Aline Beuvink :”Louçã fez pouco de milhões de vítimas”

Aline de Beuvink confessa que ficou ‘perplexa’ por Francisco Louçã ter levado para a televisão um discurso que fez há quase dois anos. A deputada municipal do PPM diz que o líder do BE foi ‘desleal’ e arrasa a esquerda.

 

Fez uma intervenção na Assembleia Municipal sobre as vítimas do Estalinismo que foi muito comentada depois de Francisco Louçã a ter criticado na televisão. Em que contexto foi feito esse discurso?

Foi muito simples. O PSD propôs na Assembleia Municipal de Lisboa que os crimes do nazismo fossem equiparados ao comunismo na sequência de uma decisão do Parlamento Europeu no mesmo sentido. Obviamente, votei a favor. Podia ter falado de vários crimes do comunismo, mas escolhi um em particular que diz respeito ao Holodomor. O genocídio propositado feito por Estaline na Ucrânia, nos anos 30. Quando eu começo a falar nisto toda a ala da extrema-esquerda, principalmente o Partido Comunista, começou a rir à gargalhada. Isso não se ouve no vídeo, que circulou nas redes sociais, e talvez por isso não se entenda a minha exaltação.

Foi uma reação à postura dos deputados de esquerda?

Começaram a fazer pouco. É uma falta de respeito e principalmente falta de respeito em relação às vítimas. Se eles não acreditam é com eles, é ignorância pura, mas não podem fazer pouco de um momento histórico tão dramático. Não têm esse direito. E foi por causa da reação da extrema-esquerda que eu me exaltei.

Estamos a falar de uma intervenção feita há quase dois anos…

Exato. Em novembro de 2019. Imagine a minha perplexidade quando me telefonaram a dizer: ‘O [Francisco] Louçã está a falar de ti na televisão [no comentário semanal, na SIC]’. Eu disse: ‘A falar de mim porquê? Com tanto assunto que existe atualmente…’. Não entendo qual é o problema do Louçã em ir buscar este assunto. É um assunto que não está na ordem do dia. O Holodomor é lembrado no penúltimo domingo de novembro. Por isso é que também falei nisso naquele discurso. O vídeo é de novembro de 2019 e houve uma deputada federal brasileira [Carla Zambelli] que em janeiro de 2020 fez uma versão do meu vídeo e pôs a circular. Ele vai buscar esse vídeo a troco de quê?

Francisco Louçã disse que quis desmascarar uma mentira…

Ele ridiculariza-me a mim, mas o problema é que ele ridicularizou e fez pouco de milhões de vítimas. É claro que no fim de semana seguinte, depois de várias pessoas falarem no assunto, ele viu-se na obrigação de dizer que houve realmente crimes. Mas em tudo há um lado positivo. Este episódio, triste e infeliz, teve uma vantagem porque finalmente está a falar-se sobre determinados momentos históricos. É importante dar a conhecer a mais gente o que foi o Holodomor. A própria embaixadora da Ucrânia aproveitou para, em dois artigos publicados na comunicação social, voltar a falar do que foi o Holodomor e dar a conhecer a mais gente este momento histórico dramático.

A frase polémica do seu discurso é quando diz que é por causa desse período negro que nasce o mito com um fundo de que os comunistas comiam crianças. Há um fundo de verdade na história que os comunistas comiam crianças?

Essa é a frase que gerou esta polémica, mas penso que uma pessoa que saiba minimamente português compreende que em momento algum eu disse que os comunistas comiam crianças. Nunca disse isso e seria estúpido se o dissesse. O que disse foi que há esse mito. Durante muito tempo houve pessoas que acreditaram nisso.

Foi utilizado pelos regimes fascistas contra o comunismo…

Como é evidente. Aproveitaram-se disso. Mas em todos os mitos há um fundo de verdade. O fundo de verdade é que não comiam crianças porque lhes apetecia. O fundo de verdade é que houve canibalismo. Não houve canibalismo só na altura do Holodomor, já tinha havido antes. Há cada vez mais, agora que se abriram os arquivos, relatos desses acontecimentos. Em momento algum disse que era uma prática comum os comunistas comerem crianças. Não disse isso. Disse que a origem de inventarem essa história esteve nos momentos de canibalismo que existiram. Estava apenas a tentar explicar a razão desse mito.

Tem a convicção de que a fome foi provocada de forma intencional.

Há historiadores que têm dúvidas, mas há documentação da época, troca de documentação entre Estaline e alguns dos seus dirigentes principais, em que se percebe que aquilo é intencional. É só investigarem porque há provas inegáveis nesses documentos. Estamos a falar de um genocídio. Como muitos dizem é o Holocausto ucraniano. E, portanto, não estou a ver ninguém rir-se e fazer piadas com o Holocausto na televisão e Francisco Louçã riu-se do Holodomor como se isso fosse algo perfeitamente natural.

 Recebeu muitas mensagens depois de o vídeo ter sido transmitido na televisão?

Sim, sim… A maioria das mensagens que recebi foi a apoiar-me. Houve pessoas que consideraram aquilo indecente na medida em que ele deliberadamente cortou o meu discurso para parecer algo que não é. Muitas pessoas já tinham visto o discurso e disseram que ele foi desleal. Foi uma tentativa evidente de ridicularizar. Não percebo qual é o fetiche do dr. Louçã em querer ridicularizar uma deputada municipal de um partido pequeno. O problema dele é este partido estar agora coligado com o PSD nas eleições autárquicas? Ele saberá o que o move para tentar ridicularizar uma mulher e ser desleal e desonesto.

Se fosse um homem a fazer aquele discurso seria diferente?

Não sei se ele faria isso se fosse um homem. Já vi vários discursos de deputados de direita que foram bastante violentos, na Assembleia Municipal de Lisboa, e ele não os foi buscar. Fica essa dúvida e acho que é uma dúvida pertinente.

Os seus avós maternos fugiram da Ucrânia no período do Estaline. Deve ter ouvido muitas histórias dessa altura. A sua vida é muito marcada por esses acontecimentos?

Os meus avós maternos fugiram e sofreram muito. O meu avô fugiu com a minha avó para a Áustria. Eles não fugiram só dos soviéticos, fugiram também dos nazis. Quando o Francisco Louçã tenta colar-me à extrema-direita é desonesto. A minha família também sofreu com os nazis. O meu avô e a minha avó tiveram de mudar de nome. Tanto tenho desprezo pelo comunismo como pelo nazismo. A forma ignóbil de me tentar colar à extrema-direita é desonesta. Mas dizia-lhe que os meus avós, quando acabou a segunda guerra mundial, foram para o Brasil. A minha avó ainda está viva e mora lá. O meu pai é português.

Mas nasceu no Brasil…

Fui gerada em África. O meu pai estava em Angola e o meu irmão nasceu em Luanda. O meu pai, quando rebentou o problema da guerra, achou melhor a minha mãe ir para o Brasil para eu nascer lá. Uma coisa curiosa foi a forma como os meus pais se conheceram. Havia aquelas madrinhas de guerra. A minha mãe era muito jovem e a minha avó, que estava traumatizada com a guerra, porque passou todo aquele horror com a segunda guerra, encorajou-a a escrever. A minha mãe escreveu para um colega de camarata do meu pai, mas quando ele viu o nome dela, Ludmilla, roubou a carta e começou a corresponder-se com a minha mãe. Ele gostava muito da ópera Ruslan and Lyudmila do [Mikhail] Glinka. Foi assim que eles se conheceram. A minha vida é muito marcada pelas histórias de família com estes encontros e desencontros provocados pela guerra.

Como surgiu a ligação à política?

Sou professora universitária e o meu percurso foi todo académico até ao dia em que despertou em mim uma consciência cívica. Achei que devia participar mais ativamente naquilo que nós podemos modificar. E onde se pode modificar é na política local.

E optou pelo PPM…

Gosto de ser coerente. Sou monárquica. É verdade que há monárquicos em todos os partidos e que a monarquia é apartidária, mas achei que tinha lógica estar filiada e trabalhar no poder local com um partido que tivesse por base a minha ideologia política.

Sempre foi monárquica?

Sim. O meu avô paterno era republicano, o meu pai é monárquico. Acabei por seguir o meu pai. Também sou sportinguista como ele.

Não a incomoda que não seja escolhido pelo povo?

O Governo deve ser eleito, mas outra coisa é o chefe de Estado que deve ser alguém que é preparado para aquele lugar e está acima dos partidos.

Vê alguma possibilidade de a monarquia regressar?

Não tenho uma bola de cristal, mas é difícil combater contra mais de cem anos de campanha republicana contra a monarquia. Mesmo nos livros escolares são ditas muitas mentiras relativamente à monarquia. É muito difícil combater mais de 100 anos de publicidade republicana. A monarquia não foi perfeita e não há reis perfeitos, mas vejo mais vantagens num regime em que o chefe de Estado é um monarca.

É vice-presidente do PPM. Os valores do partido são os mesmos que eram no tempo de Gonçalo Ribeiro Telles?

Claro que sim. Os nossos valores não mudaram. Somos um partido ecologista. Não se esqueça que fomos o primeiro partido ecologista. Somos profundamente humanistas e um partido municipalista. Estas grandes bandeiras que Gonçalo Ribeiro Telles defendia continuam a estar no nosso partido. É um partido pequeno, mas tem feito muita coisa. Temos uma coligação de direita nos Açores. É quase como reviver a antiga AD [Aliança Democrática]. Essa coligação está a tentar reerguer aquela região depois das muitas desgraças provocadas pela governação do Partido Socialista. E, portanto, é um partido pequeno, mas com grandes responsabilidades.

O PPM fez uma coligação com André Ventura nas eleições europeias…

Fui desde o início contra essa coligação com o Chega. Na sua última intervenção, na sexta-feira, Francisco Louçã disse que eu defendia o Chega, mas desconhece o meu percurso porque fui contra a coligação do PPM com o Chega. Disse isso diretamente ao André Ventura, que é meu amigo pessoal e meu colega na universidade.

Já conhecia André Ventura antes dele criar o Chega?

Muito antes dele ser o André Ventura do Chega. Nessa altura, ele era militante do PSD.

Já tinha, nessa altura, esta postura e estes valores?

Não reconheço este André Ventura. O André que eu conheço era do PSD. Já lhe disse diretamente que não subscrevo estas propostas dele, principalmente estas ideias contra os direitos humanos. Fui contra a coligação entre o PPM e o Chega, porque somos um partido profundamente humanista e ele tem ideias que são contra os direitos humanos. Mas não me compete a mim traçar o perfil do André Ventura antes ou depois do Chega. O Chega não me preocupa. Se ele mudou de valores ou mudou de postura… As pessoas são livres de optarem pelos caminhos que quiserem.

Tem alguma explicação para o sucesso do Chega?

Talvez ele consiga agradar a algumas pessoas que estão descontentes. Não sou politóloga, mas continuo a ser contra uma aproximação ao Chega. Acho correto estarmos numa coligação com o PSD e com o CDS. Sempre foram os nossos parceiros de coligação.

O PPM aliou-se à coligação liderada por Carlos Moedas. Qual é a avaliação que faz da gestão de Fernando Medina?

Péssima. Não podia ser pior. É uma gestão muito má e foi desastrosa com a pandemia. Ele não tem nenhum plano de recuperação para Lisboa a seguir à pandemia. O PS coloca na mesa vários milhões e vai distribuí-los, mas não tem uma visão estratégia para recuperar Lisboa. Isto é preocupante.

Quais são os principais problemas da cidade que deviam ser discutido na campanha?

Não vejo nenhum ponto da cidade em que não haja um problema. Não está nada arrumado. Não há uma visão para recuperar a cidade. A cidade precisa de uma mudança e de uma estratégia e só Carlos Moedas tem essa visão estratégica.

Os resultados do PSD têm sido francos nos últimos atos eleitorais em Lisboa. Julga que Carlos Moedas conseguirá inverter essa situação?

Sem sombra de dúvida. É um homem competente. Ele, ao contrário do que estão a dizer, ajudou Portugal a sair de cabeça erguida daquele período da troika. Tem uma visão inovadora para a cidade e é uma pessoa que consegue congregar vários partidos. É mesmo preciso uma alternativa a uma política socialista que tem sido desastrosa.