Rocambole: O mais rocambolesco de todos os heróis

A vida da personagem de Ponson du Terrail, patife da pior espécie, obecada por dinheiro, pronta para qualquer velhacaria, até mesmo o assassínio, antes de sofrer uma epifânia que o levou para os caminhos do bem, foi tão confusa que o autor foi obrigado a escrever um livro só para deslindar as suas incoerências. 

Escrevia furiosamente! Era como se a imaginação lhe tomasse conta da mão e o obrigasse a traçar palavras negras no papel em branco. As páginas acumulavam-se em livros e os livros acumularam-se numa extensa obra de uma originalidade perturbante. Chamava-se Pierre Alexis, Visconde do Ponson du Terrail, nasceu numa pequena comuna do Sudoeste de França, província dos Hautes-Alpes, no dia 8 de Julho d 1929.

Filho de gente com desejos de nobreza, viu a luz pela primeira vez nas extensas propriedades do seu avô materno, Toscan du Terrail. Os pais também não escondiam a vaidade. Ferdinand Marie de Ponson e Marie Suzanne Bénédicte Toscan du Terrail, afirmavam-se descendente de Pierre Terrail, Senhor de Bayard, que ficou famoso por uma série de façanhas militares e pelo seu comportamento heróico na Batalha de Gargliano, entre franceses e espanhóis pela posse do Reino de Nápoles, no dia 29 de Dezembro de 1503. Pormenores que não escaparam à memória do jovem Pierre que absorvia todos os actos de valentia como se fosse uma esponja.

Se entre 1838 e 1844 o encontramos a estudar afincadamente no Colégio de Apt, aos 16 anos já estava no Liceu de Marselha e preparava-se para se lançar numa carreira futura na Escola Naval. Pelo caminho, o contacto frequente com um dos seus mestres, o professor Suzini, uma personagem fascinante que era leitor compulsivo e tinha relações de amizade com quase todos os escritores franceses de renome da época, fez germinar em Pierre novas ideias. O mar começou a parecer-lhe cada vez mais entediante. Começou a rabiscar cadernos com noveletas, atirou-se de cabeça para a concepção do seu primeiro romance e, com a naturalidade das coisas simples, caiu redondo no exame para a Escola Naval, chumbado sem dó nem piedade.

Ponson du Terrail não se sentiu minimamente afectado com a reprovação. Pegou no orignal do seu livro, levou-o à consideração do director do jornal Courrier de Marseille e, uma semana mais tarde, encheu o peito de satisfação ao ver que seria pubicado em fascículos sob o pseudónimo de Georges Bruck. Tratava-se de um folhetim de amor e lágrimas, algo que não deixava perceber em que tipo de escritor se viria a tornar com o passar do tempo.

A farda
Pierre parecia condenado a usar farda, na marinha ou fora dela. Apanhado em Paris, em Fevereiro de 1848, pela Terceira Revolução Francesa, um levantamento popular impulsionado pelos liberais e pelos republicanos que conduziu à abdicação do rei Luís Filipe a favor do seu neto, Filipe de Orleães, dando início à II República, viu-se de arma na mão e promovido a oficial. Uma grandessíssima estucha para o jovem que só queria embrenhar-se cada vez mais na literatura e se viu absolutamente fascinado pela obra de Louis Reybaud, Jérôme Paturot – À la Recherche d’une Position Sociale. Se já tinha decido seguir a carreira de escritor, a obra de Reybaud afastou as últimas dúvidas que ainda bailavam na sua cabeça.

Durante os vinte anos que se sucederam, Pierre escreveu sem parar. Levantava-se às cinco horas da manhã e só interrompia o trabalho à noite. Produziu uma obra. E a partir de 1850, começou a publicá-la, distribuindo-a por jornais. O seu estilo era inédito de romance folhetinesco. As páginas do La Mode e do l’Opinion Publique foram recebidas entusiasticamente pelos leitores. O seu livro Baronne trépassée (1852), história macabra de uma vingança levada a cabo nos confins da floresta negra só teve rival na vampiresca obra de Paul Féval, La Ville Vampire, uma paródia bem humorada sobre vítimas dos chupa-sangue.

Em 1857, Pierre inventou o herói da sua vida: Rocambole. As primeiras aventuras desta figura extraordinária, incluídas num ciclo de novelas que também teve o nome de Drames de Paris, aproveitaram o rasto de sucesso que os Mystères de Paris, de Eugène Sue, tinha aberto. L’Héritage Mystérieux surgiu no jornal La Patrie. E os franceses devoravam as aventuras de Rocambole como se mastigassem baguetes com cornichons, de tal forma que em pouco tempo Ponson du Terrail se viu a braço com uma agradável fortuna em direitos de autor que lhe permitia escrever o que lhe desse na real gana.

Rocambolesco!
No total, Pierre escreveu nove livros tendo Rocambole como personagem principal. A sua personagem era de tal forma popularizada, mesmo fora das fronteiras francesas, que até um novo adjectivo entrou no léxico internacional: rocambolesco. Le Dernier Mot de Rocambole, por eemplo, valeu à editora Petite Presse uma primeira tiragem de cem mil exemplares em 1866. As aventuras extraordinárias e incríveis de Rocambole tornaram-se, de um momento para o outro, parte da sociedade francesa de então.

Mas o sucesso tem outra face bem menos agradável – a inveja. Ponson du Terrail passou a ser conhecido pelas más-línguas como Tesson du Portail ou Ponton du Sérail. Muitas das suas frases espectaculares foram glosadas e transformadas em pilhérias. «Com uma mão ergueu a espada e, com a outra, avisou-o…»: eis um bom exemplo como a troça entrou para a história da vida de Pierre e do seu Rocambole. Ou: «Quando voltou a erguer-se, estava morto…» e

«Ela tinha as mãos mais frias do que as de uma serpente». Claro que Ponson du Terrail nunca escreveu nenhum destes disparates grotescos, mas a sua linguagem espectacular e o abuso dos pontos de exclamação levaram à vontade alheia do achincalho, que é sempre a arma dos que nem armas têm.

Entretanto Rocambole tinha-se tornado independente do seu autor. Isto é, muitos eram os que sabiam quem era Rocambola e não faziam ideia e quem era Pierre Ponson du Terrail. Les Exploits de Rocambole foi o primeiro passo dado pela rocambolesca personagem. Foi publicado no jornal La Patrie entre 29 de Outubro e 20 de Julho de 1858, em 145 episódios, sob o título formal de Les Drames de Paris (III. Les Exploits de Rocambole) e apareceu em livro editado pela L. de Potter, no final desse ano, em dois volumes:  Les Exploits de Rocambole1 e La Revanche de Baccarat.

Mas, afinal, quem era Rocambole?
Pierre atribiu-lhe  uma carreira de malfeitor. Um personagem criminoso para desafiar os inúmeros heróis de boa índole que infestavam os folhetins do seu tempo. Educado desde a infância por um patife chamado Sir Williams, não hesitava nas burlas, nos roubos de identidade e até  no assassínio. Uma epifânia levou-o a redimir-se: continuou a ser um impostor encartado mas, ao mesmo tempo, um justiceiro marginal.

Orfão desde a mais tenra idade com o nome de  Joseph Fipart, adoptado por Maman Fipart, passou a infância a praticar roubos de todas as espécies. Apanhado pela polícia, foi encerrado numa colónia penal da qual acaabou por se evadir. Refugiado numa velha  pensão gerida pela senhora Fipart, ganha o carinho maternal que nunca teve mas não é por isso que entra no caminho da redenção. Com treze anos de idade cai na teia de um tal Andréa Felipone, conhecido por Sir Williams, um francês de maus fígados que se instalou em Londres e tirava proveito de alguns dos ricaços da sociedade inglesa ao mesmo tempo que vivia em guerra com o seu meio-irmão, Armand de Kergaz pela posse de várias propriedades. Encantado com a falta de escrúpulos do pequeno Rocambole, Sir William torna-se seu protector mas não tarda a perceber que o canalha o trai trabalhando a favor de Kergaz.

As confusões adensam-se página após página. Sir Williams convence o meio-irmão do seu arrependimento e da sua vontade de passar para o lado certo da lei. Este, ingénuo, coloca-o ao comando de uma guarda que tem como objectivo destruir o gangue que assola Paris com os seus crimes: o Club des Valets-de-cœur que, como está bem de ver, são o braço armado do próprio Sir Williams e do seu inseparável pupilo Rocambole, entretanto transformado em Visconde de Cambolh. Ora, essa era apenas uma das várias identidades que o jovem traste assumia.

Como Don Inigo de Los Montes, fidalgo brasileiro – havia sempre uma tendência para que os escritores europeus dessem aos brasileiros nomes de sonoridade espanhola – é derrotado num duelo contra Armand de Kergaz e não vê outra forma de salvar a vida e obter dinheiro senão voltando a enganar e a roubar o seu protector. Pelo caminho, Sir Williams foi mutilado num combate e cortaram-lhe a língua antes de o enviarem para o exílio na Austrália. Rocambole aproveita e toma o lugar dele na direcção dos negócios em Londres.

Um pouco confuso? Talvez. Mas ninguém tem dúvidas de que era essa a intenção de Ponson du Terrail. Era com espectaculares reviravoltas na vida das suas personagens que encantava os leitores e os viciava nas aventuras que brotavam da sua pródiga imaginação.

O arrependimento
Depois de dois anos em Londres, Rocambole regressa a Paris. A sua ganância não tem limites. É um adorador do dinheiro e fará tudo para ficar cada vez mais rico. Desta vez assume a identidade de marquês Albert de Chamery, um pobre diabo que raptou em Londres e enviou sem cerimónias para uma ilha deserta. Surpreendentemente, como não podia deixar de ser, reencontra o seu antigo mentor, Sir Williams, regressado do Pacífico completamente desfigurado e com tatuagens na cara. Agora é ele que toma o lugar de protector e ergue a estratégia de seduzir Concepción de Sallandrera, filha de um Grande de Espanha, a nadar em dinheiro, tendo de, para isso, despachar o noivo da moça que acabou preso na cadeia de Cádiz.

Já que estava com a mão na massa, matou Sir Williams e Maman Fipart de forma a não deixar pontas soltas sobre o seu passado. Não tardou a ver-se perseguido por uma antiga membro Club des Valets-de-cœur, Baccarat, conhecida por Condessa Artoff, decidida a por um ponto final nas suas abomináveis maquinações. Baccarat descobriu ondde estava o noivo de Concépcion, libertou-o e deixou o falso marquês Albert de Chamery no seu lugar.

Transferido de Cádiz para Toulon, Rocambole tem dez anos de cárcere para repensar a sua vida. Decide optar por uma existência dedicada ao bem e junta em seu redor um bando de órfãos que o tratam por Mestre. A mudança é radical. Ei-lo, agora, no papel de um nobre russo, o Major Avatar, e aliado da sua velha inimiga Baccarat para tentar impedir que os pulhas Karle de Morlux e Condessa Vasilika Wasserenoff levem a cabo o seu plano de se apoderarem da fortuna herdada por duas pobres meninas órfãs, Antoinette e Madelaine.

As aventuras e desventuras de Rocambola continuam por aí fora sem sossego, com mais uns anos de prisão e uma tentativa de sucídio, além de variadíssimos ferimentos sofridos no decorrer de combates e duelos. O ponto de incoerência e confusão a que chegaram as suas narrativas, fizeram mesmo que Ponson du Terrail sentisse necessidade de escrever um livro no qual pusesse tudo em ordem na cabeça dos leitores. Chamou-lhe La Vérité sur Rocambole. Tarde demais para quem já não sabia em que acreditar.