O coração de J. Paul Getty não era de pedra

Mais do que pelos seus méritos como filantropo e colecionador, J. Paul Getty é recordado pela lendária forretice que inspirou o Tio Patinhas.

Um dia destes dei por mim a enrolar um pedacinho de cordel que vinha a envolver um livro acabado de chegar pelo correio e a guardá-lo como se fosse algo valioso. Tentando perceber a origem deste comportamento, recordei-me de uma história do Tio Patinhas que li quando era miúdo.

Havia uma espécie de convenção de milionários em Patópolis (um deles, se não me falha a memória, chamava-se Rick Aço). No hotel, os participantes revelavam atitudes mesquinhas e miserabilistas: um disfarçava-se de pedinte para mendigar uns trocos, outro procurava moedas perdidas entre as almofadas dos sofás. O Tio Patinhas, por sua vez, saltava de alegria ao encontrar um pedaço de ‘barbante’ (nome que pelos vistos se dá ao cordel no Brasil), como se fosse uma preciosidade, e atava a ponta a um novelo (composto por outros pedaços de ‘barbante’ encontrados no chão, presume-se) que levava no bolso. Suponho que radique aí o meu estranho hábito de enrolar o cordel que envolve os pacotes de livros.

Na altura em que li essa história não podia sabê-lo, como é evidente, mas diz-se que a personagem do Tio Patinhas se inspira em duas figuras: uma de ficção, o avarento Ebenezer Scrooge de Um Conto de Natal, de Dickens; a outra real, J. Paul Getty.

Getty foi, além de um poderoso magnate do petróleo, um grande amante de arte, podendo hoje a sua coleção ser apreciada no magnífico museu em Los Angeles que leva o seu nome. Mas talvez mais do que pelos seus méritos como filantropo e colecionador, é hoje recordado pela sua lendária forretice – a tal que terá inspirado o Tio Patinhas.

A maior demonstração desse traço da sua personalidade fê-la em 1973, quando o seu neto adolescente, John Paul III, de 16 anos, foi raptado por mafiosos italianos em Roma. O caso, muito mediático na época, deu origem ao filme Todo o Dinheiro do Mundo, com o grande Christopher Plummer no papel do milionário.

Os raptores começaram por contactar a mãe do rapaz, a atriz Abigail Harris, que já estava divorciada do filho de Getty (J. Paul Jr.) e por isso não tinha muito dinheiro. Em desespero, apelou ao antigo sogro, que deu uma resposta que ficaria nos anais: «Se eu der agora um centavo que seja, em breve terei 14 netos raptados».

As autoridades italianas de início acharam que poderia tratar-se de uma brincadeira ou de um embuste para sacar dinheiro à família americana. Mas perceberam que os raptores estavam a falar a sério quando um jornal local recebeu, entre a sua correspondência, uma encomenda macabra: uma madeixa de cabelo e uma orelha do rapaz.

O coração do Sr. Getty, contudo, não era de pedra. Em segredo, acabou por entregar a um advogado da sua confiança 2,2 milhões dos três milhões de dólares do resgate – exatamente o valor máximo que poderia deduzir nos impostos…
Tiro da estante um livro da autoria do velho Getty: The Golden Age. Escrito em 1968, está cheio de sábios conselhos sobre como preparar uma reforma dourada, fala de impostos e investimentos, mas também sobre o prazer de colecionar arte. «A minha esperança ao escrever estas páginas demonstrar que hoje, na presente Era da Abastança, mais pessoas têm uma maior e melhor oportunidade de viver bem e longamente do que em qualquer momento anterior da história».
O desafortunado rapaz, seu neto, foi a antítese desse ideal. Pago o resgate, acabou por ser solto numa estrada, mas ficou para sempre profundamente traumatizado pelos três meses de cativeiro. Oito anos depois desse episódio, teve uma overdose que o deixou preso a uma cadeira de rodas, sem fala e meio cego. Morreu em 2011, aos 54 anos.