Ponto por ponto. O juiz Ivo Rosa resumiu em três horas e meia quatro anos de inquérito e mais dois de instrução da Operação Marquês e decidiu levar José Sócrates a julgamento por três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos. O seu amigo Carlos Santos Silva foi pronunciado pelos mesmo crimes. Ricardo Salgado será julgado por três crimes de abuso de confiança e Armando Vara por um de branqueamento de capitais. O motorista João Perna será julgado num processo à parte por posse ilegal de arma.
Ainda assim, o magistrado deixou cair todas as acusações de corrupção que integravam o processo. Por entre prescrições e falta de provas, Ivo Rosa argumentou não existirem indícios que permitissem pronunciar o ex-primeiro-ministro pelos crimes de corrupção passiva de titular de cargo político no âmbito dos negócios da Portugal Telecom (PT), grupo Lena e da compra do empreendimento Vale do Lobo, no Algarve.
Ainda as cadeiras dos tribunal estavam quentes e já o Ministério Público anunciava a intenção de recorrer da decisão para o Tribunal da Relação – onde até existe um histórico de volte-faces de decisões tomadas pela instrução de Ivo Rosa. A equipa liderada pelo procurador Rosário Teixeira pediu ao tribunal 120 dias para preparar o recurso, o dobro do que normalmente é admitido por lei.
Ivo Rosa admite ‘corrupção’… mas logo volta atrá. O juiz Ivo Rosa apenas acompanhou a tese da acusação em relação às entregas em dinheiro vivo feitas por Carlos Santos Silva a Sócrates e seus familiares e amigos – o que suscitou suspeitas sobre a origem duvidosa dos dinheiros do antigo governante. O magistrado chegou a surpreender a audiência ao colocar em cima da mesa indícios «de corrupção sem demonstração de ato concreto» (que não estava na acusação), mas logo esclareceu que também neste caso o crime está prescrito. «Demonstra-se indiciado que, pela forma e montantes, uma aceitação de vantagem patrimonial de José Sócrates na qualidade de primeiro-ministro», conclui Ivo Rosa, que considera que o facto de Carlos Santos Silva atuar no setor privado pode permitir supor que o empresário de Leiria tentava com estas transferências «a compra da personalidade» e «de simpatia», embora sublinhe que isso não seja suficiente para provar que houve corrupção passiva, ou seja, «uma manipulação do cargo (…) ferindo a independência com que o primeiro-ministro desempenhava o cargo» – dando o dito por não dito sobre o único ponto que ligava Sócrates a um caso de corrupção.
No entanto há ainda outras contradições no despacho de instrução apresentado por Ivo Rosa. Nas interceções que o magistrado apresenta para demonstrar que é Santos Silva a corromper o amigo político, surgem várias ligações entre o grupo Lena e José Sócrates. Joaquim Paulo da Conceição, ex-administrador executivo da empresa de Leiria, confirma, por exemplo, que foi apresentado por Carlos Santos Silva ao ex-primeiro-ministro, «tendo estado com este em comitivas empresariais e todas elas convidadas pelo ICEP».
Existem, aliás, várias conversas telefónicas no processo que corroboram a tese de que Santos Silva era pago pelo grupo Lena para lhes trazer informações, contactos e lhes abrir os mercados para se expandirem internacionalmente, e que o arguido José Sócrates seria um desses contactos. As ações de lóbi visavam negócios no Brasil, Argélia, Roménia e Venezuela – o plano de expansão do grupo Lena para este país da América do Sul terá até incluído um encontro de alto nível no hotel Ritz de Madrid, que contou com a presença do próprio José Sócrates e Temir Porras, um ‘chavista’, amigo do então primeiro-ministro, e à época secretário executivo do fundo de desenvolvimento venezuelano.
Também Joaquim Barroca nas escutas selecionadas pelo juiz de instrução vem dizer que conhece Santos Silva há trinta anos, desde 1985, e o recrutou à época para a empresa de Leiria exatamente porque «tinha alguns conhecimentos junto do poder politico, não só em Portugal, como fora de Portugal, tinha muita gente amiga, que tem essa característica de conhecimentos, de rede, de poder proporcionar certas coisas».
Utilizando os dados com que o MP acusa José Sócrates de ter sido corrompido pelo grupo Lena, o juiz Ivo Rosa faz o exercício inverso e iliba-o, usando as mesmas escutas para responsabilizar individualmente Santos Silva do ato de corrupção… entretanto prescrito.
Entregas em numerário levam Sócrates a julgamento. Entre 2013 e 2014, a investigação acompanhou em ‘direto’, através de vigilância e escutas, pelo menos quatro dezenas de entregas em numerário, sempre em envelopes fechados, realizadas sob o maior secretismo, solicitadas por Sócrates ao amigo em linguagem cifrada, nunca havendo referência a euros, mas sim a «fotocópias», «documentos», «dossiês», «livros», «folhas» ou ainda a «uma coisa», «aquela coisa», «alguma coisa», «aquilo», «as fichas do explicador», «os testes do explicador do Duda [como também era tratado o filho Eduardo]» – uma prática conducente a suspeitas.
O ex-líder socialista recebia o dinheiro no seu apartamento no edifício Heron Castilho, no centro de Lisboa, mas, ao longo de um ano, foram várias as pessoas que se encontraram com Santos Silva (sempre a pedido de Sócrates) a quem foram entregues envelopes – entre as quais a secretária, o motorista João Perna e até a André Figueiredo, então deputado socialista, e antigo assessor de Sócrates no PS. Quando o empresário de Leiria não podia ir pessoalmente, enviava pessoas da sua confiança, como Inês Rosário, sua mulher e arguida neste processo, ou o advogado Gonçalo Trindade Ferreira (também ele arguido).
O MP dá como provado que o antigo primeiro-ministro usou o dinheiro para acudir a (avultadas) despesas pessoais, como a compra de computador e impressora, aquisição de telemóveis, reparações e revisão da viatura, abastecimento de combustível, alojamento em estabelecimentos hoteleiros, oferta de almoços e jantares a amigos ou pagamentos de refeições fornecidas por restaurantes de luxo ao domicílio.
Mas os montantes terão tido ainda outros destinos, como o pagamento das avenças ao blogger António Costa Peixoto, do blogue ‘Câmara Corporativa’, ou a contratação de Domingos Farinho como seu ghostwriter. Ou a compra massiva do livro A Confiança no Mundo, lançado em 2013, assinado por Sócrates, mas que a investigação crê, na verdade, ter sido escrito por Farinho.
O juiz Ivo Rosa considera que existem indícios da entrega de Santos Silva de 647 mil euros em numerário, mais o pagamento de viagens, livros e obras de arte. Além disso, Sócrates garantia também o sustento total ou parcial de muita gente à sua volta: como a mãe Maria Adelaide Monteiro, a ex-mulher Sofia Fava, a secretária, o motorista ou as amigas Lígia Correia, Sandra Santos e Célia Tavares.
No total, o magistrado diz que Sócrates recebeu 1,7 milhões de euros de Santos Silva, facto que, do seu ponto de vista, não chega para demonstrar que houve corrupção, embora reconheça que as entregas «levantam dúvidas». O juiz Ivo Rosa vai mais fundo na análise e considera que, dada a relação de proximidade entre Sócrates e Santos Silva, «nada impedia que empréstimos entre amigos tivessem sido feitos por transferência bancária». O método utilizado pelos arguidos torna evidente que Sócrates e Santos Silva «estavam a esconder a forma como o dinheiro circulava entre eles», afirma. E sublinha que também não considera credível a explicação do antigo primeiro-ministro de que tinha dinheiro em casa, que lhe era dado pela mãe, tanto mais que há transferências bancárias com origem nas contas de Maria Adelaide Monteiro.
Entregas em ‘direto’. A primeira entrega de dinheiro vivo a Sócrates que os investigadores acompanharam aconteceu em setembro de 2013. Santos Silva entregou então perto de cinco mil euros a João Perna, nas Torres de Lisboa – onde a XMI (uma sociedade pertencente à esfera de Santos Silva, neste caso em associação com o grupo Lena) tem escritório e um dos locais onde vieram a verificar-se diversos encontros. O dinheiro destinar-se-ia à mãe de José Sócrates e, a partir daqui, a investigação vai acompanhar cerca de 40 entregas de dinheiro vivo através de vigilância e escutas.
Embora a investigação comece em 2013, foi a vida de luxo de Sócrates em Paris que fez despertar os alarmes dos investigadores. O antigo primeiro-ministro mudou-se para a capital francesa em 2011, tendo a investigação apurado que a sua primeira morada foi na Avenida Coronel Bonnet – um apartamento arrendado com recurso ao dinheiro do empréstimo que contraíra na Caixa Geral de Depósitos, no valor de 120 mil euros.
Sem outros rendimentos conhecidos até aí, a não ser os do ordenado de primeiro-ministro, seis meses depois Sócrates já esgotara o plafond. Por essa altura, Sócrates terá pedido à mãe que vendesse dois apartamentos a Santos Silva. Sem saber que o real comprador poderia ser o filho, o negócio foi fechado, à época, por um valor acima do preço de mercado. Maria Adelaide Monteiro passou então a colocar esse dinheiro, em tranches, nas contas do filho, dando-lhe liquidez para custear a vida faustosa que levava na cidade luz.
E quando Carlos Santos Silva comprou o apartamento na Avenida Président Wilson – o que aconteceu no verão de 2012 –, Sócrates mudou de morada. Os investigadores questionaram-se desde o primeiro momento sobre as motivações que levavam o amigo a ter adquirido um apartamento para uso exclusivo de Sócrates. Sócrates – que mobilou e comandou obras de remodelação um ano depois. Essas obras reforçaram as suspeitas, porque Sócrates pediu a Santos Silva para marcar e pagar a estada do filho e da sua ex-mulher num aparthotel da cidade, enquanto decorriam os trabalhos.
E se ainda poderia haver a justificação de que Santos Silva estava a oferecer a sua casa e, na falta desta, o aparthotel à família do amigo, a versão cai por terra quando as ofertas do ex-administrador do grupo Lena se estendem a amigos de Sócrates. Verificou-se, por exemplo, que também suportara o pagamento de outro quarto no mesmo aparthotel ao filho de Pedro Silva Pereira, uma oferta prometida por Sócrates ao seu antigo braço direito no Governo, mas custeada por Santos Silva.
A investigação liderada pelo procurador Rosário Teixeira acredita que a simulação de vendas de imóveis foi receita repetida por Sócrates e Santos Silva para fazer circular os dinheiros. Neste caso, foi Sofia Fava quem entrou na equação. A ex-mulher de Sócrates vendeu o seu apartamento da Rua Francisco Stromp, na capital, à empresa Gigabeira, de Carlos Santos Silva, por 400 mil euros (o dobro do valor de mercado). Outro detalhe ‘estranho’ chamou a atenção dos investigadores: um ano antes de ter sido assinada a escritura, já Sofia Fava tinha recebido na sua conta valores da Gigabeira e de outra empresa de que Santos Silva era administrador, a XLM.
‘Generoso’ com os seus. As entregas em dinheiro eram comuns, não só a Sócrates, mas também a familiares e amigos com quem o antigo governante era generoso. Exemplo disso é a relação com Sandra Santos, por exemplo, uma das pessoas que partilhou a mesma almofada financeira do ex-primeiro-ministro, e que a investigação acompanhou de perto.
Entre novembro de 2006 e novembro de 2014, Sandra, uma das amigas intimas de José Sócrates residente na Suíça, recebeu pouco mais de 102 mil euros apenas em transferências bancárias, sem contar com as despesas em viagens e hotéis. Os pedidos de ajuda de Sandra, que vivia sozinha com o filho menor na Suíça, mas se deslocava a Portugal sempre que ao ex-governante picava a saudade, foram intercetados durante a investigação. Sabia chegar-se ao coração ou aos bolsos e num sms chora-se: «Desculpa, mais uma vez não vou poder ir, Luís está com bronquiolite asmática… Preciso muito da tua ajuda, estou numa situação financeira difícil, juro pelo meu filho, que é a pessoa que mais amo neste mundo, que não me estou a aproveitar, eu peço-te porque és a única pessoa que pode me ajudar». Quando este lhe pergunta pela quantia necessária ela faz a lista: «3000. Para poder pagar o aluguer da casa 1350, estou a dever ao banco 1260 e não tenho dinheiro para as compras, obrigado, eu devo-te imenso, não consigo dormir». «Ora, deixa lá. O nosso amigo vai-te mandar como habitualmente, OK?», acalma-a José Sócrates.
Sócrates reage ao seu estilo. Bem ao seu jeito, à saída da leitura do acórdão José Sócrates disparou contra tudo e todos. O antigo governante voltou a rejeitar ter cometido qualquer crime, acusou o MP de perseguição e até abriu a porta a um regresso à política ativa. «Todas as grandes mentiras contadas aos portugueses em sete anos, razão pela qual me prenderam, difamaram, são falsas e isso ficou hoje aqui provado», disse, acrescentando que «o Ministério Público cometeu um erro gravíssimo, mas não foi um erro, foi uma intenção, eles queriam-me insultar e foi a única motivação que fizeram».
O ex-primeiro-ministro prometeu continuar a lutar para provar a sua inocência, mesmo em relação aos três crimes de branqueamento de capitais e falsificação de documentos por que vai responder em julgamento, mesmo ficando os crimes mais ‘pesados’ de corrupção à espera de decisão do recurso do MP. «Não me conformo com isso, acho que não é correto e vou ver com detalhe», sublinhou.
Entusiasmado, com espírito de vitória nos olhos e na voz, Sócrates confirma sentir-se «com a tranquilidade dos inocentes e quero uma reparação por tudo», pois é «inocente». E aproveitou para dar um passo em frente sobre a possibilidade de, um dia, regressar à carreira política: «Farei esse debate comigo próprio, não é uma coisa que queira partilhar com ninguém», referiu.
Feitas as contas do dia, não foram pronunciados por nenhum crime pelo juiz Ivo Rosa os arguidos Joaquim Barroca, Luís Ferreira Marques, José Luís Ribeiro dos Santos, Bárbara Vara, Rui Horta e Costa, José Diogo Gaspar Ferreira, José Paulo Pinto de Sousa, Hélder Bataglia, Gonçalo Ferreira, Inês Rosário, Sofia Fava, Rui Mão de Ferro e Zeinal Bava. Das nove empresas envolvidas no processo todas foram igualmente ilibadas.