Trinta e cinco anos depois, a radiação continua a fazer efeito embora esteja longe de ser fatal. E se a noite do acidente está mais presente do que nunca, a metamorfose para o registo de lenda não apenas se produziu, mas começou a degradar-se, revelando esse elemento de paródia e derrisão, quando uma paisagem de terror é, por fim, conquistada, tornando-se uma atração turística. Assim, a zona de radioatividade de Chernobyl tornou-se mais um desses pontos onde, em busca de emoções, afluem os emissários de «um mundo completamente profano e fanérico» que tudo rebaixam à condição de parque de diversões. Estes que se mobilizam numa vaga deliciada com os sinais do desastre, provam a nossa capacidade de fruir até de um que, embora enfraquecido, continua a ocorrer, de forma silenciosa. Adam Higginbotham, autor de Meia-Noite em Chernobyl, livro publicado no início de 2019, e uma das obras que inspirou a série de sucesso da HBO, esteve várias vezes na cidade vizinha da Central Nuclear de Chernobyl, aquela que foi evacuada algumas horas depois do reactor n.º 4 ter sofrido uma série de explosões. Construída numa zona de antigos campos agrícolas e pastagens, Pripyat era uma cidade de 50 mil habitantes, onde todos os anos nasciam mil crianças. Tinha dois estádios e duas piscinas. A primeira visita que fez a Pripyat foi em 2006, no inverno, tendo encontrado um lugar inóspito, como se entrasse dentro do postal que corresponde de forma muito aproximada «ao estereótipo de uma paisagem industrial pós-apocalíptica». Ou seja, «uma sucessão de postes de alta tensão a estender-se até ao horizonte, numa paisagem monocromática de cinzentos e castanhos». E tudo isso sob o efeito fantasmagórico do nevoeiro, abafando o vidro das janelas do imaginário… Uma década mais tarde regressaria, no final da primavera, início do verão, e viu um cenário diferente. Agora, já lhe parecia um lugar bastante belo, muito verdejante. «A cidade de Pripyat, tendo sido abandonada há 30 anos, foi reconquistada pela natureza. Andamos pela rua principal e há árvores a tomar o lugar dos candeeiros e a crescer no interior dos prédios. E animais selvagens por todo o lado. É um lugar com qualquer coisa de mágico». Uns anos antes, Higginbotham esteve na cidade depois de lhe ser encomendado um artigo sobre a sua ecologia, e lembra-se de nessa viagem ter visto cervos, aves de rapina, marcas deixadas por lobos… «Vi recentemente uma fotografia que um guia que passa muito tempo na Zona de Exclusão colocou no Facebook de um cervo a banhar-se numa poça na praça central de Pripyat. Pode ser um sítio deslumbrante. Mas ao mesmo tempo…». Conta como certa vez, tendo-se afastado do guia e tradutor que o acompanhava, se viu «no meio de um daqueles pátios imensos que há entre edifícios de apartamentos, e tornou-se bastante assustador, senti-me oprimido pela sensação do que seria ser a última pessoa na Terra depois de um apocalipse ter apagado toda a gente do mapa». Este jornalista e autor britânico admite entender o fascínio que aquele lugar provoca, falando de uma cápsula do tempo capaz de nos levar aos últimos dias da União Soviética, mas também, num sentido mais alargado, de nos dar um retrato de como pode ficar o mundo depois de os seres humanos terem desaparecido.
Até hoje ainda se debate o verdadeiro número de vítimas mortais, com estimativas que variam entre as centenas e as dezenas de milhares, e foi o próprio Gorbatchov quem, em 2006, assumiu que aquele desastre, mais do que a perestroika, foi a verdadeira causa do colapso da União Soviética, em 1991. Svetlana Alexievich chamou-lhe «acontecimento-monstro». A escritora bielorrussa galardoada com o Nobel da Literatura em 2015, no livro Vozes de Chernobyl, diz-nos que «numa só noite deslocámo-nos para um outro lugar da História». E explica que na noite de 26 de abril de 1986, depois de uma série de explosões ter destruído o reactor n.º 4 da Central Nuclear de Chernobyl, e com aquele que viria a revelar-se o maior desastre tecnológico do século XX, «demos o salto para uma nova realidade, e essa realidade ultrapassou não só o nosso conhecimento, mas também a nossa imaginação». Adianta que foi como se a ligação entre os tempos se rompesse… «O passado de repente revelou-se indefeso», e isto porque o «arquivo da humanidade não dispunha de chaves para abrir esta porta».
Na obra publicada em 1997, Alexievich condensou de forma pungente e lírica um legado de coragem, e Craig Mazin, o criador, guionista e produtor-executivo da série da HBO, passou dois anos e meio a investigar a fundo o desastre e as suas circunstâncias, admitiu que, no longo período de pesquisa a que se dedicou, Vozes de Chernobyl foi como o pilar sobre o qual assentou a sua perceção do drama humano dessas personagens secundárias que são os grandes desapossados da História. Numa entrevista que deu na altura em que a série estreou, Mazin disse ter lido tudo aquilo a que conseguiu deitar mãos, desde artigos de jornais científicos, relatórios governamentais, memórias escritas por cientistas soviéticos que estiveram em Chernobyl, além dos livros dos historiadores ocidentais. Também viu os documentários e filmes, mas assume que Alexievich trouxe essa outra dimensão ao desastre: «Costumamos ver a história pela perspetiva dos grandes protagonistas, e ela mostrou-nos a história do prisma das pessoas comuns». Ou seja, aquelas que são capazes de nos dar a sentir intimamente o desastre, na forma como põe fim aos nossos sonhos e aspirações, aninhando-se no mais profundo dos nossos receios.
«No cerne desta história está uma pergunta: o que acontece quando nos desconectamos da verdade?», disse Mazin à revista Vice. «E o sistema soviético era, basicamente, um monumento à mentira útil. Eles elevaram a mentira a uma arte: mentiam uns aos outros, mentiam aos superiores, mentiam aos subalternos e faziam-no por um instinto de sobrevivência. Ao fim e ao cabo, isso tornou-se numa coisa com que todos já contavam e a própria ideia de verdade foi degradada. Quando a verdade ameaçava emergir, era atacada. Portanto, achei que a pior maneira possível de contar esta história seria contribuir para o problema com demasiada ficção ou dramatização».
Nos meses que se seguiram ao desastre, a confusão e a crise que se gerou foram agravadas pelos jogos de fumo e espelhos de um regime treinado para produzir um labirinto de ilusões, e embora sete meses depois os restos letais do reactor tenham ficado cobertos pelo sarcófago de aço e betão, pondo fim à contaminação radioativa que se estendeu a três quartos da Europa, Higginbotham esclarece que esta medida de contenção que foi, então, encarada como uma proeza da engenharia soviética não terá sido um sucesso assim tão grande. Para ele, foi mais um triunfo da propaganda soviética do que da engenharia. Reconhece ao regime os esforços feitos durante a operação de contenção dos estragos e limpeza dos detritos radioativos, a qual «resultou num estado centralizado, numa economia planificada, de uma maneira que não seria possível numa democracia ocidental». Quanto ao desastre em si, às explosões que ocorreram à 1h25 da madrugada de 26 de abril de 1986, entende que foi provocado pela confluência de um conjunto de falhas: «falhas na conceção do reator, falhas no procedimento, erros humanos, a própria personalidade dos protagonistas – tudo coincidiu de forma a causar o acidente». E adianta que bastaria tirar um desses elementos para que o acidente não tivesse tido lugar.
Já no que respeita à afirmação de Gorbachov, Higginbotham entende que era «muito conveniente para ele dizer» que o desastre nuclear foi o acontecimento que desencadeou o fim da União Soviética, alijando responsabilidades quanto ao peso que as desastrosas medidas económicas que tomou tiveram nesse resultado. «A verdade é que se houve um facto isolado que derrubou a União Soviética foi a perestroika, foi o seu pacote de reformas económicas», diz o autor de Meia-Noite em Chernobyl. Em seu entender o impacto mais significativo que Chernobyl para o colapso da US foi sobretudo o ter mudado o pensamento de Gorbachov acerca da tarefa que tinha pela frente: a de reformar o Estado Soviético. Foi este desastre que o fez ver que a corrupção, de que já tinha noção quando chegou ao poder, estava enraizada de forma muito mais profunda do que esperava. «Quando se apercebeu exatamente de quão corrupto até o setor nuclear era, ficou convencido de que para salvar a USSR precisava de mergulhar nestas reformas económicas e na glasnost no governo de forma muito mais profunda do que tinha inicialmente planeado». Mas Higginbotham entende que foi depois a forma como abordou essas reformas que acabou por ter um papel decisivo na queda da URSS.
Uns dias após o desastre, o escritor norte-americano Jonathan Schell, que devotou grande parte da sua obra ao esforço para promover o desarmamento nuclear, num artigo de opinião publicado na New Yorker, advertia a terrível lição que se podia extrair de Chernobyl é que o fim do mundo é um evento que há muito nos cerca e cujo golpe fatal se produzirá sem antes nos oferecer qualquer aviso. «Antes de ocorrer, não nos será servida qualquer amostra, nenhum cheiro estranho nos dilatará as narinas, do mesmo modo que não é dado a qualquer homem provar a sua morte, sequer por uma hora, só para ver como é, antes de esta vir buscá-lo. E é evidente que, depois, já nada poderemos retirar da experiência, pois já cá não estaremos. Ora, este evento, como todas os factos decisivos e esmagadores – como o sol, ou Deus – apenas podemos ter deles um vislumbre indireto, captar algum reflexo, servindo-nos das nossas próprias vidas e almas como espelho». Schell lembrava então que bastou a perda de um reactor daquela central, e que este produziu apenas uma fração do dano que seria provocado por alguma das bombas que integram ainda o arsenal nuclear de tantas nações desenvolvidas, e todo um continente tremeu em consequência. Para Schell estes desastres são todo o aviso que vamos receber. E Svetlana Alexievich parecia concordar há pouco mais de um ano, tendo afirmado que a série da HBO foi um desses reflexos que veio alterar completamente a percepção que as pessoas tinham de Chernobyl. «Não é por acaso que tantos jovens se sentiram tocados por esta série. Dizem que assistiram à série reunidos em clubes e que a discutiram. Hoje, eles não são como a geração dos pais deles. Para estes jovens, há um risco muito real que se coloca por questões ambientais, e particularmente no Ocidente, é sobre essa lente que estão a perspetivar as ameaças que vão marcar as suas vidas».