Soube-se esta semana que os transplantes diminuíram 21% em 2020, para o número mais baixo desde 2012. São os impactos laterais da pandemia a vir à tona?
A ficar mais visíveis. Em todas as crises, e na crise financeira de 2009 foi também assim, a atividade de transplantação caiu 30%. É uma área muito sensível a qualquer perturbação nos serviços de saúde. E uma situação como esta cria uma enorme perturbação, os cuidados intensivos estiveram assoberbados, as pessoas ficaram menos disponíveis para as restantes atividades.
Falamos ainda assim de menos 185 transplantes. São vidas suspensas?
Podem ser vidas perdidas e sabemos que morreram mais pessoas à espera de transplante. Quem espera por um transplante tem um risco intrínseco de mortalidade se não chegar o órgão a tempo. A transplantação é uma oportunidade de vida irrepetível.
A resposta à pandemia levou o sistema de saúde a reorganizar-se. Agora, passado um ano, parece-lhe que em algum momento teria sido possível gerir de outra forma os efeitos nas outras áreas?
Tenho opiniões que são conhecidas sobre os males do sistema de saúde português mas, como ponto prévio, creio que não se pode esperar de nenhum Governo que possa responder a uma crise destas pensando em todas as áreas, pelo menos no imediato. Se calhar devia, mas não pode e não sei se podemos pedir contas a um Governo pela redução de atividade de transplantação. Foram cometidos erros, já havia defeitos, mas mesmo assim o sistema foi respondendo como pôde. Não penso que tenhamos feito má figura. Gostaria que tivéssemos feito mais, claro, mas a realidade é que todos os serviços foram duramente afetados para se responder à covid-19: reduziram a sua atividade em 40%, 50%; os testes de diagnóstico bronco-pulmonares foram suspensos por razões de segurança, muitas unidades receberam ordens do Ministério para fazer casos urgentes. Nós em Santa Marta mantivemo-nos muito ativos porque fomos uma unidade não-covid no centro hospitalar. Ainda conseguimos fazer 33 transplantes de pulmão, em 2019 foram 39. Só recusámos três dadores, numa altura em que tivemos um surto.
Como estão a chegar os doentes aos hospitais?
Veem-se casos piores. Os doentes torácicos aparecem com infeções da pleura por pneumonias que não foram tratadas. Os doentes de oncologia que não foram diagnosticados nos últimos meses e estão a chegar mais tarde com menor janela terapêutica, em fase mais avançada da doença.
Tumores que já não se viam?
Sim, coisas que já não estávamos a habituados a ver. Não vale a pena escamotear as palavras. Sem que isso seja culpa de ninguém em particular, deixámos avançar a doença mais do que era habitual. Uns doentes morreram, e por isso a mortalidade aumentou e temos um excesso de mortalidade que não é justificável só pela covid e, as pessoas retraíram-se de ir aos hospitais. As pessoas têm medo, são muito sensíveis a tudo o que se diz, como se diz. Não imagina a quantidade de pessoas que me ligam a perguntar se podem tomar a vacina, aquela vacina. Mesmo à beira de fazer a vacina estão a ligar com medo. Tenho de dizer: ‘Vacine-se’. Houve uma comunicação excessiva, nem sempre adequada.
Que erros aponta?
Acho que o erro maior do Governo não foi na pandemia, vai ser na recuperação. Na pandemia, a DGS, o Ministério da Saúde e o primeiro-ministro tiveram de lidar com uma realidade emergente. Claro que houve erros, o que se passou no Natal foi escandaloso. Foi transmitida uma falsa sensação de segurança à população. E isso é crítico, mesmo agora. O caminho para a solução da pandemia será a vacinação, em que infelizmente também por responsabilidade europeia temos estado bastante aquém, mas a disciplina de mantermos os cuidados à medida que retomamos a atividade.
Vê-o acontecer?
Ainda esta semana vi perto do hospital esplanadas cheias de gente. Tem de haver sensibilização. Nunca foi tão importante este equilíbrio, sendo certo que não podemos esperar mais para retomar a atividade. Estamos perante uma crise social gravíssima. Temos de perceber que para mantermos a atividade teremos de ser ultra rigorosos no cumprimento do distanciamento e medidas de proteção e ao mesmo tempo mexer-nos e avançar com a vacinação. Independentemente destas questões folclóricas da AstraZeneca – o Reino Unido vacinou-se com a vacina da AstraZeneca e tem 30% da população vacinada – o que vejo como maior problema na vacinação é a iniquidade entre o mundo pobre e o mundo rico. O mundo rico está convencido que fica imune vacinando-se… Sem ser virologista, se isto continua assim, podemos estar a criar laboratórios de variantes. Todos os países deviam estar focados em arranjar vacinas para todos já. Percebo que se queiram servir primeiro, mas é uma visão curta.
Houve a resposta aos doentes urgentes, mas em relação aos outros, parece-lhe que foi suficientemente ponderado que impacto teria suspender a atividade ou se não seria possível responder de outra forma?
É muito difícil. Como médico estou habituado a tomar decisões sobre os doentes que são decisões de vida e morte. Na transplantação durante muitos anos tive de escolher para quem era aquele órgão. Felizmente não conhecia a cara dos recetores, estavam numa lista. Mas sempre tive a noção de que ao escolher um, negava a oportunidade para outro. Não há remédio para isso: há situações, como foi esta, em que temos de administrar bens escassos. A forma de procurarmos ser justos é ter critérios. Mas opções por qualquer coisa implicam sempre perda. E essa perda, em saúde, pode ser uma vida. São sempre opções discutíveis, mas o importante é que haja critérios. Depois os critérios ajudam a tomar decisões de massa. Como disse, creio que Estaline, uma morte é uma desgraça, um milhão de mortes é estatística. O mais difícil é fazer decisões dessas com pessoas que estão a olhar para si, que conhece. Dizer àquela família não vamos tratar o seu familiar porque não tem chances para tratar o familiar de outra pessoa. E nesta fase aguda da pandemia, mesmo com todas as medidas, houve decisões dessas que tiveram de ser feitas.
E o mesmo com os doentes covid.
Com os doentes não covid fizemo-las silenciosamente, com os doentes covid ativamente. Mas fizemos certamente.
Sentiu alguma vez que devia ter operado este doente um mês mais cedo?
Com certeza, senti várias vezes. São decisões de que ninguém nos fala porque não as conseguimos explicar, não é justo. E porque uma sociedade atual de direitos, esquecemo-nos que por vezes esses direitos podem ter de vergar-se ao interesse comum.
O SNS parece que nunca deu tanto mas ao mesmo tempo fez factualmente menos consultas, menos cirurgias. Como recuperar daqui para frente?
São as diferentes crises que temos pela frente. Estamos numa crise pandémica que não acabou ainda. E vamos ver como estamos no próximo outono. Com a vacina, estaremos mais protegidos, mas vamos ter um inverno igualmente exigente. Este ano não houve tanta gripe, as máscaras impediram a transmissão, mas teremos gripe e teremos covid-19. Estou convencido que a máscara veio para ficar. Quando aos doentes não covid-19, efetivamente ficou muito por fazer. E o que ficou por fazer não é culpa do Governo, foi consequência da pandemia, agora para mim uma coisa que o Governo podia ter feito era quando chegou a maio, junho, era ter criado um programa de recuperação de listas de espera envolvendo o setor social, privado e militar.
A certa altura o que foi dito foi que os privados também não tinham mais capacidade.
Nesta última vaga o sistema no seu conjunto esgotou-se, mas houve vacilação em recorrer-se a essa utilização de todo o sistema, por questões conceptuais, por razões políticas. Os privados estavam disponíveis. Os preços negociavam-se. Não se fez foi porque o Governo é de esquerda e o país é de esquerda. O que gera sempre aqui um viés quando a doença não é de esquerda nem de direita, não tem partido nem classe social, ainda que no caso da classe social saibamos que ser pobre não dá saúde e as pessoas pobres morrem mais cedo.
A ideologia bloqueou uma maior resposta aos doentes durante a pandemia?
Não quero agarrar esse chavão, o que digo é que tem havido ao longo do tempo uma visão que não tem sido de encarar o sistema de saúde como um todo e que se tem revelado insuficiente. A saúde da nação é bem maior do que o Serviço Nacional de Saúde. Nos períodos de maior crise, o Governo podia ter feito muito pouco para manter a atividade hospitalar normal, os próprios doentes retraíram-se de ir ao hospital, mas poderia ter havido uma maior articulação na recuperação.
Ainda assim há um colega seu médico, António Ferreira, antigo presidente do São João, que escreve um artigo em que contesta essa ideia de que não se podia ter feito mais, já que a taxa de ocupação foi inferior à que se registou em 2019, nos invernos passados. Escreveu mesmo que os números põem em causa uma ‘narrativa oficial’.
Vimos imagens das urgências do Santa Maria, filas de ambulância, vimos o sistema a rebentar pelas costuras. E não nos podemos esquecer que houve pessoal que teve de ficar com os filhos, que se infetou, que ficou em isolamento, tudo isto causa imensas dificuldades nos serviços. É preciso ter em conta todo esse contexto.
Não viu em nenhum momento desperdício da capacidade hospitalar?
No auge da crise não acredito, agora depende do que se está a falar. É preciso ter presente que o SNS já tem um desperdício de 25%, é a OCDE que o diz. 25% do que gasta não serve para nada. Mas isto já era um problema que existia.
Fala de desperdício quando não se usa os blocos em pleno à tarde, quando se convoca doentes e não há material ou pessoal para operar naquele dia?
Desperdício por erros de gestão, ineficiência de produção, na ocupação do tempo disponível. Dou-lhe um exemplo simples: não estou a usar as salas de operação todas que tenho porque não tenho pessoal suficiente. Portanto se me pergunta se houve desperdício, já havia. Agora que não tenha havido saturação da capacidade… é evidente que houve. Este serviço de saúde que tem boa fama mas já tinha problemas de gestão, de organização e financiamento foi o serviço de saúde que de repente foi confrontado com esta crise. Não acho que se pudesse ter pedido mais aos hospitais. E sendo um crítico acérrimo de muito do que se passa no país e na Saúde, tenho dificuldade em criticar as pessoas que estiveram na ponta da ação.
Fala da ministra da Saúde, da diretora-geral da Saúde?
Sim. Já disse que a certa altura achei que a DGS tinha demasiada dependência política e sinto que a política tentou controlar órgãos que deviam ser técnicos, que os cientistas não foram sempre ouvidos, mas a ciência nem sempre foi coerente. Faltou um gabinete de crise organizado, uma conceção da crise e como lhe dar resposta de uma forma ágil. E vemos por exemplo na vacinação a necessidade que a certa altura há de pôr um militar à frente, um homem que faz questão de usar o uniforme.
Já disse que é por estar em guerra.
E é um sinal, é mesmo assim. No hospital, quando as coisas se complicam visto o pijama do bloco. Nunca achei que as reuniões do Infarmed naquele modelo fossem um cenário compatível com o que se exige num contexto de crise. Não tenho dúvidas de que quem nos dirigiu se empenhou em dar o melhor. Agora houve excesso de show mediático, excesso de política e depois, no Natal, laxismo e uma falsa sensação de segurança que resultou num número de mortes sem precedentes. Estes são os pecados que aponto, mas ser treinador de bancada é muito fácil. Em relação aos outros doentes, julgo que no verão do ano passado o Ministério da Saúde poderia ter pensado que seria altura de chamar os outros setores para ajudar a recuperar listas de espera, mas não o fez. E isso na minha opinião foi outro erro.
A opção foi por contratar produção adicional nos hospitais, que há quem diga que também é outro negócio…
A produção adicional dos hospitais é algo que custa muito caro ao Estado e na situação em que o SNS está neste momento é fustigar um cavalo cansado. As pessoas estão exaustas.
Mas esta ideia da produção adicional não acaba por ser um remendo que serve mais para compensar os profissionais de saúde por salários baixos do que para resolver os problemas das listas de espera?
A produção adicional existe cá como existe noutros países. Para mim é a demonstração cabal de que o sistema regular não é suficiente para as necessidades dos doentes. Quando se aceita que o Estado pague 25 euros à hora a um funcionário em horário normal e pague 150 para operar à tarde, a pergunta que se faz é: não valeria a pena empregar esse funcionário a full-time e dar-lhe condições de trabalho para operar no emprego regular? Porque é que não separamos o setor público e privado?
Porquê?
Provavelmente porque o Estado não está disposto a pagar mais.
Mas paga a produção adicional. Os médicos estariam disponíveis a ficar no SNS ou querem a flexibilidade de poderem também trabalhar no privado?
Depende do investimento que se faça no SNS, das condições, das carreiras. E é aí que começa o problema. Gastamos 9,9% do nosso Produto Interno Bruto em Saúde mas 27,5% dessa despesa é o que é pago diretamente pelas famílias do seu bolso quando vão por exemplo ao privado.
Uma das maiores cargas de pagamentos diretos a nível europeu.
Sim, a média anda nos 15%. Portugal gasta com Saúde 2000 e tal euros per capita, na média europeia são 3 mil e na Alemanha 4 mil. Financiamos a Saúde a um terço mais barato que a média europeia, temos salários médicos muito baixos, temos falta de enfermeiros, temos um sistema muito desbalanceado que não consegue totalmente dar resposta.
As listas de espera, resultando da insuficiência de capacidade, são uma forma de gerir o orçamento?
Na minha especialidade são uma forma de matar pessoas. Percebo que um Governo perante a necessidade de responder a listas de espera crie mecanismos de produção adicional, mas sempre achei que do ponto de vista económico ou de gestão não faz sentido. É a mesma coisa que uma companhia pagar de manhã um ordenado e à tarde pagar-lhe quatro vezes mais pelo mesmo trabalho. Seria melhor pagarem-lhe decentemente e darem-lhe condições para fazer o seu trabalho e aumentar a sua produção. E creio que nesta crise médicos e enfermeiros ficam com certeza muito sensibilizados com o reconhecimento das autoridades e da população, mas ficariam mais se isso se traduzisse em condições salariais e de carreira que não têm tido. E agora pareço um médico sindical a falar, que não sou, mas é óbvio.
Num país em que o salário mínimo é 665 euros, muitos portugueses podem perguntar-se: ganham assim tão mal os médicos?
Acho que o que as pessoas devem ter presente é que aquilo que o Estado mete na Saúde dos nossos impostos são 5,5%, 6% do PIB, que é o equivalente ao que o México coloca na Saúde. E isso não tem de estar mal, a questão é que neste momento não chega para garantir acesso, se não as famílias não estavam a assumir, além dos impostos que pagam, mais 27,5%, quase 30% da despesa da saúde do seu próprio bolso em pagamentos diretos. O que não bate certo com a doutrina ideológica do SNS é que seja um sistema de cobertura universal mas que não seja financiado suficientemente para o ser e que além disso tenha um défice crónico de gestão e de eficiência de produção. Somos mais eficazes do que eficientes.
O que tem sido um discussão cíclica. Vê mudanças?
Não. Tínhamos bons indicadores de saúde, é certo, mas à conta de um grande esforço da população. O SNS é uma das conquistas da terceira República e assegura a universalidade de acesso, mas o acesso não é feito em tempo. Esperamos muito mais do que a média de qualquer outro país da Europa por uma cirurgia eletiva em especialidades como oftalmologia, cirurgias do colo do fémur. E o problema disto é que inquina tudo. Quando o nosso acesso não é bom, as pessoas vão ao setor privado. O SNS devia ser o garante de equidade, mas quando um pobre e um rico vão ao setor privado da saúde, pagam o mesmo, mas estão a fazer um esforço económico para a sua saúde diferente.
Isto quem pode pagar…
E por isso digo, se o SNS estiver em falha, como está, o seu contributo para a equidade social, aquilo para que foi criado, fica comprometido. Torna-se perverso. E é por isso que digo que o imperativo da saúde da nação, que é o que o SNS visa garantir, é maior do que o SNS. Na minha visão, precisamos de um sistema em que o SNS que seja a espinha dorsal, o eixo estruturante, passando muito pela saúde familiar e saúde pública que a pandemia nos ensinou a preservar – e precisamos de utilizar os restantes setores. Não me parece correto que o investimento que não foi feito na saúde pública na última década e que levou ao investimento no setor privado da saúde, que é riqueza do país, seja desaproveitado e não seja posto deliberadamente ao serviço da população para resolver o problema de acesso.
O Estado não ficaria a financiar dividendos de terceiros?
O primeiro desiderato da Saúde não deve ser o lucro, deve ser prevenir e tratar a doença. Agora o encargo constitucional do Estado é prover que todos os cidadãos tenham acesso a cuidados de saúde de qualidade, todos. Esse é o princípio de universalidade. O que está em causa é quem presta esses cuidados: só o Estado, o Estado e privados, setor social e militar. O Ministério da Saúde não é o Ministério do SNS, é o Ministério da Saúde dos portugueses e portanto a questão pode ser por que não equacionar um modelo em que a pessoa pagando os seus impostos, com um seguro de saúde, uma mistura de vários, um pacote da sua entidade empregadora, um modelo como existe a ADSE, não pode escolher ir ao privado e público, que é o que acontece noutros países europeus.
Há muito tempo que se confrontam os dois modelos. Já não acredita que o SNS na lógica que tem hoje seja capaz de responder?
Não. E digo-lhe porquê: a Noruega faz isso, mas o Estado não mete 5% do PIB na saúde. A medicina privada é vestigial. A cirurgia cardíaca praticamente não tem privada. Quando falo disso com os meus colegas noruegueses a resposta deles é para quê? O hospital responde em cinco dias, não há necessidade de recorrer ao privado. O privado aqui foi supletivo, como é que isso seria possível, com cada vez mais necessidades na população?
Mas em algumas áreas, nas mais dispendiosas, o público é que dá resposta.
Tem de haver regulação. Isso é uma coisa. Agora estamos num país com a esquerda aculturada e em que se parece que é pecaminoso que alguém queira ganhar dinheiro quando fez um investimento. Em todo o mundo há investimento privado. A questão é se o serviço privado é de qualidade, e para isso existe regulação e avaliação, se é pagável ou não pelo Estado e se permite garantir mais acesso à população de uma forma que seja custo-eficaz, com regras, não podem recusar neoplasias. Cabe ao estado dizer ao privado o serviço público custa tanto, nós precisamos disto e pagamos x.
Mas se isso levar a um desinvestimento no setor público, o que hoje custa 12, amanha não pode custar 15, como vemos com as vacinas, e o preço ter de ser aceite?
Na minha conceção de sociedade, serviços gerais como água, eletricidade e saúde pública têm de ser mantidos no controlo do Estado. Imagine-se o que teria sido a pandemia sem um sistema de saúde organizado, sem uma Direção-Geral da Saúde, viu-se a desgraça que foi nos EUA com uma saúde liberal. Mas na prestação de cuidados, em nenhum país da Europa se discute a dicotomia entre público e privado na saúde. O Estado para querer prestar cuidados de saúde em exclusivo tinha de ter duas condições que não satisfaz: tinha de ser capaz de colocar 8% ou 9% do PIB na saúde. Não o fazia antes desta crise, não o fez durante e não vejo como fará depois. E depois tinha de ter uma gestão mais profissional e a politização do sistema de saúde vai até às direções dos hospitais.
Continua a ser assim?
Continua. O Estado deixa respirar pouco o país. Na minha visão, vejo o Estado mais como regulador. A missão do Estado é proteger-nos e organizar os serviços. E essa organização que é imperativa. O nosso serviço de saúde foi inspirado no inglês, que nasce depois da Guerra, precisamente por causa da vertente médico-social. O inglês foi criado em 1948, o nosso há 40 anos e nestes 40 anos mudou tudo: a tecnologia, as doenças, as necessidades da população. E por isso o que defendo é que devíamos aproveitar o rescaldo desta crise para conduzir uma reforma profunda do SNS. Noutro dia o senhor primeiro-ministro anunciou um investimento maciço na Saúde. Considero que esta empresa neste momento é uma empresa falida. Não chega dinheiro. O SNS está descapitalizado, de pessoas, de alguma moral, de dinheiro e de gestão.
Mesmo depois de enfrentar esta crise?
Sobretudo a partir desta crise. O pior de tudo será mesmo ficar uma ideia de que o SNS está muito bem porque venceu esta crise. O SNS já não estava bem. Já não tinha bom acesso, as pessoas já pagam quase 30% das despesas de saúde do seu bolso quando na Europa, em média, pagam metade disso. O SNS ia andando e acho que esta crise deveria abalar as consciências e pensar em tudo no que ficou por fazer e estava por fazer.
Mas vê esse discurso triunfalista?
Há alguma tendência para isso. As pessoas agora estão entretidas com a pandemia. Pode haver uma injeção financeira mas as contratações de reforço que temos estado a fazer para o SNS são a termo, e os partidos à esquerda têm denunciado isso, são contratos de quatro meses. Não estamos a contratar em massa para as necessidades que tem o sistema. Mais uma vez, não critico a gestão da pandemia, mas penso que a história não nos vai desculpar se não conseguirmos a partir daqui tirar lições.
Que lições ficam?
No imediato diria quatro. Acho que a pandemia nos mostrou que podemos ter ganhos de eficiência nos hospitais com novos métodos. É possível fazer diferente. Percebemos que a telemedicina e telemonotorização são soluções reais. Em Santa Marta temos dado alta mais cedo aos doentes e a telemonitorizá-los em casa para não terem de ir ao hospital. A segunda é a necessidade de uma saúde pública forte, com uma saúde familiar com ponte com o setor social, que dê resposta às famílias na proximidade. O médico de família deve ser o advogado clínico do doente e não podemos ter um sistema hospitalocêntrico.
O que se está sempre a ouvir.
E tem de mudar, com integração de cuidados, recorrendo ao setor social. Precisamos de eliminar burocracia e em alguns momentos da pandemia conseguimos fazê-lo, mas ainda ontem assinei uma pilha de 10 centímetros de papel, a maior parte deles inúteis. Em quarto lugar, a importância das colaborações da saúde. A pandemia realçou a virtuosidade de colaborar. Só temos vacinas cedo porque academia, as farmacêuticas, os estados e reguladores convergiram. A saúde tem de ser mais do que o SNS. E isto passa por envolver os setores e as pessoas e este foi outro dos aspetos que a pandemia pôs na ordem do dia. Os portugueses têm hoje uma perceção do seu papel na prevenção da saúde e nos auto cuidados que não tinham e é essencial continuar a promover literacia.
Mas vemos movimentos muito dispares, desinformação, venda de produtos às vezes sem uma demonstração científica…
É na regulação que o Estado tem de ter um papel forte, baseando-se na ciência. A ciência aproximou-se da esfera de decisão e do público e isso é importante. Revejo-me muito mais na forma como o meu país e a Europa geriram a pandemia do que os EUA ou o Brasil mas o Estado tem de ser mais musculado. Isto hoje não é muito popular de se dizer mas o Estado tem de ter uma regulação forte, ser firme. Temos um défice de cidadania, não acho que a democracia esteja em risco, agora não acho que se possa confundir democracia em risco com exigir disciplina. Falamos de rigor orçamental, porque não falar de rigor cívico? O Estado deve ter mão firme no cumprimento das regras, das leis. Os políticos preferem uma atitude mais soft, pensam que pode trazer mais votos. Mas isto leva-nos para outros temas para lá da saúde…
Para a ideia de uma impunidade
Temos uma democracia pouco amadurecida, uma Justiça lenta que conduz a um ambiente de uma certa impunidade geral. O Dr. Bagão Félix lançou recentemente um movimento que me parece interessante de luta contra a diferença cívica e ética. Concordo que estamos a viver uma crise de valores, de crescente indiferença, que mina tudo à nossa volta.
No ano passado uma das críticas ao Governo ao chegar ao outono foi não se ter usado mais o verão para preparar o inverno. Devia estar-se já a preparar o inverno?
Sim. Temos um défice habitual de preparação. Formei-me em Inglaterra e havia o ditado: by failing to prepare, you are preparing to fail. E espero que o Governo, que tem gente consciente, perceba que estamos à beira de uma crise emergente de saúde. E não estou a ser arauto da desgraça, mas no rescaldo da pandemia, temos um serviço de saúde que tinha as moças que tinha mais os profissionais exaustos e muito por recuperar. Agora acho que temos de ir além do momento atual. O SNS precisa de um reformador, uma pessoa que tenha uma visão que tem de ser política mas não politizada da volta que é preciso dar à Saúde e da reforma que é preciso fazer.
Mas mais uma task-force? Já houve tantos estudos, grupos de trabalho, propostas de reforma…
Pois, o nosso problema nunca foi o diagnóstico. Foi executar. Na minha visão, continuamos a precisar de um acordo de regime para a Saúde. Precisamos de uma reforma da Saúde que traça objetivos a 10, 12 anos, em que as políticas não mudem a cada Governo.
O pacto para a Saúde foi um dos reptos do Presidente da República no primeiro mandato. Parece ter sido deixado cair até por Marcelo.
Não sei se deixou cair, o que posso dizer ao fim de 44 anos de trabalho no SNS, e trabalhei no privado desde os anos 90 mas foi o SNS que me fez médico, é que não pode continuar cristalizado nem no tempo nem na ideologia. E está. A teoria e o que se apregoa não corresponde com a realidade. E fala-se do modelo europeu, da convergência europeia, e depois na saúde o sistema de Saúde alemão, holandês, francês, que garantem cuidados no público e no privado e a população pode escolher, não é Europa? Nós começámos com o modelo inglês de serviço de Saúde público, o modelo’“beveridgiano’, mas temos uma mistura: público, privado e o bismarckiano com a ADSE. Temos uma saúde à la carte. O Estado reclama a capacidade de fazer tudo e acredito que genuinamente o queira mesmo, mas com o dinheiro que lá mete e com a organização que cada Governo faz há uma reforma sustentável. Passamos de hospitais públicos para hospitais empresas, para hospitais empresa sem autonomia, fazemos PPP que auditamos e estão bem, são eficientes, mas depois descontinuamo-las. Não temos trambelho.
Faz-lhe sentido comparar o desempenho de PPP com hospitais públicos, com regras diferentes?
Mas aí o problema não está nas PPP. O problema dos hospitais é o modelo de financiamento baseado no histórico e não na atividade e necessidades da população. É feito à partida para dar défice, défice que depois é pago por todos nós nas contas públicas. Nenhuma empresa – e os hospitais, quer se queira quer não, são empresas – se aguenta com défices sucessivos e com este tipo de gestão. Sou diretor de um departamento: não tenho poder para contratar, não tenho poder para despedir. Tenho procura e lista de espera, mas se quiser hoje expandir a atividade, isto é mais visto como gasto do que como investimento.
O que o deixa mais frustrado?
Isso. Sinto que continuo a tratar cada doente per si, mas não consigo empreender, não consigo criar e isso é cada vez mais uma frustração para mim e por isso a minha carreira pública está perto do fim.
Disse-me uma vez que esperava continuar a operar até aos 70 anos.
E continuarei, seja onde for. Tenho sete centros de referência no serviço, dois únicos a nível nacional, operei muitos doentes, fiz algumas das primeiras cirurgias, o primeiro implante de um coração artificial, transplantação de recém-nascidos. Mas o que sinto neste momento é que gostaria de poder deixar o meu serviço e os meus colaboradores do SNS com muito melhores condições e capacidade, até porque temos lista de espera e doentes que precisam. Mas não consigo. Por isso o que sinto é que cumpri o meu dever mas ao mesmo tempo esta desilusão por termos sido desapoiados por um sistema que não percebeu que podendo e querendo investir teria mais serviço público para oferecer.
Sente que é também a idade a falar ou que os mais novos também têm essa frustração?
Na pandemia naturalmente menos, mas o que temos visto nos jovens médicos é mais emigração, saídas para o privado e isso hoje é uma ida sem retorno. Em especialidades como a minha, as pessoas oscilam entre alguma pública e alguma privada, mas o próprio modelo da função pública é muito difícil de gerir. Hoje em dia todos os médicos do meu serviço têm um dia de não trabalho por semana.
Mas porque trabalharam à noite?
É mais do que isso. É óbvio que quem trabalha de noite não deve e não pode trabalhar de dia, mas é uma engrenagem de licenças, folgas, horários, que tornam difícil a dedicação completa e a produção de um serviço. Naturalmente que as leis gerais do trabalho são iguais no público e no privado, mas o sistema público é bastante pesado de gerir. Um colaborador meu abandonou o serviço, primeiro que se desvincule do hospital… O Estado torna difícil contratar e abandonar. É um sistema anquilosado. E o problema é que hoje em dia, com a diferenciação da Medicina, é difícil que um serviço com esta organização se adapte à exigência que a saúde impõe, quando requer soluções rápidas, jogadas de antecipação. As próprias leis da contratação pública, que em algumas áreas são obrigação europeia, tornam difícil fazer aquisições em tempo útil.
Por exemplo?
No setor privado alguém quer comprar uma máquina: escolhe a máquina e compra. No setor publico, a bem da transparência, as tramitações são tantas que comprar uma aparelhagem de hemodinâmica, uma máquina que custa um milhão de euros, 1,5 milhoes, pode levar um ano e meio.
Vê a máquina daqui a um ano e meio.
Sim, e se o concurso não for impugnado… Hoje os juristas têm um papel tão importante como quem faz as escolhas clínicas. Por uma razão que resumo numa ideia só: estamos numa sociedade em que enveredámos mais pelo controlo do que pela confiança, porque a regulação não funciona, porque há uma ideia de impunidade, tudo aquilo de que falámos. E com isto hoje qualquer hospital grande gasta mais em medidas de controlo do que escolhendo as pessoas certas para os lugares, sendo capaz de nomeá-las por períodos de dois, três anos pela sua competência e currículo e demiti-las se não forem boas. O país tem uma falta grande de uma palavra que nem existe em português, accountability.
Prestação de contas.
Mas é um prestar de contas com consequências. Agora para me pedirem contas têm me dar autonomia e um diretor de serviço hoje, mesmo na figura dos chamados centros de responsabilidade integrada, tem uma autonomia próxima de zero. Nada muda. Naturalmente consigo organizar o serviço clínico, quem opera, quem não opera, a que horas, às vezes quem vai de férias, mas estamos a falar de empreender, de construir, de mudar, de expandir uma pratica, de abrir uma sala, de poder contratar pessoal, pagar diferente… Não conseguir fazer nada disto é frustrante, desgastante. E é esta sensação com que me sinto chegar ao final da carreira. Estou feliz porque foi uma carreira de grandes desafios e conseguimentos de interesse público, o programa de transplantação pulmonar em Santa Marta foi um enorme sucesso para o país, mas a minha sensação é que podia ter sido muito melhor, se nos tivessem apoiado.
Quem não apoiou?
Ao longo destes 15 anos falei com todos os ministros da Saúde. A todos pedi condições melhores para expandirmos a atividade. Há especialidades como transplantação pulmonar e cardíaca que dificilmente se vão fazer no privado nos próximos anos e é pelos doentes que se devem fortalecer. Pedi instalações, pessoal, às vezes estamos a pedir para a causa pública como se estivéssemos a pedir para a nossa família. A certa altura perdemos a estamina.
Quando se começa a fazer o filme da carreira, há um momento, uma operação que tenha sido o mais feliz?
Há muitos. Ainda esta semana saí um dia muito realizado do hospital. Operámos uma doente com um aneurisma da aorta gravíssimo, um problema congénito. Uma senhora que estávamos a prometer que operávamos há meses por causa da covid-19, uma operação com risco. Cheguei a casa feliz. Noutro dia operei uma criança recém-nascida com sete dias, com uma coisa complexíssima, uma bebé linda que três ou quatro dias depois estava com a mãe a mamar, são coisas que nos dão uma satisfação pessoal muito grande. Mas quando chegamos a esta fase na vida, não olhamos só para isso. Um professor meu dizia: ‘Quando na tua idade operas uma pessoa e a salvas, salvas uma vida. Quando ensinas a alguém a fazer aquela operação, salvas milhares de vidas’. Nesse aspeto sinto que contribui muito para a formação de três ou quatro gerações cirúrgicas em Lisboa. E nesse aspeto a minha missão está dominantemente cumprida. Outra coisa é querermos ficar mais ou menos tempo a desfrutar desse gosto e continuar a empreender. E foi aí que senti que o sistema não me respondeu. Não foram os ministros, os ministros são peças do sistema.
Foi a máquina do Estado em si?
A máquina pesada, que se alimenta da nossa paciência, da nossa resiliência, vence-nos pelo cansaço. As ligações políticas ajudam, mas é uma máquina trituradora de gente. E é isso que era preciso reformar. E para reformar é preciso vontade politica, algum dinheiro e um reformador ou um grupo de reformadores que pensem como. E a pandemia devia ser um mote de reflexão, uma oportunidade de dialogar com quem está no meio e perceber o ditame maior da politica é servir os cidadãos. Uma task force aqui e ali será só um penso rápido. E mais dinheiro só é pôr agua em cima da chama, não acaba com ela. As crises são oportunidades de reforma, para quem as saiba aproveitar. E é verdade que a pandemia nos ensinou muitas coisas. Mas uma coisa é o que ensina, outra é que o que aprendemos. E isto será assim em todo o mundo. Basta a ir a internet para procurar lições da pandemia para os serviços de saúde. Algumas estão de acordo com aquilo que os políticos gostam de ouvir: precisamos de um serviço de saúde forte… Não é bem o que temos. E volto a dizer, não querendo ser alarmista, mas vamos estar a braços com um movimento que o SNS já não mastigava, com o cansaço da pandemia e com alguns milhares largos de doentes que não foram tratados e alguns que já perderam oportunidade terapêutica.