Há poesia depois da Pandemia

Da mesma forma que houve poesia depois de Auschwitz, Holodomor ou Srebrenica, também a haverá depois da Pandemia – pois enquanto houver Homem, haverá poesia.

Desde as vésperas do nascimento de Cristo que não há, no Ocidente, uma fadiga civilizacional tão grande como a que hoje se sente. A visão ocidental do Homem está esgotada. Desde 1882 – quando notámos, pela primeira vez, que havíamos matado Deus – temos conhecimento de que a narrativa do Homem Ocidental se está a esvair em sangue. As duas guerras mundiais vieram, por fim, estripar a ideia de que o Homem está progressivamente a ser levado pela mão em direção à idílica Cidade de Deus. Lyotard aponta Auschwitz como a ‘liquidação’ da Modernidade. Vivemos, portanto, no pós. E a nossa postura perante isso é problemática. Somos a geração que se distingue por andar a fumar as cinzas memoriais do passado – algo que se tem relevado extremamente tóxico para o pulmão ocidental. O Ocidente está tão sem ideias e esgotado que passou a usar os óculos na nuca, ao invés de nos olhos. Em vez de se reinventar com uma postura de harmonia para com a natureza, reinventou-se tornando-se no maior inimigo de si, dissecando compulsivamente toda e qualquer ação por si cometida no passado, num autêntico banquete de canibalismo cultural.

Absolutamente narcisista, o Homem Ocidental tanto erra em continuar a achar que o mundo foi feito à sua medida e que, por isso, caminha para a sua salvação – esteja esta no casino ou na igreja –, como em desconstruir toda a sua história e inerentes racismos, escravaturas ou ações desonrosas. O Homem Ocidental terá que deixar de se levar tão a sério e entender que o seu lugar é ao lado do porco que comera ao jantar, com as virtudes de poder amar, sentir a beleza, e sonhar – três razões suficientes para viver com consciência ontológica.

E se Auschwitz, o Holodomor, e a Guerra dos Balcãs não foram suficientemente graves para colocar o Homem e a sua visão pornograficamente antropocêntrica no lugar, eis a mais recente estalada da natureza: uma Pandemia. Atenção, pois não pretendo comparar o horror destes massacres ao da covid-19 – o ponto é que tanto os primeiros como o segundo abalam a estrutura ontológica do Homem Ocidental. Imaginemos uma mesa de snooker: se Lyotard, ao dizer que Auschwitz foi a liquidação da Modernidade, já tinha colocado a bola no buraco, a Pandemia não é mais do que o ruir da rede que a aguentava nesta até então. PÁÁ! A narrativa de que o Homem é o centro da Terra cai com estrondo. Só os surdos não ouvem o seu eco, só os cegos não veem os seus estilhaços e só os insensíveis não sentem o seu abalo. A covid-19 é a vitória final da ideia de que nós não fomos feitos para o mundo ou de que o mundo foi feito para nós.

E quer isto dizer que estamos condenados a viver num mundo cinzento, triste e sem esperança? Pelo contrário! Da mesma forma que houve poesia depois de Auschwitz, Holodomor ou Srebrenica, também a haverá depois da Pandemia – pois enquanto houver Homem, haverá poesia. E por mais que este Homem esteja conceptualmente esgotado, haverá sempre beleza na poesia que será feita sobre este seu esgotamento.

Cabe ao Homem Ocidental recuperar a humildade de que o seu verde é o da natureza e não o do dinheiro. Cabe ao Homem Ocidental recuperar a virtude do amor ao humano e não do amor à máquina. Cabe ao Homem Ocidental apreciar mais o toque da terra do que o do betão. Cabe ao Homem Ocidental reinventar-se: munido do espírito de que não caminha para um jardim divino no céu, pois tem, na Terra e na terra, o jardim mais bonito de que algum dia poderá fazer parte.