O Governo abriu portas e a EDP aproveitou. Em causa está a alteração do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) que entrou em vigor no Orçamento do Estado para 2020. Uma das alterações diz respeito ao alargamento da isenção de Imposto de Selo à transmissão de ‘empresas em processos de reestruturação’ e a outra alteração substitui ‘empresas’ por ‘entidades’. Ao que o Nascer do SOL apurou, estas modificações vão tornar difícil a recuperação do imposto na ordem dos 110 milhões de euros que a EDP deveria ter pago pela venda de seis barragens ao consórcio liderado pela Engie num negócio avaliado em 2,2 mil milhões de euros.
O Governo já veio garantir que «não há qualquer relação entre as alterações propostas ao artigo 60.º do EBF pelo Governo na LOE 2020 – e aprovadas pela Assembleia da República – e qualquer operação em concreto, em particular a operação de venda de barragens da EDP». Mas, ao Nascer do SOL, a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados admite que esta alienação foi «prevista com algum tempo e com um planeamento fiscal para tirar obviamente vantagens fiscais, ainda que legais», defendendo que cabe agora «averiguar se foi feito com uma intenção dolosa ou não, mesmo dentro da legalidade». Mas Paula Franco não tem dúvidas: «Houve aqui algumas situações que são de facto questionáveis. Há contornos que obviamente têm de ser questionados e estou na expectativa de ver esse desfecho, mas acho difícil que se consiga aqui eliminar ou conseguir decompor o negócio para o tornar tributável».
Também o fiscalista Tiago Caiado Guerreiro acredita que a sociedade criada pela EDP e controlada pela elétrica e que transmitiu os direitos de exploração das hidroelétricas «foi feita com a intenção de evitar o pagamento de impostos».
Recorde-se que a EDP criou a Camirengia no ano passado e esta passou a ser a entidade responsável pela transação das seis barragens à Engie. Ainda assim, o fiscalista lembra que «há uma cláusula que está prevista na lei que se chama de cláusula geral anti-abuso e que prevê o abuso de forma jurídica, isto é, em vez de ser aquilo que deveria ser que é uma compra e venda direta de barragens. Houve a constituição de uma sociedade para transmitir e evitar o pagamento desse imposto. E assim isso poderá ser corrigido pela administração fiscal com esse fundamento».
Por seu lado, Paula Franco lembra que a EDP fez uma ‘reestruturação empresarial’, isto é, fez uma cisão onde passou o negócio das barragens para outra empresa, o que está previsto nesta alteração legislativa. «Esta reestruturação empresarial dá para todo o tipo de empresas, não precisam de ser empresas em dificuldade. Qualquer empresa que queira fundir com outra ou cindir negócios para constituir novas atividades poderá fazê-lo. E foi isso que a EDP fez», lembrando que essa reestruturação nada tem a ver com o facto de as empresas terem ou não resultados positivos.
«Geralmente, onde há restrições é quando são utilizados prejuízos fiscais para eliminar lucros de outras empresas. Isso é que não é permitido. Fora isso, todas estas operações com lucros são perfeitamente normais no âmbito empresarial». E admite: «O que pode estar em causa é se havia uma concessão de utilização e quando essa concessão foi transferida para outros poderia haveria uma sujeição de imposto de selo e quando foi feito desta forma deixou de estar».
Já para Tiago Caiado Guerreiro cabe agora à administração fiscal verificar se houve algum tipo de abuso por parte da elétrica – tecnicamente, abuso de forma jurídica – e caso se verifique então a situação terá de ser corrigida e a operação será obrigada a pagar imposto de selo. Ainda assim, lembra que «quando se fazem sociedades dessas quase na véspera de concluir a operação levanta sempre dúvidas. Se essa sociedade existisse há anos seria normal. agora ser criada na véspera claramente parece-me que tenha sido essa a intenção», diz ao Nascer do SOL.
Ainda na semana passada, o presidente da EDP assegurou que a forma como foi conduzida a venda das seis barragens no rio Douro teve como pressuposto «garantir a operação das barragens sem sobressaltos, não o de fugir aos impostos».
Para Miguel Stilwell de Andrade, o imposto de selo que tem sido reclamado é um «equívoco», afastando a ideia de que a EDP tenha feito planeamento fiscal agressivo para beneficiar de «uma borla fiscal», como denunciaram já vários partidos da oposição.
Argumentos que não convencem o ex-secretário da Energia do Governo de Passos Coelho, Henriques Gomes, umas das primeiras vozes críticas em relação às rendas de energia. Em declarações ao Nascer do SOL, Henrique Gomes afirma que, ao longo dos últimos anos, pouco se fez nesta matéria. «Houve muito poucas alterações. Assistimos a algumas medidas avulso, mas voltou-se ao mesmo, não às mesmas medidas mas a novas e a outras políticas de substituição».
O ex-governante chamou a atenção para o lóbi «muito forte» neste setor e dá como exemplo o que está a assistir-se atualmente no hidrogénio. Uma situação que, no seu entender, «é absolutamente incompreensível», assim como a venda das barragens. «O que está a acontecer com a EDP e com a Engie mostra veículos que foram criados só para a concretização desse negócio. É óbvio que, quando olhamos para aquilo e com o pouco que veio a público, facilmente verificamos que as empresas nunca foram operacionais, nem nunca foram objeto de plano de reestruturação. O que se fez foi uma transação. Aquelas entidades nunca operaram enquanto novas empresas», sublinhou.
AT analisa negócio
A verdade é que esta operação levantou dúvidas junta da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), para quem só foi possível autorizar a venda das seis barragens da EDP depois de esclarecidas as dúvidas que foram «colocadas por escrito em sucessivas comunicações». Na altura, a APA considerou não estarem reunidas as condições para a realização da venda de cinco barragens na bacia do Douro e propôs que fosse solicitado parecer jurídico (parecer de 30 de julho de 2020). «Estranha-se que face ao interesse agora manifestado que [a Engie] não tenha concorrido em 2008 aos concursos internacionais, estando ciente que passando o período inicial em que vai manter alguns contratos com a EDP, que vai recorrer às várias empresas associadas à Engie, todas sediadas em França, reduzindo assim as valência locais», alertava no mesmo parecer.
É certo que ainda esta semana o ministro das Finanças garantiu que a diretora-geral da Autoridade Tributária (AT) já tem em curso uma análise à venda da concessão das barragens. «Os serviços do fisco já estão a trabalhar neste processo, preparando elementos para uma eventual liquidação de impostos devidos» afirmou João Leão no Parlamento.
A garantia surgiu depois de o Ministério Público ter anunciado que está a investigar esta alienação ao consórcio francês, podendo estar em causa «crimes de corrupção, tráfico de influências e fraude fiscal qualificada», na sequência de o BE ter denunciado um alegado esquema de «planeamento fiscal agressivo» e de o PSD ter enviado à Procuradoria-Geral da República um «pedido formal de averiguação».
Para o governante, não há dúvidas em relação à atividade do Fisco: «Não tenho nenhum indício, antes pelo contrário, de que a AT não esteja à altura das suas responsabilidades». E apontou para a «total autonomia» que a AT tem para agir neste caso. E acrescentou que o «Governo não interfere na atividade inspetiva da AT como é próprio de um Estado de Direito», acrescentando que «não se pode pronunciar sobre quaisquer operações em concreto».
Apesar de não querer falar em concreto do caso da EDP, João Leão disse que «não é aceitável para ninguém que possa haver quem não pague impostos por um qualquer subterfúgio». E acrescentou que, «se houver imposto em falta, a AT pode corrigir e fazer liquidações adicionais, sendo o Estado ressarcido do imposto em falta, a par de eventuais juros compensatórios».
Também o ministro do Ambiente garantiu que o Estado não tinha interesse em ter exercido o direito de preferência na venda das seis barragens. Matos Fernandes, que esteve a ser ouvido na mesma comissão parlamentar, afirmou que, se o tivesse feito, «teria de desembolsar à cabeça 2,2 mil milhões de euros, sem garantia de ser ressarcido de tal quantia noutro concurso de concessão».
E foi mais longe: «Que não haja a mínima dúvida. O Governo não impediu o negócio porque não quis. Porque vemos mesmo com bons olhos a diversificação dos donos das fontes de energia, neste caso renovável, que são comercializadas em Portugal».
Ainda nesta segunda-feira, o PSD entrou no Parlamento com uma proposta de revogação da atual redação do artigo 60.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais – que, obviamente, não produzirá qualquer efeito no caso em apreço.
Por coincidência, a Engie passou a integrar também o consórcio do hidrogénio em Outubro de 2020.