por Felícia Cabrita e João Amaral Santos
Quem é Luiz Carlos da Rocha, conhecido como ‘Cabeça Branca’, o maior traficante de cocaína da história do Brasil e por quem se sentiu atraído a ponto de contar a sua história em livro?
Eu investigo o narcotráfico no Brasil há dez anos e, nessas pesquisas, sobre as rotas, os meios como os traficantes exportam a cocaína para a Europa – incluindo Portugal –, deparei-me com a figura do Luiz Carlos da Rocha, conhecido como Cabeça Branca. Tinha incluído algumas informações sobre este homem no meu primeiro livro [Cocaína: A rota caipira], lançado em maio de 2017, e curiosamente em julho desse ano ele foi preso. A operação que o levou à prisão foi muito bem feita, pouco usual para os padrões brasileiros. E ao acompanhar o tema senti-me atraído e concluí que valeria a pena escrever um livro só sobre ele.
Como se distingue o Cabeça Branca dos outros narcotraficantes? Pode comparar-se a Pablo Escobar ou El Chapo?
Um policial do Paraguai me disse uma frase que define muito bem o ‘Cabeça Branca’: ele nunca caiu na tentação de ostentar o seu poder e riqueza. Nesse ponto é muito diferente de outros grandes narcotraficantes, como o Escobar. O Cabeça Branca viveu na sombra e isso sempre me intrigou, pois é muito humano ostentar poder e riqueza e ele nunca fez isso. Durante 30 anos, construiu uma rede logística que mais nenhum outro traficante tem no Brasil nem noutro país da América do Sul. Tinha meios para traficar cocaína para a Europa a partir do Brasil, do Equador, da Colômbia… Tornou-se um grande atacadista da cocaína graças a esse perfil.
Ele terá feito uma análise à forma de atuar de Escobar para evitar cometer os mesmos erros?
Ele aprendeu com a História, com os antecessores e com os contemporâneos (como o El Chapo). Ele sabia que a publicidade seria sempre ruim e por isso apostou na discrição e, principalmente, na corrupção policial. Ele corrompeu muitos policiais brasileiros e paraguaios para se manter impune: foi graças a isso que prosperou tanto tempo.
O livro permite fazer uma leitura histórica, cultural e social deste universo. Quais são as origens do Cabeça Branca?
Ele vem de uma família humilde. O pai era um pequeno agricultor do estado do Paraná, no sul do Brasil, que se fixa nos anos de 1960 em Londrina, uma cidade rica. No início da década de 1970 a produção de café no Brasil, especialmente nessa região, era gigantesca. Mas o Brasil tributava fortemente a exportação de café. Por sua vez, no Paraguai, as alíquotas [valor para calcular o imposto sobre um produto] eram quase zero e então os produtores passaram a levar o café brasileiro até ao Paraguai e a exportar de lá para o mundo. Nessa época, o Paraguai exportava quase trinta vezes mais café do que produzia. O país vivia uma ditadura muito corrupta nos anos 1970/1980 e então era um ótimo local para o contrabando. O pai do Cabeça Branca, como outros, ‘mergulha’ nesse negócio ilícito – e os filhos também. O Cabeça Branca nasce e cresce nesse meio.
O facto de ele ter nascido e crescido no meio do contrabando vai influenciar o seu percurso?
Há um episódio marcante na sua juventude, em 1973, quando ele tem 13 anos e vê o pai ser preso. Ele estava em casa com a família – tem nove irmãos –, diante da televisão, já noite, quando a polícia invade a casa e prende o pai. Essa situação marca-o, e prova que ele nasceu no mundo do crime. Alguns irmãos mais velhos também foram presos por contrabando nessa época. A família inteira estava no negócio.
O pai era um homem violento?
Não. O contrabando de café no Brasil é hoje visto como um crime romântico, nada violento.
E como surge a cocaína?
No final da década de 1980 o Governo brasileiro alterou a política tributária e o contrabando de café deixa de ser viável economicamente. O Cabeça Branca e dezenas de outros contrabandistas ficam numa situação inusitada: tinham toda a logística (as rotas, os veículos, os camiões) mas não tinham mais o produto. Então trocam o café pela cocaína, que na altura está em ascensão. Havia uma oferta muito grande da Bolívia, vizinha do Paraguai.
Os costumes no Brasil e no mundo também se alteraram. A cocaína começa a chegar a todo o lado…
Há um aumento muito grande do consumo de cocaína nesse período. E o Cabeça Branca é um dos contrabandistas que fazem essa migração. Houve outros que tomaram a mesma opção, mas ele, pelas suas características, foi o único a conseguir prosperar. Outros foram assassinados, presos… Mas ele consegue desenvolver muito bem o seu esquema nos anos 1990 e 2000.
Como consegue fazer isso?
Pela discrição. E é extremamente cerebral. Apesar dos poucos estudos que teve, era muito inteligente, consciente das suas ações e muito cuidadoso. A Polícia Federal ficou mais de dez anos sem saber como era o rosto e a voz dele. Chamavam-no ‘fantasma’. Era único. Outros grandes narcotraficantes também eram discretos, mas nunca a este nível. Foi preciso uma operação cinematográfica para conseguir capturar este homem – um feito e tanto para a Polícia Federal brasileira.
Ele começa a dedicar-se ao tráfico de cocaína em 1988. Teve plena consciência do passo que deu?
Foi uma questão de oportunidade, até mesmo a única saída. A família investiu tudo no contrabando de café e pagaria um preço económico muito alto se abandonasse tudo. Mas ele teve consciência, sim, do passou que deu e que o narcotráfico nunca seria bem aceite.
Como é que um homem oriundo de um meio humilde dá o salto para se tornar o maior narcotraficante do Brasil?
Ele cria este sistema ao longo de trinta anos, não é da noite para o dia. Era bem relacionado, cumpria sempre a sua palavra com fornecedores e compradores, e conquistou assim muita credibilidade no tráfico. Torna-se uma espécie de griffe [marca] para os traficantes e isso faz com que cresça. E sabia investir muito bem o dinheiro, aumentando a logística. Ele passou a exportar a cocaína para a Europa por navios e, provavelmente, por aviões também.
A logística é o seu grande segredo?
É o segredo do narcotráfico. O grande objetivo do traficante é conseguir fazer chegar o produto da origem ao destino (neste caso, a Europa). E o Cabeça Branca tinha essa logística, que começou nos contactos com os fornecedores em países como Bolívia, Colômbia e Peru. Nos últimos tempos, tinha capacidade para trazer para o Brasil pelo menos cinco toneladas de cocaína por semana, que valem alguns milhões no mercado europeu. A valorização económica deste produto é gigantesca…
Estamos a falar de que valores?
A cocaína é avaliada na selva boliviana, onde é produzida, em torno de 800 a mil dólares por quilo. Quando ultrapassa a fronteira do Brasil dobra esse valor. Quando chega aos grandes centros e portos marítimos brasileiros, esse quilo já vale cerca de seis mil dólares. E se é exportado e chega à Europa, é vendido entre trinta a quarenta mil dólares. Não há outra mercadoria no mundo com esta diferença. E é esse ‘atravessador’ (que tem a logística e corre riscos por transportar a droga) quem lucra mais. O Cabeça Branca era esse atravessador.
Entrar noutros mundos não deve ter sido fácil porque, nessa altura, os cartéis colombianos e mexicanos tinham mais ‘músculo’. Como é que ele consegue?
Quando ele começa no tráfico era pequeno. Mas já nos anos 1990 a Polícia Federal tinha informações de que ele negociava diretamente com compradores em Itália, por exemplo. E isso foi logo no início da atividade de traficante. Ele faz essa ponte muito cedo, o que é impressionante. Não é simples criar essa teia de relações no tráfico. É como disse: ele tinha muita credibilidade. Grandes cartéis europeus procuravam-no porque sabiam que ele era eficiente a colocar a droga na Europa e jamais os trairia. Não conheço nenhum caso de traição do Cabeça Branca.
Como é que ele fazia chegar a droga à Europa?
Tinha carros, camiões e até uma frota de pequenos aviões que traziam a droga da Bolívia e da Colômbia até às suas fazendas no estado do Mato Grosso, próximo da fronteira. Esses aviões desciam nas fazendas – aliás, num desses locais, ele escreveu ‘Branca’ com eucaliptos, a palavra só era vista do ar e servia para orientar os pilotos que transportavam a cocaína.
É uma estratégia muito ‘à Escobar’.
O Escobar fez algo parecido, sim. Os aviões traziam a cocaína, que depois era armazenada nas fazendas. E ele tinha dezenas. Depois essa cocaína era colocada em fundos falsos de camiões carregados com soja ou milho, produtos agrícolas do Mato Grosso, que seguiam até aos portos marítimos, no Rio de Janeiro, Santos e Paranaguá. Nesses locais, outras equipas conseguiam colocar a droga em contentores que levavam cargas lícitas. A partir daí, a droga seguia de navio até à Europa, sem a participação ou conhecimento do dono do navio ou da carga.
Os donos dos navios e dos contentores não sabiam de nada?
Não. Os homens que trabalham para os traficantes nos portos rompem o lacre dos contentores, colocam as mochilas com cocaína lá dentro e depois voltam a fechar com um lacre clonado, falso. Quando a droga chega à Europa, é feito o processo inverso.
Era possível garantir que o produto não se perdia?
Havia sempre perdas. Grandes carregamentos foram apreendidos no Brasil e na Europa, mas o narcotraficante vê isso com naturalidade. Até porque, se ele perde uma tonelada, conseguiu passar dez. É esta, mais ou menos, a estimativa.
Portugal é um dos países por onde a cocaína passa. Como é que a droga entra num porto ou aeroporto portugueses?
Há muita corrupção de funcionários. Os traficantes precisam cooptar agentes que atuam nos pontos de exportação, no Brasil, e de importação, em Portugal e na Europa. É muito comum. Até para se saber quais os containers onde se pode colocar a droga, para onde eles vão, a que horas chegam. Essas informações são todas fornecidas pelos funcionários dos portos.
Como é que são identificados os contentores que transportam a droga?
Através dos funcionários. Recentemente, no porto de Paranaguá, os traficantes corromperam trabalhadores de uma indústria de automóveis para fornecerem informações sobre os lotes dos veículos, destinos, horários de embarque e chegada… Permitindo aos traficantes colocar cocaína dentro da bagageira dos veículos que iam nos navios. Mas são funcionários de baixo escalão, sem o envolvimento da cúpula da empresa, como os estivadores, por exemplo… É também comum os traficantes driblarem a fiscalização usando pequenos barcos, que navegam pelo canal do porto até encostarem no navio pronto a zarpar. Nessa altura, um estivador cooptado desce uma corda, onde o traficante amarra as mochilas, que são imediatamente puxadas para bordo – chamam a isso ‘pescaria’. É também comum a contratação de mergulhadores sérvios. A Ndrangheta [máfia italiana da região da Calábria] fazia isso no porto de Santos: construíam pequenas caixas herméticas, à prova de água, com capacidade para 40 ou 50 quilos de cocaína, colocavam ímanes num dos lados, e os mergulhadores sérvios fixavam-nas no casco do navio que depois seguia para Itália, onde faziam o processo inverso. Há muitas maneiras e os brasileiros são muito criativos (risos).
E como era o Cabeça Branca na vida privada?
Era muito ligado à família. Teve quatro esposas e quatro filhos. Era mulherengo, isso é um facto, até porque os casamentos dele duraram pouco, mas é muito ligado aos filhos, com quem manteve sempre contacto através de um circuito fechado de comunicação interna. Os filhos tinham uma vida legal e quando cresceram passaram a cuidar do património do pai, especialmente no Paraguai. Também era uma pessoa que gostava de festas, muito alegre e brincalhona. É lembrado com muito carinho pelos amigos de juventude de Londrina. Claro que há aspetos da sua personalidade que só ele pode desvendar, mas não dá entrevistas.
Ele é descrito no livro como uma espécie de ‘padrinho’: generoso para os amigos e vingativo com os inimigos. Era assim?
Ele tem esse aspeto de ‘padrinho’, principalmente no Paraguai. Tinha uma política populista como o Pablo Escobar em Medellín, na Colômbia. Construía escolas, presenteava a população, contribuía para campanhas de políticos paraguaios… Ele mantém esse lado paternalista e populista muito vivo no Paraguai, embora, ao contrário do Escobar, nunca tenha tido pretensões políticas. O Escobar começou a ‘cair’ quando se tornou deputado na Colômbia – e acho que o Cabeça Branca tinha essa noção.
Essa proximidade à população dificulta o combate ao tráfico?
Certamente, e ele sabia isso. No Brasil não o fez, mas no Paraguai sim. Nas favelas brasileiras isso também acontece. São as fações criminosas que exercem o poder, que regulam a violência nesses locais. Por exemplo: numa família da favela, se o homem chega a casa alcoolizado e bate na mulher, a vítima não vai procurar a polícia para registar queixa. Ela procura o representante do PCC do bairro, que ‘pega’ o marido, leva para a mata e lá eles fazem o que chamam de ‘tribunal do crime’. Entram em contacto por telemóvel com as lideranças da fação que estão presas e são elas que determinam o castigo que pode ir de uma surra à morte. E isso acontece porque o Estado não chega a esses locais e nem sempre é confiável. As pessoas confiam mais na fação do que na polícia, porque a polícia é violenta, é corrupta, e isso é um problema muito grave e vergonhoso para o Brasil.
E como era o dia-a-dia deste narcotraficante? Convivia com pessoas, frequentava festas…
Ele não frequentava eventos sociais, não era de grandes festas, nunca apareceu nas colunas sociais. Ele gostava de fazer festas, sim, mas apenas entre família e amigos. Aprecia um bom churrasco e se tornou alguém com gosto refinado. Na casa dele de São Paulo foi apreendida uma garrafa de vinho avaliada em 40 mil reais [cerca de seis mil euros].
É um homem de família, mas depois protagoniza episódios de extrema violência… Chegou mesmo a disparar contra um polícia, contrariando o seu perfil discreto.
Foi algo fortuito, em 1987. Aí se descontrolou. Foi uma briga na saída de um bar, os dois levemente alcoolizados, esse policial, chamado Plácido, vinha investigando o Cabeça Branca como contrabandista de café. Na briga, o policial deixou a sua arma de lado e partiu para a agressão, com socos e pontapés; mas, no confronto, o Cabeça Branca apanhou o revólver e atirou três vezes no rosto do policial. Uma bala ficou alojada e foi retirada e, por sorte, as outras passaram de raspão. Esse policial é hoje advogado e ainda tem essas marcas na cara. E isso se tornou um marco na rivalidade com a Polícia Federal brasileira que nunca ‘engoliu’ a agressão.
Esse episódio ocorreu pouco antes de ele se iniciar no tráfico… Teve influência?
Ele andou muito tempo fugido… Foi algo que manchou a carreira criminal dele. Todos os acontecimentos por essa altura influenciaram: a briga com o policial, a morte do pai num acidente de carro, no ano seguinte, e logo depois o fim do contrabando de café determinaram a sua entrada no tráfico. A metamorfose acontece rapidamente na virada para os anos 1990. E nessa altura o Brasil vivia uma crise económica gigantesca, com o Governo do Fernando Collor de Mello. Ele se viu sem saída, os amigos dele me disseram isso.
Mas há outros exemplos de violência: o caso do juiz Odilon Oliveira, mortes por esclarecer…
Houve políticos assassinados no Paraguai por sicários [assassinados contratados] dele, embora não existam provas. E o episódio do juiz também é interessante. No início dos anos 2000, a Polícia Federal organizou uma operação para o prender, sob ordens do juiz Odilon Oliveira. O objetivo era prendê-lo dentro de uma pizzaria em Londrina, onde se iria comemorar o aniversário da mãe. Os policiais disfarçaram-se de garçons, só que ele não apareceu. No dia seguinte, a Polícia Federal que tinha os telefones ‘grampeados’, ouviu o telefonema para a mãe onde ele diz que não pôde sair do Paraguai devido a um surto de febre aftosa. A polícia se frustra e deflagra a operação prendendo boa parte dos seus subordinados. Ele ficou muito revoltado – e a partir do Paraguai forma um consórcio para capturar, torturar e assassinar Odilon Oliveira. A Polícia Federal sabe isso com antecedência e protege o juiz que passou muito tempo dormindo dentro do fórum em Mato Grosso, com risco de ser assassinado.
Era implacável com os inimigos.
Sim, e há mais casos. Havia um radialista paraguaio que vinha denunciando influências políticas do Cabeça Branca na região da fronteira e, certo dia, foi capturado pelos seus homens, barbaramente torturado, teve as unhas todas arrancadas, e foi largado numa região de mato em território brasileiro. Esse radialista fugiu para São Paulo, não deu notícias para a família durante um ano, com medo que ela fosse assassinada. Depois, com ajuda de organizações internacionais, fugiu para a Europa através do Uruguai, onde vive com a família até hoje. Nunca mais voltou ao sei país.
Entre as suspeitas está o assassínio no Paraguai de um pistoleiro do ‘Cabeça Branca’ que deu informações à polícia num processo de delação premiada.
Sim, esse pistoleiro deu muitas informações à Polícia Federal, mas acabou sendo assassinado. Mas o envolvimento do Cabeça Branca são apenas suspeitas. O Paraguai é um país muito corrompido, as instituições funcionam muito mal, então é muito difícil que um assassínio seja investigado e se chegue ao mandante. Há suspeitas, mas no Paraguai não se investigam crimes – infelizmente é a realidade, o que é muito triste.
A cocaína está muito ligada a ditaduras. O tráfico prospera nesse contexto?
A atividade do narcotráfico no Paraguai começou na ditadura de Alfredo Stroessner, isso é evidente, mas no Brasil isso não é claro. O tráfico de cocaína começou no regime militar brasileiro (de 1964 a 1985), mas desenvolveu-se ainda mais com o país em democracia. Em África, sim, essa ligação é total, grandes ditaduras africanas sempre se custearam no tráfico. A Venezuela passa por um processo parecido. Na prática, é uma ditadura que se sustenta com base na cocaína que liga Colômbia, Europa e Estados Unidos.
Um dos fatores que permite ao Cabeça Branca perdurar é precisamente a corrupção endémica no Brasil. Tinha na mão polícias, juízes, políticos…
Sem dúvida. Chegaram a ser apreendidos na casa dele, em São Paulo, documentos de vigilância da Polícia Federal contra ele mesmo. Papéis que informavam onde andava, os endereços que frequentava… E nada disso é de graça. Era uma corrupção sistémica. No Paraguai, sabia-se que ele andava com uma maleta recheada de dólares e que a partir do momento em que era flagrado lançava mão da maleta para pagar à polícia e continuar em liberdade.
Portugal também aparece nesta história. O país continua a fazer parte da rota da cocaína para a Europa?
Totalmente. Tudo começa com a localização geográfica: Portugal é a porta de entrada na Europa. A história do Cabeça Branca leva-o a se relacionar com traficantes portugueses baseados no Rio de Janeiro, nos anos 1990. Ele fornecia cocaína para um traficante português chamado José Manuel [da Silva Viegas] Duarte, estabelecido no Rio de Janeiro, que usa jovens portugueses como ‘mulas’ – como se chama a quem leva droga nas suas bagagens em voos entre Rio e Lisboa. A Polícia Federal começou a investigar o esquema, a seguir os passos do Duarte e, em 1997, descobre que ele vai de avião ao extremo sul do Brasil. O avião do Duarte aterrou num aeroporto em Santana do Livramento, perto do Uruguai, e foi cercado pela polícia. Nesse avião seguia também o Cabeça Branca, a então mulher e dois dos seus filhos, o que prova a ligação.
Depois disso ele desapareceu. E voltou a ter sorte, pois só o português foi preso…
A Polícia Federal não esperava que ele estivesse naquele avião e, como não havia droga, ele e a esposa são libertados. Ele desaparece, foge para o Paraguai. O português é preso porque estava com uma identidade falsa naquele momento. Ainda chegou a fugir da cadeia, mas depois é recapturado e morre de câncer na prisão. Eu acredito que o Duarte é quem faz a ‘ponte’ entre o Cabeça Branca e outro grupo português baseado no Rio, muito mais forte, liderado por António [dos Santos] Dâmaso e José António de Palinhos [Jorge Pereira] Cohen.
Estamos a falar de traficantes de fato e gravata.
Sim, o Dâmaso vendia a imagem de pecuarista no Brasil. Tinha uma grande fazenda no estado de Goiás, onde criava gado e se tornou um empresário muito rico. Mas a partir de certo momento a polícia portuguesa começa a apreender cocaína no interior de buchos de carne bovina exportados para Portugal pelo Dâmaso e passa a informação para o Brasil que começa a investigar. Só que nada é encontrado. O Dâmaso tinha muito cuidado. Nem sequer falava ao telefone. Provavelmente aprendeu com o Cabeça Branca…
Ou o ‘Cabeça Branca’ aprendeu com o português?
Pode ser (risos). Mas a investigação descobriu contactos entre o Dâmaso e o Palinhos Cohen no Rio de Janeiro. Esse, sim, levava uma vida de luxo extremo. Era dono de um restaurante muito sofisticado (frequentado pelo Sting, Madona…) e uma rede de pizzarias, onde ‘lavava’ o dinheiro. O Palinhos Cohen era, na verdade, um grande gerente do Dâmaso. A polícia começou a segui-lo e viu encontros entre eles em shoppings e hotéis, até que certo dia, em 2015, se reúne com os portugueses o irmão do Cabeça Branca. Então percebe-se tudo e chega-se à apreensão de quase duas toneladas de cocaína escondidas em buchos prestes a embarcar para Portugal. Era esse o esquema: o Dâmaso enviava a droga dentro dos buchos para Portugal, onde o Palinhos Cohen tinha um irmão [António de Palinhos Jorge Pereira] que tratava da carga. A polícia surpreende a operação e o Dâmaso e o Palinhos Cohen são presos, mas acabam por fugir da cadeia e estão foragidos até hoje. Eram grandes traficantes.
E também tinham ‘doleiros’ [que no Brasil convertem em dinheiro vivo os lucros de negócios ilícitos]?
Sim, lavavam dinheiro com o Dario Messer [designado por ‘doleiro dos doleiros’ no processo Lava Jato]… Eram muito poderosos. O ‘Cabeça Branca’ também usava esses ‘doleiros’. No Brasil ele trocava os dólares por reais e os investia na compra de fazendas, de gado… E um ‘doleiro’ do Cabeça Branca era o Carlos Alberto, apelidado por Ceará, que começou neste mundo do câmbio paralelo como funcionário do Alberto Youssef, que era o megadoleiro brasileiro, famoso na Lava Jato… O Youssef também é de Londrina, como o Cabeça Branca, têm uma idade aproximada, se conhecem há muito tempo. Nesse processo de lavar dinheiro do tráfico e dos políticos tudo se misturava… A política chegou perto do Cabeça Branca por essas vias tortas. Claro que dinheiro não tem carimbo, não dá para perceber qual era o dinheiro do Cabeça Branca, qual era o dinheiro da Odebrecht, por exemplo, ou de grandes políticos, mas é um facto que houve essa mistura.
O Cabeça Branca é descrito como um diplomata, que fornece portugueses, mas também organizações rivais como o Primeiro Comando da Capital (PCC) ou o Comando Vermelho. Era um verdadeiro capitalista?
Sim. As organizações criminosas brasileiras têm alguma ideologia, são rivais entre elas, mas ele estava acima disso. Ele fornecia para qualquer pessoa que se dispusesse a pagar. Era um autêntico empresário.
Pode estar a comandar a organização que criou a partir da cadeia?
Não sei se diretamente – é possível, porque ele tem contactos com advogados e familiares –, mas o esquema certamente continua ativo. A estrutura que ele criou é muito grande, ele tinha muitos gerentes e, provavelmente, algum deles assumiu a liderança. Os filhos não, porque estão muito ligados à investigação, mas alguém mais discreto, mais longe dos laços familiares… Acredito nessa possibilidade.
Ao contar a história deste personagem não receia glorificá-lo? Isso não acontece com os livros e séries de TV dedicadas aos traficantes?
Eu tenho essa preocupação, mas, para mim, é muito claro que nenhuma história nem nenhum traficante acabam bem. Ou é cadeia ou é cemitério. O narcotráfico pode trazer dinheiro, poder, mas tudo isso é momentâneo, não há final feliz.