Estar num navio é como estar numa prisão, porém com a possibilidade de se afogar», escreveu James Boswell no clássico The Life of Samuel Johnson, de 1791. Quando entrou para a Marinha em 1974, ainda com 16 anos, porque não se dava bem com os estudos, Fernando Santos não sabia até que ponto isto era verdade.
Primeiro foi destacado para um navio que esteve em Angola durante a transição para a independência e sofreu terrivelmente com o calor. Depois fez missões nos Açores e na costa nacional, onde passou «por situações muito assustadoras», como nos confidencia. «Eu tinha um medo secreto que era o navio virar-se completamente ao contrário».
Mas a verdadeira prisão foi para ele o submarino em que embarcou como aluno em 1979, para um exercício da NATO no Mar do Norte, ao largo da Escócia. «Estou encarcerado num tubo de aço, eu e mais cinquenta e oito marinheiros. Sou prisioneiro numa cave bafienta e atravancada, debaixo de temporal, navegando para uma das piores zonas no Inverno: o Mar do Norte, palco de tantas tempestades, batalhas e naufrágios», relatou n’O Peixe de Ferro.
Feito a partir de notas que tomou na altura, o livro em que conta a sua experiência na Marinha foi escrito em 2002, melhorado em 2012 e corrigido em 2020. Não se encontra à venda porque, face às condições que lhe foram propostas pelas diferentes editoras que abordou, o autor prefere oferecê-lo. Basta enviar-lhe um email a dizer «quero o livro do submarino» para o endereço fernandosantos.mte@hotmail.com. Quem assim o entender pode fazer uma contribuição em dinheiro para a sua conta.
Não é difícil o leitor gostar e entusiasmar-se com este relato vívido e sugestivo da vida no interior do submarino. «Assim que se ouve o ‘clanc’ da escotilha do convés a fechar-se sobre a minha cabeça, olho estupidamente para o teto do peixe, o submarino de guerra S-37 ‘Pátria’, como se através dele pudesse ver o céu pela última vez, mas só lá está um emaranhado de tubos, fios, cabos elétricos, caixas, botões, luzes, válvulas, manípulos e muitas outras coisas que não sei o que são nem para que servem», descreve o livro. «O ‘clanc’ da última escotilha do convés a ser fechada isola-me a partir desse momento do mundo exterior, confinando-me a um tubo de aço de 45 metros de comprimento com um único corredor da proa até à retaguarda, onde nos próximos tempos se irão acotovelar cinquenta e oito homens. Um peixe de ferro, um verdadeiro peixe de ferro, estudado para mergulhar, passar incógnito, evoluir silencioso, detetar, combater, destruir… um predador, como muitos outros peixes no oceano».
Antes de escrever este livro já tinha alguma prática de escrita? Eu tenho pouca escolaridade. Fiz o equivalente a um sétimo ano de hoje. Não queria estudar mais, era muito rebelde, e fui para a Marinha. Ainda entrei com 16 anos. A literacia é pouca.
Ninguém diria… Gostei sempre muito de ler e a gente a ler também aprende. Acho que tinha alguma habilidade, porque lembro-me de um dia no liceu o professor pedir uma espécie de redação, uma pequena história, e o meu trabalho foi o melhor. Esse professor chamou-me à parte e disse: ‘Nunca esqueças o que te vou dizer. Tu tens muito jeito para escrever’. Mas depois não estudei mais.
Que rebeldia era essa de que falou? As coisas hoje já se percebem um pouco melhor. Eu era um miúdo hiperativo, só queria era correr, saltar e nadar, subir às árvores e brincadeiras físicas. Estar concentrado e a estudar criava-me um bloqueio. E o meu pai dizia e com razão: ‘Não quer estudar e já reprovou mais de uma vez? Então tem de ir trabalhar’. E ia fazer o quê? Na altura passava aquele convite para a Marinha. Só pediam a quarta classe, eu tinha mais um bocadinho do liceu… Vou para ali.
As praxes na Marinha têm fama de ser duras… Praxes más e agressivas nunca vi. Havia era aquelas brincadeiras: esconder a farda, roubar as botas, coisas assim, sobretudo quando a gente apanhava aqueles mais verdinhos e aquela malta que vinha da província. Mas praxes duras não. E também nunca tive instrutores que fossem maus. Só havia um monitor de Educação Física que entre as várias disciplinas dava boxe. E ele gostava de bater. Acontece que às vezes apareciam uns indivíduos que vinham de bairros como a Mouraria, ou Alfama… e uns deles sabiam boxe. Um dia alguém combinou: ‘Tu é que vais para lá quando o monitor começar a chamar’. O indivíduo fez-se muito acanhado, fingiu que não queria: ‘Isso se calhar vai-me magoar’… ‘Não magoa nada! Isto é a aula’, dizia o instrutor. Então esse indivíduo deu umas batatadas valentes naquele monitor. E ele não pôde fazer nada porque aquilo era aula. Nunca mais entrou no refeitório com o refeitório cheio. [risos]
Na altura em que entrou para a Marinha a guerra já tinha acabado? O 25 de Abril dá-se entre eu fazer os testes e ser chamado. Entrei em agosto de 74 mas em 75 ainda fui chamado para ir para Angola. Algumas pessoas até se admiraram. Fiz ali dois ou três meses, até à independência.
Foram de barco para lá? Fomos de avião. Estava lá um navio vindo de Moçambique, onde já se tinha dado a independência. O navio depois seguiu para Angola, mas aquela gente já tinha muito tempo de missão e começou a protestar. ‘Moçambique já acabou e agora vimos para aqui?’. Então foi pessoal daqui para render aquela guarnição.
E qual era o vosso papel? O nosso papel era muito trabalhoso. Imagine a costa portuguesa: a gente tanto ia de Sesimbra buscar tropas como íamos de Peniche para o Porto para entregar essas tropas e trazer refugiados. Depois chegávamos ao Porto e mandavam-nos para Setúbal porque havia lá umas pessoas para ir para a capital. Depois chegávamos a Lisboa e tínhamos de ir para o Algarve… A gente batia muito a costa para trás e para a frente, para ir buscar tropas, populações, etc. A única coisa que valia era o mar ser muito plano, como se fosse um lago.
Qual era a sua função no navio? Tirei a especialidade de operador de radares, era essa função que eu fazia.
Radarista. Exatamente. Só que depois toda a gente a bordo tinha de fazer mil e uma coisas: limpar, cozinha, faxina, serviços de embarcações, tudo isso. E eu dei-me muito mal com o clima. O calor era uma coisa terrível. O navio era todo em ferro, o ar condicionado não funcionava. Em cada três noites eu dormia uma e dormia mal. Tomávamos banho e passados três minutos já estávamos todos suados, era um clima muito opressivo. No interior do navio deixavam andar em tronco nu e calções. No exterior não, tínhamos de andar fardados. Lembro-me de estarmos no refeitório a comer e o colega à frente com o suor a escorrer, até pingava – era um clima de sauna.
E nunca iam a terra? Íamos. Para o fim já havia um clima muito de cortar à faca, e diziam para a gente não ir à cidade. Até porque durante esse período assassinaram lá um capitão-tenente da Marinha com um tiro na cabeça. E depois a cidade era muito triste, tinha montes de lixo enormes, assim do tamanho de um carro, o comércio todo fechado, praticamente não havia nada.
Tipo cidade-fantasma? Quem pôde fugir veio para cá. Aliás, logo quando o avião aterrou em Luanda, o cenário que encontrei foi magotes de gente, filas para todo o lado, miúdos a berrar, pessoas com montes de malas, as mulheres a chorar, tipos à pancada alguém tinha roubado a mala ao outro… Uma confusão de todo o tamanho. E assim que cheguei a bordo houve uns colegas que se encarregaram de dizer que no dia anterior tinham feito fogo contra o navio, num patrulhamento em que o navio estava mais perto de guerra. E eu digo assim: ‘Parece que isto vai ser um bocado quente’…
Mas também foi para a Marinha à procura de alguma aventura, ou não? Não. Foi mais por estar num impasse e não saber o que iria fazer da minha vida. Só que os oito anos que passei na Marinha foram oito anos que detestei. Uma vida extremamente exigente, não sabia para o que ia. Foi o castigo por não ter estudado!
E então ficaram então até à independência de Angola? Foi um bocadinho conturbado, porque apanhou aquela fase de fugir tudo para cá, com os movimentos de independência muito perto. A 11 de novembro houve ordens para os navios de guerra se afastarem do porto por volta das oito da noite. Eram duas fragatas e uma corveta. Então à meia-noite a gente assistiu a um espetáculo fantástico. Como estávamos ao largo, vimos uma espécie de fogo-de-artifício – mas era fogo real. Uma série de projéteis tracejantes a partir de um extremo da cidade, a descrever uma meia-lua, e do outro extremo a mesma coisa. Havia ali um cruzar de fogo entre o MPLA, a UNITA e a FNLA. Depois o país mergulhou em vinte anos de guerra.
Como foi o vosso regresso a Portugal? Houve uns aventureiros que fugiram de traineira, de Angola para cá, e como o nosso comandante era o mais moderno, nós ficámos encarregados de escoltar essas traineiras. A dada altura duas delas chocaram e uma foi ao fundo, depois houve uma outra que se avariou, tivemos de fazer um reboque. Estávamos praticamente no equador, com uma temperatura terrível, e andávamos a navegar a quatro, cinco nós, que é a velocidade de um cacilheiro.
Nem dava para refrescar… Nada, nada, nada. Aportámos em Dacar, na República do Senegal. Essa traineira ficou lá, abastecemos combustível e água, e fizemos o resto do trajeto. A viagem demorou muito tempo por causa desse apoio às traineiras, mas aquela gente fez uma epopeia fantástica. Eram pescadores e não queriam perder o único sustento. E conseguiram. A passo de caracol, fazendo sempre a costa, mas chegaram cá com as traineiras.
Foi quando esteve em Angola que fez a tatuagem que tem no braço? Por acaso não foi em Angola, foi nos Açores. A minha mãe até dizia: ‘Este rapaz agora foi para a Marinha, vai-me aparecer com tatuagens… É coisa de presos’. E à época era muito feio, era muito condenável.
Então por que fez? Fiz porque havia um indivíduo que desenhava muito bem e tinha também um tubarão tatuado. Um dia ele estava a fazer uma tatuagem a outro e eu disse-lhe: ‘Se me conseguisses fazer um tubarão mais ou menos como tens eu gostava’. Então o indivíduo tatuou-me o tubarão – a parte a cheio fui eu que fiz depois, porque achei que ficava mais engraçado. Ia arranjando uma infeção enorme no braço, porque foi muito picado e inchou-me muito.
Mas ficou impecável. Ficou, porque o indivíduo realmente desenhava muito bem. E eu depois fiz as barbatanas, as guelras e preenchi esta parte. Só que eu pensava que se fazia com tinta azul, e piquei o braço todo com tinta azul e não ficou cá nada. Na altura, as tatuagens eram uma coisa de malta marginal, presos, da legião estrangeira… ou malta da Marinha. Quem ia para o Ultramar fazia muito… algumas até feiosas – às vezes até estavam um bocado bêbedos e ficava tudo mal feito. Depois começou a cair em graça e hoje em dia as pessoas fazem mil e uma tatuagens. E sinceramente não gosto de ver. A menos que seja uma coisa especial – uma pessoa que deu a volta ao mundo e fez uma grande aventura. Isto banalizou-se.
É depois dos Açores que se voluntaria para os submarinos? Isso foi uma estupidez tremenda que eu fiz. Porque depois de Angola destaquei para um navio e fui fazer uma comissão nos Açores em 76. Uma coisa terrível, aquele mar. Bolas, o que eu passei ali!
Com os enjoos? Sim, sim. Devo-lhe dizer uma coisa: na Marinha toda a gente enjoa. Pode haver um ou outro que são umas coisas excecionais, que a gente não sabe porquê, mas com mais mar ou menos mar… Porque os navios são estreitos, são feitos para andar depressa, para combater, aquilo não tem estabilidade nenhuma. E levam muita, pancada, é tudo a cair para o chão. Claro que há uns tipos mais fraquinhos: alguns estão a passar por baixo da ponte e já se estão a sentir mal. Tínhamos um cozinheiro que era assim, coitado do homem! E havia outros, como um tipo do Norte, que ainda bebia uns canecos de vinho e ‘vamos embora, se ninguém mais faz leme, eu faço’… O homem aguentava tudo. Mas a maior parte não.
Como é estar num navio no meio de uma tempestade? Passei por situações muito assustadoras e mais assustado ficava – apesar de não dar parte de fraco – quando via colegas com mais anos de mar mesmo aterrorizados. Chegou a acontecer um colega dizer: ‘A gente já não sai daqui. Eu já não volto a ver a minha mulher e os meus filhos. Isto hoje vai-se partir tudo’. Havia situações difíceis, ondas que entravam na proa e saíam na popa, tinha de ir tudo fechado, tudo a cair para o chão, mesmo que as coisas fossem bem seguras, os tripulantes a vomitar. Se a pessoa não se agarrasse bem podia cair e partir um braço ou uma perna. Eram pancadas muito fortes, vagas grandes, o navio mergulhava todo e sacudia-se por todo o lado.
Isso nos Açores? E aqui na nossa costa também. A nossa costa é má. Eu tinha um medo secreto, que era de o navio se virar completamente ao contrário. Aí é que a gente já não se safava. Como é que a gente saía com o navio virado ao contrário? Porque às vezes havia inclinações muito, muito pronunciadas. A gente na ponte de comando e a água quase chegava ali. Tinha um inclinómetro em que a gente via os graus: quase 40-45 graus. E ficava ali como quem diz: ‘Faz o resto ou não faz o resto?’. Depois virava para o outro lado e parecia que ainda inclinava mais. Apanhei alguns percalços. Uma vez até podia ter havido um naufrágio.
O que se passou? Isto foi nos Açores, talvez entre Santa Maria e São Miguel. Havia uns ilhéus que se viam com muita dificuldade, mas estavam assinalados na carta. Não sei porquê, o navio derivou um bocado da rota inicial. Havia lá um oficial que não tinha muita habilidade. Então à noite há um sargento de quarto, com muitos anos, que percebeu qualquer coisa ao longe, uma espécie de espuma. Apesar de ser radarista, eu também fazia leme – e ao leme também se percebeu qualquer coisa. E a gente chamou a atenção do oficial. Ele diz-nos: ‘No radar não está nada’. Depois foi ver à carta de navegação: ‘Há aqui uns ilhéus, isto é mais afastado’. Já estávamos a olhar uns para os outros a pensar: ‘Se ninguém fizer nada a gente vai mesmo bater naquilo’. E íamos a andar bem. Com muita calma, ele lá mandou guinar cinco graus de leme – e eu, que tinha muito prática, apetecia-me era fazer logo 10 ou 15 graus. E depois mandou-me meter mais cinco graus de leme. Quando a gente vê de lado aquela espuma efervescente… passámos mesmo muito perto. No dia seguinte, um sargento diz-me: ‘Viste o que se passou ontem? Ninguém sabe, porque estava tudo a dormir. Mas já viste o que podia ter acontecido?’. A gente batia naquilo, o navio ia com uma grande velocidade, partia-se tudo, ou explodiam os paióis das munições, era para ali uma desgraça grande.
E como se dá a sua ida para os submarinos? Isso foi uma estupidez, por causa da influência de um colega…
Que lhe disse maravilhas, não foi? Disse-me uma série de coisas: ‘Para já, a reforma é mais cedo. Depois, tem um subsídio de risco, que acrescenta ao ordenado. As promoções também são mais rápidas. E aquilo navega muito pouco. Às vezes vai a Sesimbra, faz um exercícios, quando vai para reparação está dois anos lá, em doca seca’. E eu fui influenciado por aquilo tudo.
Convenceu-se de que era só facilidades? Nunca tinha embarcado. E como namorava com uma rapariga e os pais dela não me viam com bons olhos, pensei: ‘Talvez se ganhar mais um bocadinho…’. Só que fiz muito mal em ter ido para aquilo. Muito mal mesmo. Só quando embarquei é que percebi onde me tinha metido. [risos]
Que preparação recebeu para ser submarinista? Penso que era três meses em terra, tudo aulas teóricas, a explicar muito bem como o submarino funcionava, o que eram os tanques de lastro, as tubagens todas…. Além da nossa especialidade, tínhamos de ter uma série de conhecimentos do que era o submarino. Havia dois submarinos operacionais. Os que tinham melhores notas iam para aquele que ia fazer a viagem para fora. E os outros iam no submarino que de vez em quando andava aqui na costa.
As tais idas a Sesimbra? Como eu tinha boas notas, colocaram-me no submarino que ia fazer as manobras da NATO na Escócia. Fui eu e mais três. Embarcámos como alunos, ainda na fase de estágio, e aquilo era muito pequenino…
Quando é que se apercebeu de que aquilo ia ser a sua casa durante as semanas seguintes? Logo na primeira semana de mar fui-me muito abaixo. Enjoei um bom bocado. Como o submarino, mesmo na superfície, está muito mergulhado, eu pensava: ‘Na parte que está toda mergulhada isto não deve balançar muito. Mas balançava. E como tem uma altura fora de água muito pequena, talvez um metro, basta uma pequena ondulação e começa logo a varrer aquilo. Só a torre é que escapa. A gente apanhou mau tempo e eu digo assim: ‘Isto balança imenso’. E como a pessoa nem tem sequer a perceção visual de nada, está ali dentro, com aquele cheiro…
Que cheiro é esse? Cheira a garagem, a gasóleo… Também cheira muito a mofo – aquilo é um cilindro fechado, não tem qualquer respiração. Parece que são 45 metros, mas a parte exterior do submarino é um forro, digamos assim, e entre as duas ‘camadas’ há os tais tanques de lastro. Ou seja, o submarino nem é da dimensão que a gente vê por fora, é mais pequeno lá dentro. Por isso, logo na primeira semana fui-me logo muito abaixo e pensei: ‘Não posso ficar aqui. Onde é que me vim meter? Mas que ideia foi esta?’. Eles faziam uma reunião semanal dos alunos. Aconselharam-me a estar calado: ‘Vais arranjar problemas’. Mas eu achei sempre que era melhor apostar na verdade. E nessas reuniões fui dizendo que não me ia adaptar àquilo, mas tentando não exasperar o comandante.
O comandante era compreensivo? A imagem que eu tenho é de um homem muito frio, muito disciplinado, mas humano. Porque eu nunca tive qualquer perseguição nem por ele nem por qualquer oficial. Houve umas coisinhas, umas tricas, mas com praças e com um ou dois sargentos. Ao nível dos oficiais, nada. E mais à frente até venho a saber que esse comandante fez um relatório favorável a meu respeito, que foi decisivo para a junta médica me dar como inapto.
O que dizia esse relatório? Dizia que eu, mesmo tendo força de vontade, e até querendo colaborar, demonstrava muita instabilidade, não dormia, não descansava. Era visto às três, quatro da manhã acordado quando nem sequer estava de turno.
Como é dormir no submarino? É o esquema da ‘cama quente’? Sim. Como é um espaço muito limitado, tem duas camas para cada três homens. Há um que está de quarto, quando sai de quarto acorda o colega que o rende e vai-se deitar nessa cama. Não há cá pijamas, não vale a pena, deita-se tudo vestido. Depois também não se pode usar água, porque o submarino tem uma capacidade muito limitada, a pessoa só pode fazer a sua higiene quando o submarino atraca.
Disseram-me que no submarino a pessoa roda a torneira e não sai nada. Isso não sei. Sei é que era proibidíssimo mexer na água doce. ‘Vou ali tomar um duche’ – nem pensar. ‘Vou fazer a barba’ – não, a barba faz-se em terra. A água era para cozinhar, e, se fosse peixe cozido, fazia-se com água do mar. Servia perfeitamente. A água doce era muito preservada. Quando atraca, aí sim, faz-se o abastecimento e gasta-se água para se fazer as limpezas. A navegar não, a higiene era a gente esfregar os olhos com as mãos o entrar de serviço. E eles arranjaram um sistema de camas habilidoso. Havia uns dispositivos dos torpedos que vêm para dentro do submarino, uma espécie de um ar comprimido que depois empurrava os torpedos. E então nesses dispositivos eles montavam umas pranchas em madeira, com dois andares e um colchão fininho. Os alunos dormiam ali. Então dormiam em cima dos torpedos. Sim. Só que isso era o sítio mais frio e com mais humidade. Havia sempre gotas de condensação no teto, e às tantas ninguém queria dormir na parte de cima. Houve um colega meu que se pôs a dormir debaixo da mesa para não o pisarem. Aquilo era um bocadinho difícil. Penso que a única pessoa que tinha cama própria era o comandante – e acho que o cozinheiro também, porque nunca podia deixar de fazer a comida.
O cozinheiro tem um papel fundamental na moral da tripulação, não é? E no submarino tinha umas condições péssimas. É uma copazinha pequena. Mas a comida a bordo do submarino era boa, contrariamente a outros navios onde estive. Nos submarinos era uma compensação: de facto a comida era muito boa, tudo à vontade, e até davam pequenas mordomias, como uma compotazinha, um iogurte, coisas que nos outros navios não apareciam muito.
E as casas de banho? Eram duas casas de banho para 58 homens, não eram? A gente por brincadeira chamava-lhes cabines telefónicas, porque aquilo era de facto muito estreitinho. Tinha uma sanita turca, aquele buraco no chão, em inox. Havia dois ferros para a gente se segurar se houvesse balanço, e ali é que tínhamos de fazer as necessidades. Sanita propriamente não havia. E era pouco para aquela gente toda. Às vezes se estava alguém aflito: ‘Vamos embora, toca a despachar!’.
Imagino que por estarem nesse espaço fechado e muito limitado às vezes pudessem surgir tensões, irritação entre os homens. Houve algumas coisas, não vou dizer que fossem graves, sobretudo já mais para o fim da comissão. Porque às tantas a pessoa está muito saturada e não pode com aquele espaço, está sempre a ver as mesmas pessoas. Às vezes basta um pequeno encontrão. Houve um colega a quem deixaram cair a almofada para o chão e ele fez uma fita tremenda, já queria andar à pancada porque dizia que o outro fez de propósito. Não fez nada. Nunca é bom a pessoa estar fechada com muita gente. No meu caso houve duas, três pessoas que ficaram-me com uma raivinha surda.
Porquê? Por eu dizer que não gostava daquela vida. ‘Eu estou aqui há tanto tempo e este vem agora e diz já que não quer?’.
Ao fim de cinco dias metidos ali dentro chegar ao porto deve ser uma alegria… É. Há um choque com a luz natural, porque a pessoa não está habituada.
Lá em baixo não há dia nem noite, pois não? Durante o dia acendem umas luzes fluorescentes, para simular que é dia, e à noite acendem umas luzes pequeninas vermelhas, para a pessoa tentar fazer uma distinção. Faz um bocado de mal à cabeça: a dada altura eu baralhei-me e até estava na dúvida se eram três da tarde ou três da noite, porque já nem sabia quando é que tinha estado a dormir nem quando é que ia entrar de serviço. ‘Não são três da tarde, são três da manhã. Vai-te lá deitar’.
E não dormia? Não, eu só pensava em desaparecer dali para fora. Aquilo era tudo muito desconfortável, porque a gente dormia nessas pranchazinhas – não é que os beliches fossem muito melhores… A pessoa não toma banho, vai dormir vestida, depois a barba já tem quatro ou cinco dias, faz umas comichões, depois é o colega que está a ressonar…
E o balanço? Debaixo de água não se sente nada. Nem barulho nem nada, porque vai com os motores elétricos.
E não faz alguma confusão? Se o submarino entrava em imersão, logo aos 12 metros ou aos 20 fazia-se uma ronda de estanquidade. Corria-se o navio de ponta a ponta a verificar todos os pormenores. Se fosse para os 50 metros fazia-se outra ronda, para detetar qualquer entrada de água, uma válvula estragada ou outra coisa qualquer. Mesmo assim às vezes a gente pensa: ‘Há tanta água aqui por cima. Se avaria aqui alguma coisa’. E fizemos mergulhos profundos, a duzentos e tal metros.
Quais são os sons que se ouve lá dentro? Só máquinas ou também o mar? Quando o submarino está em imersão não se ouve nada, ouve-se às vezes o sonar – aquele ‘pim —– pim —– pim’. Está ali tudo caladinho a fazer o seu trabalho, não abana para lado nenhum – pode estar a maior tempestade lá em cima que se o submarino estiver em imersão não se sente nada, está ali numa imponderabilidade. A navegar à superfície ele abana, abana muito. Deixavam subir à torre, de vez em quando, para às vezes fumar um cigarrinho, mas era muito desconfortável.
E a chegada a terra como é? Toda a gente quer é tomar um ‘granda’ banho quentinho, fazer a sua barba e depois ir beber um copo, sair, ir para um dancing, tentar arranjar uma companhia qualquer. A vida de marinha era como ter o cão preso e depois soltar o cão. ‘Vamos aí comer um bom bife com batatas, uma coisa como deve ser e ir a uma discoteca e arranjar uma miúda qualquer’, por isso é que uns iam para a prostituição. A vida era toda feita assim. A malta estava presa lá dentro…
Entre o Alfeite e a base naval de Portsmouth havia um grande contraste, não é? A nossa base ao pé daquilo era uma coisa insignificante. Depois havia a grande novidade que era mulheres na marinha, vestidinhas que pareciam umas hospedeiras – toda a gente achou aquilo muito engraçado. E tudo muito arranjadinho, muito pintadinho. O bar de praças era uma sala fantástica, com um palanque para uma banda tocar e uma bola de espelhos para fazer umas festazitas. O refeitório muito bom e os alojamentos também. As nossas instalações estavam muito velhas.
Degradadas? Em Vila Franca de Xira, as casernas eram péssimas, com vidros partidos. Os refeitórios eram péssimos, com corrente de ar e umas portas enormes em chapa a bater. Tinham uma coisa que me fartei de ver em filmes das prisões: o tabuleiro era em inox. Punham ali a comida, ficava logo fria. E muitas vezes já nem prestava para nada.
A comida era deitada diretamente para o tabuleiro? Exatamente. No submarino já havia loiça. Havia pratos, copos de vidro. Na base de Vila Franca, muitas vezes a comida não prestava para nada, e nós fazíamos a correnteza – tirávamos o pão e a peça de fruta e guardávamos – e depois havia um latão grande e a gente deitava logo ali a comida fora e entregava o tabuleiro para lavar.
Só aproveitavam o pão e a fruta. Depois comprávamos uma lata de atum ou de sardinhas e pronto. Mas atenção: havia sempre um oficial de dia que ia provar a comida e dizia: ‘Sim senhor, pode servir’. Só que faziam um prato à parte para ele. Eu às vezes não almoçava, mas à noite já estava cheio de fome, tinha de comer o que me aparecesse à frente.
Em que consistiu o exercício da NATO que foram fazer à Escócia? Era uma série de simulações de ataques a submarinos, e os submarinos a atacar os navios. Para simularem as cargas de profundidade lançavam, dos navios de superfície, uma espécie de granadas. O barulho que as granadas faziam era um bocado assustador. E eu pensava: ‘Se isto fosse a sério devia ser mesmo uma coisa dramática’. Mas os nossos submarinos eram bem pontuados nesses exercícios.
Devido ao bom desempenho da tripulação? Sim, os submarinos portugueses eram bem vistos. E devo dizer que aqueles oficiais que estão nos submarinos têm de ser mesmo bons. Têm que ter um poder de decisão muito rápido e muito certo. Eu via-os a fazer contas de consumos, de rotas, não é que os dos navios de superfície não tenham de saber, mas ali…
Há quem diga que a pessoa lá em baixo no submarino envelhece mais depressa, às vezes até vêm com mais cabelos brancos. Notou isso? É uma vida muito dura, e nem quero imaginar em situações de combate. Porque a pessoa está ali, não tem a sua higiene normal, não dá um passeio, não faz um bocadinho de desporto, está num ar viciado, fechado. Quem está nas máquinas sofre imenso por causa do calor e quase não tem espaço para se mexer. Depois o próprio stresse, a ansiedade, quem tem família pensa na família. Isso massacra muito a pessoa. Mas a vida nos navios de superfície também não é fácil. Mesmo em situações de enjoo a pessoa não se pode negar a fazer o serviço.
Manteve alguma ligação ao mar ou ganhou aversão? Não gosto de mar, sou franco. Sempre gostei foi muito de praia, de nadar na praia, e era bom nadador. Pegar num barco, isso não. Nem fazer uma viagem de barco. Para mim não tem qualquer interesse.