Anselmo Borges: “Se Jesus fosse a um curso de Cristologia não sei se perceberia de quem estão a falar”

Não se cansa de falar e escrever sobre a ‘revolução’ de Jesus e diz estar sempre pronto para debater as suas supostas heresias. Nesta Páscoa, Anselmo Borges apela a que os cristãos se interroguem: ‘Por que mataram Jesus? Quem o matou?’. Defende que a Igreja deve ser mais Evangelho e menos imperial, mudar a linguagem…

Há um ano vivemos a primeira Páscoa em confinamento. Disse-nos nessa altura que nunca tinha havido uma Semana Santa tão verdadeira, lembrando o isolamento de Jesus no calvário. Um ano depois, com que estado de espírito vive esta Páscoa?

Fez bem em invocar a Páscoa de há um ano. Aquela imagem do Papa Francisco naquela tarde de 27 de março, sozinho, a atravessar a Praça de São Pedro completamente vazia, em passo lento, parece que transportava o calvário do mundo com ele. Quando esta pandemia passar, quando passar, como passar, creio que essa imagem do Papa permanecerá. Julgo que para quem quis estar verdadeiramente atento, foi uma Páscoa muito próxima da Páscoa de Jesus e é o que podemos ter de novo neste confinamento. Páscoa significa passagem, da escravidão para liberdade, da morte à vida, uma passagem para a dignidade e para a justiça. Como nós, Jesus sentiu-se só e pediu a Deus: ‘Pai, se possível, afasta de mim este cálice!’ Rezou depois aquela oração que tantos rezaram ao longo dos séculos e que hoje, no meio deste confinamento e da solidão, alguns rezam também: ‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’. Aparentemente, Deus ficou em silêncio, não disse nada, mas Jesus continuou a confiar e disse: ‘Pai, nas Tuas mãos, entrego o Meu espírito’. A Igreja, ao celebrar a Páscoa, celebra a vida e Jesus como esperança e desafio para todos os que tentam seguir o seu caminho.

No livro A Peste de Albert Camus, que em muitos aspetos toca os dilemas de uma pandemia, há a figura do padre Paneloux, que muda o seu sermão depois de ver uma criança morrer no hospital para falar do amor de Deus como um amor difícil. Um padre ouviu também a pergunta: onde está Deus?

É uma pergunta que muita gente fez e faz ao longo do tempo. O mundo é finito e sendo finito não pode não ter mal. Seria contraditório ser um mundo finito, em que nos confrontamos com a finitude, e não haver sofrimento. Por outro lado, somos livres. E há muito mal que vem ao mundo por causa da nossa liberdade. De qualquer forma, a fé é sempre um combate. E já dizia São Tomás de Aquino: a fé convive com a dúvida. A pergunta que faço é: os não crentes debatem-se com o mesmo mal, também sofrem. Têm uma resposta melhor? O crente é aquele que, perante o sofrimento, ousa esperar com confiança. A fé é essa entrega confiada ao Deus que é mistério e que mostrou a sua solidariedade no sofrimento através de Jesus. Com isto não estou de modo nenhum a fazer o elogio do sofrimento. É preciso evitá-lo. Mas nada de grande, de valioso, se faz sem sacrifício.

Este ano a Quaresma de Francisco foi diferente, da reclusão do Vaticano para o centro do conflito no Iraque. Além do simbolismo religioso da viagem, que sinais viu nessa saída?

Foi um ato corajoso. Foi o pastor, o pai que vai animar aqueles que estão em dificuldade. Deus é pai, é mãe e o Papa quer ser imagem de Jesus. Foi ao encontro da comunidade cristã, ao encontro de um dos principais dirigentes do Islão xiita. Esteve na terra que, segundo a tradição bíblica, é a terra de Abraão, juntando as várias religiões para todos juntos combatermos a favor da justiça, da paz e da fraternidade. Mas foi um ato histórico, foi um ato de coragem. O Papa Francisco, para lá de outras qualidades, tem esta: diz que não tem medo de morrer. Quando alguém não tem medo de morrer, ou dá um terrorista, jihadista, ou um Papa Francisco, uma bondade imensa.

Um padre perde o medo de morrer?

Toda a gente à partida tem medo de morrer. Como dizia, até Jesus foi para Jardim do Getsémani e pediu ‘Pai, se é possível, afasta de mim esse cálice’. Distinguimo-nos na história da evolução de outros animais nisto, na consciência do eu, na consciência da morte. Os rituais funerários, ao longo do tempo, indicam, nas suas diferentes formas, uma esperança de que haja algo para lá da morte. É tão natural para o ser humano ter medo, horror da morte, como esperar para lá da morte. Os mártires avançaram para a morte. O que sentiram lá dentro, não sabemos. Com certeza que o Papa Francisco é humano. Recentemente até confessou que também tem as suas neuroses, ansiedade, e até que durante algum tempo foi ajudado por uma psicanalista. Portanto, é um de nós, mas tem coragem de enfrentar os perigos, como Jesus teve.

Em 2000 anos houve Páscoas muito diferentes, no meio de guerras, de fome, de outras epidemias. Que fio condutor encontra nessa viagem no tempo?

No princípio os cristãos não podiam celebrar, não havia liberdade religiosa mas faziam as suas celebrações domésticas. Dizem os Atos dos Apóstolos que os cristãos se alegravam ao partir do pão, a verdadeira eucaristia. Evidente que é importante toda a alegria e manifestações exteriores da Páscoa, que numa altura como esta, como noutros, fica limitada. Quando era miúdo ia a cruz lá a casa, havia as velas, o beijar da cruz rodeada de flores. Hoje, isso não é possível, por isso devemos ou podemos ir ao essencial. E a grande pergunta, hoje como antes, é: por que temos Páscoa? O que celebramos? A vida de Jesus que o levou à morte. Foi crucificado, assassinado. O que fez Jesus? Anunciou um Deus bom, através de palavras e de ações. Essa é a revolução. Andava com quem de modo geral ninguém anda. Andava com os pecadores, com os marginais, comia com as prostitutas. Jesus anunciou um Deus que ama todos. Foi crucificado por isso. E depois podemos perguntar: mandado matar por quem?

Pelo poder instituído.

Em primeiro lugar, pelos sacerdotes do templo, pela religião oficial. A religião oficial que oprimia em nome de Deus, que promovia sacrifícios oferecidos à divindade, como nas religiões pagãs, como se Deus precisasse de ser aplacado na sua ira. E a apesar da mensagem de Jesus, ainda temos aquela ideia de um Deus irado que, para se reconciliar com a humanidade, precisou da morte do filho. Em relação a esse Deus é preciso ser ateu.

Mas considera que há um equívoco no entendimento que os cristãos têm da Páscoa?

Não é bem um equívoco, é não se ir à essência. Na cabeça das pessoas tradicionalmente existe esta ideia de que Deus tinha um plano e mandou Jesus, que já sabia que ia morrer, pregou. Às vezes quase temos a imagem de Jesus como um robô. Que Deus precisava de enviar um filho para se reconciliar com a humanidade. Quem é o pai ou mãe que quer a morte do filho? O filho de Deus não veio ao mundo porque Deus precisava de uma reparação infinita. Não, Jesus foi crucificado como blasfemo e, em última análise, como político subversivo. Foi vítima, em primeiro lugar, dos sacerdotes do templo, que daqueles sacrifícios de pombas, cabritos, vitelos, bois, recebiam uma percentagem. Deus o que disse pela voz de Jesus foi que queria justiça e misericórdia e foi isso que o levou em primeiro lugar à cruz. Depois, foi mandado crucificar pelo representante do império, Pôncio Pilatos que, como todos os impérios, explorava os colonizados. Houve uma coligação de interesses em nome do poder que levou Jesus à cruz. Por dizer que Deus não precisa de sacrifícios, não quer escravos, não quer humilhados.

Está a contestar aquela ideia de que Jesus morre para salvar os homens dos pecados?

Quem salva é o Deus amor que ele anunciou. Parece que nos damos melhor com um Deus irado, mau. No templo, os sacerdotes ficavam com os sacrifícios. O império podia oprimir. Se Deus é bom, temos de ser bons. Se Deus é pai e mãe, temos de dar-nos como irmãos. Não houve revolução maior que este anúncio. E é o que vem no Evangelho. Um Deus bom causa muito incómodo a muita gente. 

A catequese transmite essa mensagem?

De um modo geral, creio que no subconsciente continua a haver a ideia de que se oferece o sacrífico de Jesus na cruz. Ainda li num manual de Teologia que a missa é a ‘mactatio mystica Christi’ (matação mística de Cristo). Jesus veio para nos salvar? Já estamos salvos, precisamos é de ser irmãos, não andar em patifarias, não explorar os outros. Precisamos de convertermo-nos a esse Deus de Jesus. Pelo menos tentar, porque é complicado. Leigos, padres, bispos, cónegos, monsenhores, cardeais, todos. A Igreja só existe para servir. Com Constantino, quando a Igreja se uniu ao império, em vez de anunciar o Deus bom, começou ela própria a ser um domínio com duas classes, o clero e o povo. E continuamos a ter essas duas classes, quando o que Jesus disse foi que somos todos irmãos. E vemos hoje cardeais que agora murmuram porque o Papa lhes tirou 10% do ordenado. Sabe quanto ganha um cardeal da Cúria Romana, sem impostos or causa do tratado de Latrão? 5000 euros. Todos temos de fazer este caminho, a começar por aqueles que às vezes se julgam os donos de Deus. Os donos da Eucaristia. Só assim se percebe que haja um pedido para um padre sozinho poder celebrar.

Foi um pedido feito esta semana pelo Cardeal Robert Sarah ao Papa, depois de serem proibidas este ano estas celebrações individuais na Basílica de São Pedro.

A eucaristia não pode ser privada, é comunitária. Ainda mais neste tempo, em que as celebrações ficam mais limitadas, quem é que pode tirar às comunidades cristãs o direito da celebração da Eucaristia e um padre celebrar missas individualmente? Não foi Jesus que disse, ‘onde estiverem dois ou três, Eu estarei no meio deles’?

Muitas paróquias começaram a transmitir missas online, além das que já passavam na rádio e televisão. Foi uma boa solução?

Sim, mas ainda há uns tempos uma senhora dizia-me: eu vejo, mas não posso comungar. O ideal, continuo a dizê-lo, seria as famílias poderem celebrar como se fazia nas igrejas domésticas dos primeiros anos do Cristianismo, nas suas casas. O que digo é isso mesmo: ponha um bocadinho de pão na mesa, uma gotinha de vinho e comungue, em união com todos os cristãos.

Com a pandemia houve menos participação nas celebrações, menos atividades presenciais dos diferentes grupos das paróquias. Que igreja vai sair da pandemia?

Para mim, tudo vai depender desta conversão e era algo que já vinha de trás. Que mensagem temos para entregar às pessoas? O Evangelho é uma palavra grega que significa notícia boa, felicitante. Uma notícia boa é um Deus que está comigo se eu cair, que me entende, que nos compreende a todos. Infelizmente muitas vezes fizemos do Evangelho, citando Nietzsche, um ‘disangelho’, uma notícia má. Um Deus mau, que manda pandemias, um Deus que manda matar o filho. Voltamos aí, Jesus não morreu porque Deus precisava da morte de filho para reparar a humanidade mas para dar testemunho de amor. Portanto, tudo vai depender da mensagem.

É isso que se sente a fazer quando fala da revolução de Jesus, a rescrever a catequese?

Acredito que temos de rescrever a Igreja indo aos Evangelhos, caso contrário a malta vai embora. Tenho em fila de espera 11 casamentos, 11 batismos, mas esses já estão garantidos, se não for eu a celebrar, há-de ser outro. Mas muita gente deixou de participar nas celebrações, as crianças participam menos e não há uma socialização cristã como havia. É evidente que a Igreja institucional vai-se confrontar com igrejas mais vazias do que pensava depois disto. Mas já estavam antes e isso é que deveria fazer-nos refletir.

Que mudanças gostava de ver?

É preciso renovar a Liturgia, a celebração precisa de ser habitada pela vida. Temos rituais antiquíssimos. A Missa, todo o cerimonial, vénias, é herdado da corte imperial de Bizâncio. Lá está, onde está aquela experiência cristã da Última Ceia? Ao partir o pão os cristãos alegravam-se. Quando falo da conversão, é cada um: eu acredito em quê? Porquê? E isto não é o passar a fazer o que queremos, o tanto faz, a mensagem de Jesus é muito exigente na prática. Mobiliza-nos por inteiro, põe-nos ao combate em favor dos outros. Basta ver o Papa Francisco.

Mas o que mudava nas missas? Seria haver a animação das celebrações em África, música, dança?

Não necessariamente. É preciso perguntar às pessoas, aos jovens por exemplo, que celebrações gostariam de ter. O grande mal é que quando se pensa em Igreja, na cabeça continuam a vir os padres, os bispos, o Papa. A Igreja são os cristãos todos. Perguntemos aos cristãos o que querem. Em África é de uma forma. Aqui será diferente numa celebração, numa paróquia no meio rural, numa celebração com jovens. Trabalho com casais que preparam celebrações com uma dignidade impressionante. Deixemos que os cristãos se exprimam, que façam e que levem isso para a vida social, para a vida política. Um cristão é cristão na missa, na intervenção que tem no seu quotidiano, na política, na economia. No Evangelho Deus é amor e Deus é razão, é inteligência. A vida dos cristãos deve avançar no cruzamento do amor e da inteligência.

O que faz de diferente nas suas missas?

Eu arranjei um texto e as pessoas participam e o que me dizem é: parecia que estávamos a celebrar a nossa vida. Agora isto não é para andar a escandalizar, nem agredir a tradição nem passarmos a viver ao Deus dará e fazer as coisas de forma anárquica, mas creio que deveria haver uma reflexão.

Em Portugal, vê essa reflexão hoje?

Sinto que às vezes a igreja em Portugal está anestesiada. Estou com imensa esperança no atual presidente da conferencia episcopal, D. José Ornelas, um homem muito bem preparado e com experiência internacional, mas vejo a nossa Igreja ainda muito anestesiada e se calhar a pensar que é um poder ao lado do poder do Estado. Deus é omnipotente, mas o poder segundo Jesus é só serviço. Um ministro é um servidor. A Igreja tem de estar ao serviço das pessoas e abdicar de privilégios e pseudo-privilégios para poder cumprir esse serviço. Gostava que no mundo, como tem sido com o Papa Francisco, e em Portugal, uma igreja aliviada de privilégios fosse uma voz politico-moral e capaz de apontar caminhos. O Papa Francisco tem sido essa voz global e agora precisamos de ver esse eco nas igrejas nacionais.

Uma Igreja que denuncia, como se tem visto em Cabo Delgado?

Uma Igreja viva. Não imaginamos o horror do que se passa em Cabo Delgado. Tenho lá um colega aqui do meu instituto missionário que é um verdadeiro herói. A Igreja lá é das poucas instituições que ainda se mantém perto do povo, a consolar, a ajudar, a arranjar comida. E aqui também o fazem, quantos milhares de pessoas são ajudados pela igreja. O que seria de Portugal sem essa ajuda. Sou crítico de muitas coisas, mas reconheço o esforço e sacrifício de tantos colegas e cristãos e cristãs que tanto se entregam. O que digo é que a Igreja, tendo uma voz politico-moral, seria importante para defender os mais frágeis, para ajudar um país como o nosso a sair deste rame-rame de corrupção, de desigualdades.

Vemos a Igreja com uma voz forte sobretudo nos debates sobre a vida, como esteve agora contra a eutanásia. Em que gostava de ver maior firmeza?

Evidente que é preciso uma voz firme contra a eutanásia, porque isso é servir as pessoas no seu sofrimento e não através de uma lei que oferece a morte que resolve os problemas quando os cuidados paliativos não chegam a todos, quando vivemos numa sociedade economicista. A Igreja com certeza que deve pronunciar-se contra a eutanásia, contra o aborto, mas parece que a Igreja só se pronuncia em relação ao princípio da vida e o seu final. A vida passa-se no entretanto e é sobre esse entretanto que também gostava de ver a igreja pronunciar-se de forma mais livre, lúcida e corajosa. Ser uma voz iluminante, que enfrenta interesses instalados, mas para tal precisa de se desfazer de privilégios ou pseudo-privilégios.

De que privilégios fala? Devia pagar impostos?

Tudo como os outros, e reclamar o seu lugar.  Por exemplo se ensina, e ensina, porque não haver liberdade de escolha das famílias e a Igreja recebe o valor que o Estado paga pelo ensino estatal? Há muito tempo que se fala de um cheque-ensino. As pessoas que escolham.

Falou-se do burnout dos profissionais de Saúde. Como estão os padres depois de um ano de pandemia?

Alguns terão mais dificuldades e há episcopados que garantem apoio psicológico. O próprio Papa Francisco já disse que em tempos foi apoiado por uma psicanalista por causa da ansiedade e não há que ter receio disso. Somos todos humanos e podemos pedir apoio. Vivo num seminário e nesse aspeto sou um privilegiado, temos uma quinta e conseguimos andar no meio da natureza, mas posso imaginar que há padres a passar por situações mais complicadas, porque também têm despesas e nesta altura houve menos meios de ajuda nas paróquias.  E lá está uma coisa que a Igreja deve fazer é prestar contas, porque muita gente até poderia ajudar mais, mas quer saber para onde vai o dinheiro.

Uma das polémicas ao longo dos últimos anos tem sido por exemplo o santuário de Fátima não apresentar contas regularmente. Devia fazê-lo?

Tenho dito que é preciso evangelizar Fátima. As pessoas pensam que sou contra Fátima, não sou. Até fui ordenado em Fátima. O que é preciso é perceber que Deus não precisa que as pessoas se arrastem… Compreendo o sentimento das pessoas, mas não é o Deus cristão. Fátima é um lugar onde as pessoas se sentem bem e que as ajuda. Era importante prestar contas e há 15 anos o bispo que lá estava fazia-o. 

É um admirador de Francisco. Este Domingo de Ramos, uma das mensagens do Papa foi que o ‘diabo’ está a aproveitar-se da crise para semear a desconfiança e a discórdia. Já tem falado sobre isso, que o ‘diabo’ somos mais nós. Nisso não estão em sintonia?

Temos inúmeras tentações na vida, do poder, do dinheiro. O diabo pode personificá-las. Sou professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, em Psiquiatria e Saúde Mental e hoje sabe-se um pouco mais sobre o que são os estados psicológicos. O diabo meter-se dentro de alguém… não acredito nisso. E estou à vontade porque o diabo não faz parte do credo, como o inferno não faz.

É essa a leitura que faz das palavras do Papa?

O Papa tem de usar uma linguagem que as pessoas entendam, mas se acredita no diabo como se houvesse Deus de um lado e o diabo do outro, acho que o Papa Francisco não acreditará no diabo dessa maneira. Agora digo-lhe: um dia cheguei à minha terra, a minha mãe ainda era viva e disse-me para ir ter com uma senhora, que já tinha gasto o dinheiro todo que tinha nos psiquiatras mas andava angustiada e estava convencida que era o diabo. Lá fui, andei com água para trás e para a frente e a senhora viveu mais 14 anos liberta daqueles males e eu fiquei feliz por ter ajudado. Um dia contei esta história numa conferência e houve alguém que disse: então o senhor enganou a mulher. Eu não enganei, falei a linguagem dela. Há diabo suficiente em nós, no Parlamento, nos seminários. Os primeiros tentadores somos nós próprios e por isso devemos andar atentos, rezar e ouvir neste silêncio a voz da consciência e Deus que fala connosco. Søren Kierkegaard dizia que no princípio rezava com muitas palavras. ‘À medida que a minha oração se foi tornando mais intensa, mais íntima, deixei de dizer palavras e fiquei com o silêncio. Com o tempo, nesse silêncio, passei a ouvir Deus’. É isto.

Sentiu essa mudança em si?

Eu tento ser cristão, ainda assim não sou um cristão exemplar. Gostava muito de ser. Mas apesar de tudo tentei fazê-lo e uma coisa que me dá muita alegria foi ter ajudado muitos jovens a ver a vida de uma forma mais crítica. Não sou como os gregos que pensavam que o bem vinha só da inteligência, mas a inteligência ajuda bastante. E nisso, por herança da minha mãe e do meu pai, confio na educação como chave de transformação do mundo. Uma educação holística, das ciências, humanidades e valores e aí julgo ter dado o meu contributo ao longo da minha vida de professor.

É por vezes chamado herético. Incomoda-o?

Não, quanto às minhas supostas heresias, estou sempre disposto a debates públicos. Se me disserem que não sou suficientemente cristão na minha vida, isso sim, dói-me. Quanto a ser herético, não me aflige. Refleti, tive o privilégio de ser aluno do melhor teólogo do século XX, Karl Rahner. Aceito o credo. O que lamento é que o credo continue a usar uma linguagem que hoje não é suficientemente significativa para as pessoas. Por exemplo dizer: ‘Gerado, não criado, consubstancial ao Pai’. Eu sei o que quer dizer, porque estudei Teologia, agora o que é que isto quer dizer? O que diz isto a um jovem? Aceito o credo, o que digo é que a igreja precisa de atualizar a sua linguagem. Mais: se Jesus fosse a certos cursos de Cristologia em universidades católicas não sei se saberia a quem estavam a referir-se…

O que gostava de ver Francisco fazer ainda?

Vai continuar seguramente a dar testemunho, já disse que fica em Roma e quando vir que não pode mais irá renunciar. A última reforma que ainda poderá fazer e, espero que consiga, é a reforma da Cúria Romana. Há algumas ideias, como os cardeais terem de ter alguma experiência pastoral antes de irem para Roma e não ficarem lá indefinidamente. A reforma é essencial, mas é difícil. Francisco já disse uma vez que reformar o Vaticano é como limpar a esfinge do Egito com uma escova de dentes… 

Na frente do combate aos casos abusos sexuais, em que prometeu tolerância zero, vê sinais de mudanças sustentadas?

Creio que sim. O Papa soube dar exemplo. Um bispo alemão renunciou por encobrimento, a Igreja francesa está a tomar medidas e a apoiar as vítimas, um cardeal reduzido ao estado laical por abusos sexuais. Quando prometeu tolerância zero, creio que é isso que tem vindo a ser demonstrado.

Em Portugal a Igreja tem também novas diretrizes para proteção de menores e adultos vulneráveis, que implicam formação específica e colocam a prevenção de abusos como prioridade. É um passo importante?

O que defendo há muito tempo é que toda a formação deveria mudar, que os padres deveriam ser formados na comunidade e não nos seminários, com maior presença feminina e que o celibato como lei devia acabar. O primeiro Papa era casado. Um dos problemas do clericalismo é a sacerdotalização do padre, como se o padre quando se torna sacerdote se transfigurasse de alguma maneira de tal modo que só ele pudesse consagrar, perdoar pecados. Isso não está no Evangelho. Vão dizer que sou herege, mas terão de me demonstrar onde é que está que Jesus, na Última Ceia, ordenou padres ou bispos os discípulos. Acredito que deve haver ministérios ordenados, mas não sacralizados. E então haveria padres, homens e mulheres, com mandatos. Bento XVI escreveu sobre isso antes de ser Papa: haveria o padre que continua a sua vida familiar e profissional e preside a uma comunidade e isso até pode ser por algum tempo. A primeira vez que falámos sobre isso lembro-me de me perguntar, mas padres por um ou dois anos? Por que não? Conheço aqui perto de mim uma paróquia onde há um jovem com família, professor, que faz mais pela paróquia do que alguns padres em certas paróquias. Eu se fosse bispo chegava lá e perguntava à comunidade: querem que fulano fique à frente da comunidade quatro ou cinco anos? Estou convencido que 100% diziam que sim. E depois haveria os padres que se dedicam exclusivamente e por opção até podem ser celibatários e esses seriam coordenadores, com mais responsabilidade na formação. Os seminários seriam lugares de formação específica, de preparação para serem líderes das comunidades mas já não aquele seminário para formar o sacerdote como dono do sagrado.

E em que medida isso preveniria abusos?

Li uma vez um relatório dos EUA de uma família muito católica cujos filhos foram vítimas de pedofilia pelo padre. Nesse testemunho os pais diziam: o padre entrava em nossa casa era como se fosse Deus. O padre disse às crianças que era vontade de Deus e se dissessem alguma coisa iam para o inferno. Todos somos sacerdotes pelo batismo. Não pode haver ordenações sacras.

De que tem mais saudades da vida pré-pandemia?

Tantos antigos alunos meus de Filosofia que me tinham pedido para ir às escolas deles falar aos jovens. Conferências, tudo ficou suspenso. Dos amigos com quem ia jantar, beber um bom copo de vinho, conversar. Sinto as limitações de toda a gente. Somos corpóreos. Podemos dizer olá, telefonar, mas precisamos de dar um abraço apertado. Portanto sinto saudades do vulgar.

Como viu a proposta de ser obrigatório os políticos declararem se pertencem à Maçonaria e ao Opus Dei?

Fui falar algumas vezes à Maçonaria, no tempo em que o António Reis era Grão-Mestre, e ainda antes da pandemia estive num encontro aberto em que me pediram para ir falar sobre o que a opinião pública pensa da Maçonaria. E o que disse foi sempre isso: citando o bispo do porto D. António Ferreira Gomes, o que disse foi que não percebo que numa sociedade democrática haja sociedades e grupos que se refugiam no segredo. E dava o exemplo da Maçonaria e do Opus Dei. Não percebo que se faça segredo disso.

A influência do Opus Dei em Portugal é grande?

Lá está, é secreto, não frequento. Mas julgo que já foi mais influente. O Papa já disse que o lóbi gay é mais influente. Mas repare, o que Francisco diz é que o problema é o lóbi não são os homossexuais. E falou concretamente do lóbi gay, do lóbi maçónico e do lóbi do dinheiro. O problema são os lóbis, diz o Papa Francisco, e aí estou de acordo com ele. No diabo talvez divirjamos um pouco, mas o diabo anda por aqui, também nestes lóbis.