.
Já disse publicamente que votou em Marcelo Rebelo de Sousa quando ele foi eleito pela primeira vez. Pelo que escreveu e disse sobre o mandato do Presidente da República imagino que se tenha arrependido…
É evidente que sim, e também já o escrevi. Aliás, arrependi-me pouco tempo após a primeira tomada de posse. Quando votei, quase por desfastio, não alimentava grandes esperanças no homem, embora tivesse a ilusão de um ligeiro equilíbrio de poderes. Uns meses depois, vi a enorme asneira que fiz.
O que não gosta neste Presidente? É o estilo…
Se o estilo significa aquela vontade desesperada de aparecer a pretexto das mais ridículas coisas, o estilo ainda é o menos grave. As selfies, as trocas de cuecas, o salvamento de banhistas, os abraços a bonecos, as hilariantes consagrações de sucessivos portugueses melhores do mundo, tudo isso é triste, tudo isso é fado e tudo isso é o mal menor. O mal maior é a defesa cega e incondicional dos governos do dr. Costa.
Consegue encontrar alguns exemplos?
De Pedrógão a Tancos, da procuradora-geral da República ao Banco de Portugal… O professor Marcelo não se limitou a ceder ao Governo, esforçou-se por mostrar cumplicidade ou o que ele cinicamente chama ‘cooperação’. Nos arremedos de tirania despertados pela covid, o professor Marcelo, que por acaso não cumpre nada do que impõe aos cidadãos, parece ainda mais zeloso do que o próprio dr. Costa. A miséria que já temos e a miséria que está a caminho devem-lhe muito.