Recebe-nos à porta do seu escritório, no segundo andar de um bairro histórico de Lisboa. Conduz-nos por sucessivos vestíbulos e espaços de trabalho, com secretárias, armários, computador e, sobretudo, estantes bem abastecidas de livros. É aqui que gosta de ler, mas também de trabalhar a fotografia – a sua e a da sua coleção. «É preciso identificar, inventariar, documentar… Até limpar», explica. «Cada fotografia do século XIX precisa de ser limpa e protegida com papéis anti-ácido».
É a essa atividade que se tem dedicado ultimamente. Embora se queixe de que o confinamento impôs «uma rotina pesada» e esteja pessimista quanto ao rumo do país – «tenho um bocadinho de tristeza resignada porque não vejo solução» –, mostra-se sempre bem disposto e excecionalmente jovial para os seus 79 anos. Diz até que está disposto a oferecer-se como «cobaia» no processo de vacinação.
Instalamo-nos numa sala com duas frentes de janelas, a luz bem distribuída e doseada pelas portadas de madeira e cortinados. Uma aparelhagem compacta toca o segundo movimento de um concerto para piano e orquestra de Beethoven, interpretado pelo pianista canadiano Glenn Gould. «Eu não sei o suficiente», comenta, «mas você ouve o Gould, sobretudo com o Beethoven, e reconhece». Depois, a música silencia-se e dá lugar à conversa.
Já foi vacinado?
A primeira dose. Tive um momento psicadélico porque fui vacinado às 11h15 no centro de saúde da Escola Politécnica, tudo muitíssimo bem organizado, fiquei encantado. Às 11h30 entrei no meu carro e ouvi as notícias: ‘A vacina AstraZeneca acaba de ser suspensa’ [risos]. Mas tudo correu bem. Não tive nenhuma reação má, gostava de já ter a segunda dose. Este assunto é todo tão novo que nalgumas coisas nem os cientistas nem os políticos nos ajudam muito. Será que a primeira vacina já torna imune? Quanto? 5%, 50%? Será que a segunda dose vai ser a mesma vacina ou uma das outras?
E será que se pode ou não se pode misturar…
Estou disponível para servir também um bocadinho de cobaia. Pelo que dizem, imagino que vamos passar a viver com este vírus eternamente…
Como a gripe?
É o que parece. Não posso dizer que vivo em paz com a pandemia, não vivo. Já houve um período em que tive mais receio, houve um período em que estive mais à vontade. Tenho-me mantido relativamente prudente, tenho saudades de algumas coisas, de andar a pé, de passear onde há pessoas, de fazer fotografia.
Na cidade ou fora?
Mais na cidade. Gosto muito de fotografar a cidade, na cidade – as pessoas, as ruas. Já consegui duas ou três vezes fazer fotografias de Lisboa deserta, ou quase deserta, o que é interessante. Simplesmente Lisboa deserta é Lisboa morta. Sei que a morte é fotogénica, o deserto pode ser fotogénico, mas apesar de tudo a cidade é vida. Tenho saudades disso e também tenho saudades do cinema.
Eu tinha ideia de que vê muitas séries. Não é a mesma coisa?
Vejo muita televisão. Recentemente dei um passo que para mim foi como chegar à Lua: adquiri um novo aparelho de televisão, que tem acesso à Netflix, HBO, essas coisas. Demorei muito tempo a perceber como aquilo funciona, mas já posso ver séries na Netflix. Sei que isto para qualquer pessoa com menos de 50 anos é a coisa mais fácil do mundo; para mim não é. O cinema que se faz hoje, a televisão que se faz hoje, é muito, muito diferente do que se fazia há 30 ou 40 anos. Na narrativa seriada, que passou a ganhar o primado, há uma mecânica que é cansativa.
Cada episódio tem o seu ciclo.
Isto é muito mecânico – e é desinteressante. Eu de vez em quando vejo um grande filme dos anos 40 ou 50, do Ford, do Hawkes, do Orson Welles, e de repente você vê que há uma mecânica de narração e de produção muito diferente de agora.
As coisas mudaram mas não melhoraram?
Não necessariamente. A partir de certa idade é permitido pensar que nem tudo muda sempre para melhor.
A nível pessoal, como foram estes confinamentos para si? Foram chatos, foram produtivos?
Consegui fazer alguma coisa. O último livro que publiquei, sobre o Salazar, o Cunhal e o Soares [Três Retratos] já foi acabado durante a pandemia. Aproveitei dois ou três meses em que estive muito mais concentrado, porque o volume inicialmente era mais farfalhudo, mais variado…
Esteve a ‘apará-lo’?
Sobretudo o primeiro capítulo foi totalmente novo. Nisso beneficiei do facto de estar mais concentrado. É possível que haja pessoas que tenham aproveitado isto para se concentrar. Mas tenho a impressão de que não é a maioria. Porque é uma rotina pesada. Quando eu fiz a tese de doutoramento, ou quando escrevi outros livros, tinha muito o costume de ir para longe…
Fazia retiros?
Estava lá um, dois, três, quatro meses, isolado, afastado, cheguei a estar sem telefones, sem nada. Mas isso era um exílio voluntário, deliberado. Pode ser que para outras pessoas este período tenha sido convidativo à concentração – para mim não foi muito. É cansativo a pessoa medir os gestos, os passos, quando é que posso ir ao supermercado, depois tenho de ir cortar o cabelo, depois os médicos, os dentistas… É um bocadinho complicado.
Tem pensado sobre as consequências da pandemia e do confinamento?
Estou-me a interrogar muito – e não tenho respostas. Oscilo muito. Em certos momentos penso que vamos de facto regressar ao antigamente. Há outros momentos em que não, em que acho que não vai ser possível.
Houve passos que foram dados e já não é possível voltar atrás?
Não posso dizer que esteja inquieto, mas interrogo-me muitíssimo sobre o trabalho – quer o manual, quer o técnico, e até o trabalho qualificado. Com o tempo, com a tecnologia, com os sistemas automáticos, com a computação, com tudo isso, tem vindo a perder complexidade, tem vindo a perder dignidade, tornou-se um mero fator de produção, que se pode cortar às fatias e em salame. De repente já não é preciso estarmos juntos para trabalhar, podemos trabalhar ligados por redes ou por teletrabalho. Isso já se dizia há 30 ou 40 anos, mas prever é uma coisa, ver a acontecer é outra. Hoje em dia centenas de milhares de pessoas em Portugal estão em casa a trabalhar e não sabem o que lhes vai acontecer. É curioso – e inquietante. Uma parte das utopias do Marx era essa: posso ficar em casa, faço o trabalho durante uma hora e depois vou pescar. Isso era muito interessante mas evidentemente era ridículo. O trabalho como atividade coletiva ou atividade social está-se a perder e não se sabe em prol de quê.
Isso também cava mais o isolamento das pessoas. Até porque algumas têm família, mas outras vivem sozinhas.
E pode alimentar um sistema virtual de vida. Não digo só digital – virtual implica falso. Outro assunto que me preocupa é o dos direitos e liberdades. Nós tomamos por simples o facto de os estados, as autoridades sanitárias e as autoridades policiais e de segurança fazerem sucessivas incursões nas nossas vidas. Onde é que isto vai dar? Já se têm visto suficientes exageros e excessos.
Mas podia ser de outra maneira?
Não sei.
Cada um assume isso como uma questão de responsabilidade, como um sacrifício individual em benefício do coletivo.
Creio que alguns dos beliscões, alguma da erosão dos direitos e das liberdades individuais não poderia ter deixado de existir, porque o risco de saúde e de morte é muito grande. Agora, como sabe, há uma corrente forte que diz que nunca devia ter havido confinamento. E são pessoas competentes, não são imbecis.
Em Portugal pareceu dar resultados.
Acho que deu resultados. E quando houve erros viu-se imediatamente. Mesmo agora estou atento a ver se por acaso não se errou com esta última abertura. Há meio milhão de pessoas vacinadas, mas ainda é muito pouco. Achei uma coisa curiosa. Habituámo-nos a que os técnicos, cientistas, falem com elevadíssimo grau de hermetismo. Ouvimos um bioquímico, um astrofísico – e olhamos para ele como boi para palácio. Essas pessoas, a propósito disto…
Desceram à terra?
Aqueles três ou quatro que vêm mais vezes à televisão, percebo tudo o que eles dizem, acho sensato o que eles dizem, quando não sabem dizem que não sabem. Pelo contrário, os políticos, que nos habituámos a terem uma linguagem mais direta, gostam de falar um charabiá, como se fossem técnicos e cientistas. Ouço os ministros e os secretários de Estado falarem de imunidade e de vacinação com um grau de sofisticação que não tenho a certeza de que percebam o que estão a dizer. E eu não percebo o que estão a dizer.
Falam como especialistas.
E depois vem um especialista e explica tudo direitinho, com humildade e com experiência. O político está sempre, sempre a jogar no seu próprio êxito, fala sempre em prol da vantagem política – e isso afeta terrivelmente a confiança. Creio que em matéria de pandemia ninguém acredita num político.
A propósito das restrições, da erosão dos direitos e das liberdades, acha que em algum momento as medidas de combate à pandemia serviram de pretexto aos governantes para aumentarem o seu grau de controlo sobre os governados?
Acho que aqui nos países ocidentais talvez não. Ainda não foi tão longe. Apesar de ter dado algumas lições – seja para os cidadãos, seja para os candidatos autoritários. Percebeu-se que pequenos passos não provocam grandes reações.
As pessoas acatam?
‘Isto é só por hoje, é uma necessidade, amanhã passa’. Faz-me lembrar um filme muito, muito interessante, de 1970, que se chama O Jardim dos Finzi-Contini, do Vittorio de Sicca. E é sobre uma grande família judia de Itália, um assunto de que normalmente não se fala. Fala-se sobre os judeus na Alemanha, na Polónia, na França, na Itália nunca foi um assunto, apesar de ter havido problemas seriíssimos.
O Primo Levi [autor do clássico Se Isto É um Homem, sobre a sua experiência em Auschwitz], por exemplo, era um judeu italiano.
Exatamente. A família Finzi-Contini é uma família judia aristocrática italiana, com riqueza, com palácios e palacetes em duas ou três cidades. E anda tudo à volta de uma ideia central: ‘Eles estão a avançar, mas não nos vai tocar’. Todo o filme é isso: lentamente, lentamente, só um passo, outro passo. Primeiro são os judeus pobres, depois são os judeus desempregados, depois são os judeus que não são bem judeus, depois são os ciganos, depois são os africanos. Os Finzi-Contini são uma família com um grau cultural elevado e vão acompanhando. ‘Não, por enquanto não vai chegar até cá’. E quando se dão conta é tarde: estão no comboio, são deportados, e é tudo morto. [Faz um compasso de espera] Agora sinto que exagerei [risos]. Mas é interessante ver que os pequenos passos não provocam reações imediatas. A experiência está feita. Estamos num momento em que o grau de fragilidade e desproteção é cada vez maior, e o grau de ameaça é cada vez maior também. Impôs-se esta ideia de que para as grandes ameaças é preciso limitar direitos, evitar movimentos, evitar deslocações, evitar criatividade, evitar ações individuais, ter tudo organizado, levantar à mesma hora, deitar à mesma hora, e acho que vale a pena estarmos todos muito atentos a isto.
Passaria agora a outro tema. Na sessão solene do 25 de Abril, o Presidente falou em «assumir o passado, sem autojustificações nem autoflagelações» e alertou para os perigos de olhar para o passado com os olhos de hoje. Identificou-se com esse discurso?
Achei o discurso bem construído e no ponto. No papel de Presidente da República era-lhe difícil ser mais…
Mais incisivo?
Claro. Faltou-lhe incisão. Mas houve um aspeto que me pareceu interessante. Uma grande parte dos comentadores acha que é tudo cinismo e hipocrisia – eu achei comovedor que ele assumisse: ‘Sou filho de um governador de Moçambique, sou filho de um governador do Império’. É muito frequente ter-se a sensação de que uma parte dos afetos do Presidente Marcelo são afetos instrumentais. Abraços, beijos, etc. E neste caso ele utilizou uma linguagem e teve um gesto que do ponto de vista dos sentimentos foi superior, mais genuíno, e com mais consequências. Evidentemente que não disse tudo. Conseguiu arranjar maneira de não falar das coisas muito graves que estão a pesar em cima de Portugal – a corrupção, o crescimento económico, o financiamento, a questão europeia. Mas também podia fazer mais um discurso republicano daqueles que já ninguém suporta. Esses discursos rituais, litúrgicos são cada vez mais desinteressantes, e estão em todo o lado. O 5 de Outubro, o 25 de Abril, o 1.º de Dezembro – a maior parte não serve para nada. Até tem efeitos negativos.
O Presidente fez uma coisa pouco comum nestas ocasiões, que foi um discurso com substância…
Ele conseguiu afastar os problemas importantes, graves e dramáticos da atualidade, para um assunto que é também central. Eu insisto muito neste ponto: quem quer ser proprietário da História não é para ser proprietário da História, é porque quer o poder político. Quer mandar em Portugal. E está convencido de que a História é um processo de legitimação. Porque é que os dirigentes políticos portugueses, desde o século XIX, foram buscar o Camões e o Pombal? Porque é que os oposicionistas do salazarismo estavam sempre a ir buscar o António José de Almeida e mesmo o Afonso Costa – que a meu ver é uma das grandes pragas que aconteceram em Portugal? Mas iam buscá-lo. É este processo de legitimação que faz com que as pessoas vão à História para justificar o seu poder. Agora, isto, sendo verdade, não é toda a verdade. E estamos numa situação – digo isto até com receio…
Receio de ser mal interpretado?
Sim. Nós vamos ter um problema de pele. De cor de pele. Por muitos anos. Veja o que se passa em toda a Europa e nos Estados Unidos. E até no Brasil, que é um dos países mais multirraciais. Se você olhar com seriedade e com rigor, isto não se resolve nem com decretos-lei, nem com medidas na Polícia – agora vou pôr na Polícia três chineses, quatro negros, dois mulatos, cinco índios, três do Bangladesh…
Os Óscares este ano também foram um bocadinho isso.
É mais ridículo que um penso rápido. Você não pode tratar coisas sérias desta maneira. Para mim é muito pior o que se está a passar e o que está a acontecer com a desigualdade social e com a pobreza – pela primeira vez desde há muito tempo a pobreza e a desigualdade estão a crescer. Além disso, a cor da pele e o racismo em certos sítios resumem-se a duas coisas: branco e preto. E o conflito entre cores é muito facilmente explorável, porque não dá trabalho nenhum. Isto vai envenenar a democracia durante muitos anos. E eu não vi ainda, não conheço reflexão suficientemente serena, liberal, mas muito forte, com autoridade moral para encarar esse problema. O que Macron está a fazer, a meu ver, é das maiores tolices do mundo. Já pediu desculpa a tudo o que era cor, já prometeu restituir tudo o que está em França, nos museus e nas academias. Ainda não restituiu nada, mas anda há cinco anos a dizer que vai restituir. Os países europeus estão cheios de complexos de culpa, só sabem ceder, ceder, ceder, e sentir-se culpados. Que é das coisas mais confrangedoras – para mim, pessoalmente. Eu não sinto orgulho por ter chegado à Índia, porque não fui eu que cheguei, nem foi ninguém conhecido [risos]. Não me sinto culpado de Wiriyamu. Não fui eu nem a minha família que estivemos lá. Não sinto culpa nenhuma, nenhuma, nenhuma. Mas a maior parte do mundo europeu, e os portugueses em particular, sentem culpa e sentem orgulho. Sentem orgulho indevido e sentem culpa indevida. E não há pior receita para conflitos.
Quando eu era miúdo, dizia-se que a raça, branco ou negro, não era o importante. De repente parece que voltou um aspeto central.
É por isso que lhe digo que vamos viver com isto durante anos. E com conflitos. Hoje em dia um livro pode ser bom se for preto – ou branco, ou asiático. Para mim, a origem não é o início de nenhuma avaliação. Se é branco, preto, amarelo ou castanho, se é nórdico ou asiático, é-me totalmente indiferente. Temos de ver o que está lá dentro. O mundo está a organizar-se de tal maneira que a origem do gesto já é meio caminho andado. No bom e no mau sentido. Vamos ao caso americano, que tem bons e maus exemplos. Eu estou convencido de que a Polícia americana bate de mais e mata de mais. E proporcionalmente mata mais negros do que brancos. Proporcionalmente – porque em números reais a Polícia americana mata mais brancos do que pretos. Simplesmente, a violência da Polícia exercida sobre brancos passou a ser aceitável, enquanto a mesma violência exercida sobre negros passou a ser um caso de bradar aos céus no mundo inteiro. Nos últimos meses houve dez ou quinze casos de mortes de brancos pela Polícia. O assunto no dia seguinte acabou, não se falou, não se sabe quem foi nem quem não foi. Se for negro, dá romance, dá história.
Para o ano, 2022, já vão ser mais anos de democracia do que de ditadura. Começamos a ouvir muitas pessoas desiludidas, até em virtude de problemas que já mencionou. Acha que as aspirações das pessoas que vibraram com o 25 de Abril saíram frustradas?
As pessoas da altura? Que viveram o 25 de Abril?
Exatamente. Quais eram por exemplo as suas aspirações, as suas esperanças?
Em 74 eu queria a liberdade, isso era o essencial.
Não pensava mais para a frente?
Em 1968, 69, ainda pensava que uma mudança revolucionária, mais ou menos socialista, mais ou menos social-democrata, era indispensável. Em 74 não. Em 74 a minha convicção era de que era preciso liberdade, democracia, constituição, Europa. O resto vinha depois, e dependia do que a população quisesse. Há a velha e famosa frase – ‘Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril’. Estou convencido de que não é isso que pensa a maioria das pessoas. As pessoas da minha geração acho que estão relativamente felizes com o facto de viverem em liberdade e em democracia. Ainda assim, acho que a grande mitologia do 25 de Abril vai-se esboroar muito rapidamente.
Mitologia?
Estarmos ainda hoje, passados quase 50 anos, a fazer discursos e a discutir se valeu ou não valeu a pena ter havido um golpe que criou a democracia. Quanto mais tempo é que vamos continuar a comemorar? Eventualmente até à próxima revolução. Durante 50 anos foi o 28 de Maio, agora durante 50 ambos é o 25 de Abril. Antes disso havia a Maria da Fonte, havia o 5 de Outubro, o Pombal… Se podemos ganhar alguma coisa com a democracia é entrarmos num ritmo em que há alguma continuidade e fluidez histórica, e não estarmos sistematicamente a pensar quando é que vai romper de novo nem estamos constantemente a comparar com o antes de romper. Não se aguenta um país a fazer sistematicamente o balanço do 25 de Abril. Daqui a dois anos assinalam-se os 50 anos. Já se percebeu que vai haver 30 filmes, 60 livros, uma comissão nacional de comemorações, mais uma comissão disto e daqueloutro… Ok, faça-se. Mas é cada vez menos importante. Portugal habituou-se em 200 ou 300 anos a viver de ruturas. Os democratas rechaçam o salazarismo totalmente. O salazarismo vituperou a República. A República vociferou contra a Monarquia. E isto tem sido a mecânica da evolução política portuguesa.
É sempre por oposição, por rejeição.
E varrimento. Muda os nomes das ruas, muda os feriados. É um mimetismo totalitário, que foi levado à última consequência pelos franceses. Os franceses mudaram até os nomes dos meses do ano.
Quando me referi aos desiludidos de Abril estava a pensar em duas coisas muito concretas. Uma tem sido bastante repetida, que é Portugal estar na cauda da Europa. Outra são os casos de corrupção, alguns ao mais alto nível, e a incapacidade da Justiça para agir.
A corrupção para mim é o mais confrangedor. A corrupção e a Justiça. Quanto ao desenvolvimento económico, é verdade que nos estamos a aproximar da cauda da Europa. Todos os países que se libertaram da ditadura depois de nós, e muitos deles tinham estados de desenvolvimento inferiores ao nosso, adotaram políticas mais abertas, mais dinâmicas, mais de mercado, mais ‘liberais’, e estão-nos a ultrapassar. Todos os anos há mais um país ou dois que nos ultrapassam. Isso é muito grave.
Preocupante?
E preocupante. Praticamente a indústria portuguesa está a desaparecer, o turismo estava muito bem mas aconteceu o que aconteceu, o que só mostra a fragilidade do setor, nas tecnologias avançadas e científicas não temos grande especialidade, não temos investidores, não temos capitalistas, não há estrutura bancária. As grandes empresas que podiam desempenhar um papel de drivers, de motores, as CUFs, as SONAEs, a EDP, a PT, a Galp, a Petrogal, os cimentos, as grandes têxteis, as grandes empresas que representavam uma espécie de vanguarda da economia portuguesa, está praticamente tudo destruído. E a banca também. Metade foi morta, a outra metade foi vendida a grupos estrangeiros. Não estou a dizer que a banca nacional é melhor do que a outra, mas haver uma banca portuguesa podia dar alguma racionalidade à economia. Mas a insuficiência económica é obra dos homens. Se você trabalha mal é culpa sua – do trabalhador, do empresário, do banqueiro, do dirigente político, seja quem for. O problema na corrupção é que há uma deliberação malévola e nefasta de causar dano aos outros, de causar dano ao país. Há 20 ou 30 anos que estamos a ser alertados para a corrupção, para a insuficiência da Justiça. Sabe-se tudo, já se percebeu que tanto o PS como PSD são os grandes viveiros da corrupção em Portugal. Há poucos dias um responsável disse que tudo o que existe em Portugal de importante de legislação contra a corrupção foi obra do Partido Socialista. Muito bem. Também quase tudo o que houve de corrupção foi obra do Partido Socialista. [risos]
Temos os casos de Manuel Godinho, o sucateiro, de Armando Vara, autarcas, além das suspeitas sobre Sócrates…
Grande parte dos casos que vemos na atualidade são obra de governos do PS. Que está agora a tentar limpar-se, a fazer de si próprio uma virgindade. E tem conseguido, não digo que não. Mas há de se perceber que não é. Tal como há vinte anos o PSD era o grande centro de interesses de corrupção, de promiscuidades, de porta giratória. Cada qual com a sua linha, estes dois partidos contribuíram seguramente para a democracia, para a estabilidade, para a integração europeia. Mas também são os dois partidos que mais contribuíram para a corrupção em Portugal. E não se preocuparam em combatê-la. Fizeram leis anódinas, tão emaranhadas, tão complicadas, tão burocráticas que não servem para nada. Eu só me deprimo quando não vejo solução…
E para isto, vê solução?
Não vejo.
Não há vontade?
Não há vontade e não há liberdade. A vontade não chega – é preciso não estar preso aos interesses. E não vejo quem esteja totalmente solto nos grandes partidos para fazer frente à corrupção. E não vejo uma Justiça suficientemente livre, entre os diferentes setores não vejo corpos profissionais suficientemente livres e isentos – e, sobretudo, não interessados em rivalizar uns com os outros. O que se passa entre Ministério Público e magistratura, e o que se passa entre a baixa magistratura e a alta magistratura, de conflitos profissionais, políticos, idiossincráticos… é confrangedor. O caso Rosa /Alexandre parece uma caricatura. É um tribunal que só tem dois juízes, que são opostos e que estão a trabalhar no mesmo caso… Parece uma banda desenhada. O problema é que há muitos Rosas e muitos Alexandres em Portugal.
Nessa guerra Rosa / Alexandre toma partido por algum? Ou mais partido?
Não tomo partido. Acho que o Carlos Alexandre errou. Aumentou o processo até limites insuportáveis para a força humana – está para lá da força humana, como dizia o nosso poeta. Pensar é seriar os problemas e resolvê-los um a um, não é aumentar, aumentar, aumentar. Devo dizer que cheguei a uma altura em que me perguntava se não é deliberado que o processo esteja deste tamanho para que não haja processo. Hoje já não penso isso. Mas aquilo tem erros de todo o tamanho, ao que consta. E o maior erro, a meu ver, é querer ter num só processo dezenas de culpados, dezenas de casos, dezenas de crimes, etc.
E do outro lado?
O juiz Rosa, ou por excesso de ‘juridismo’ ou formalismo, errou. Errou em muitos dos juízos que faz naquele despacho, errou ao tentar ele próprio julgar – não era para isso que estava lá – e creio que errou ao tentar desculpar a maior parte dos arguidos. Se o fez por convicção, por crença, por amizade, por má informação, por erro epistemológico, não faço a mínima ideia.
Surpreendeu-o esse despacho de pronúncia?
O despacho do juiz Rosa tem algo de terrível, que merece um romance. Iliba dezenas e dezenas de crimes, acaba com dezenas de processos, iliba dezenas de arguidos, parece uma operação de saneamento – ninguém é culpado de nada. Mas de repente, em meia dúzia de casos, é muito mais assertivo do que o anterior. O juiz Ivo Rosa já julgou Sócrates – o que é um erro, também. Vivi algum tempo convencido – não digo que fosse uma estratégia conspirativa – de que estava a acontecer uma erosão permanente. Era como um monte de açúcar com água à volta. Uma erosão lenta dos processos, dos arguidos – este prescreveu, este não é verdade, para este não há prova, os números não chegaram do Brasil, a conta da Suíça não chegou a tempo, este denunciou mas arrependeu-se – e lentamente, em dez ou vinte anos, ia tudo ser apagado. Esse era o meu receio. E ainda hoje penso isso. Se começarmos a fazer as contas ao que já prescreveu, ao que vai prescrever a breve prazo, à duração dos recursos possíveis, a minha convicção é de que quase nada vai sair daqui. O que é uma condenação histórica da Justiça e do Estado em Portugal.
Uma demonstração de impotência, de incapacidade?
Impotência cúmplice. Com uma espécie de interesse na manutenção destas regras, destes procedimentos e destes atores.
E como se sai daqui? Fala-se muito da reforma da Justiça, mas acredita que ela vá para a frente?
Esta ministra acaba de propor uma dúzia de medidas legislativas, mais um documento de estratégia de luta contra a corrupção. Se quer que lhe diga, acho que tudo o que está ali está certo. Mas é tudo insuficiente. Tenho um bocadinho de tristeza resignada porque não vejo solução. Não vejo que isto se possa resolver com um cavaleiro que vem aí de espada na mão, um manto branco e um chapéu, pôr isto em ordem. Se esse senhor chegar um dia, em princípio será pior do que os outros. Como é que se chegou a isto? Era uma boa história para contar. Eu não sei o suficiente. Sei que o 25 de Abril, para usar uma frase eterna, ainda não chegou à Justiça. Na altura, com exceção dos juízes do Tribunal Plenário [que julgavam os casos políticos], o resto do aparelho de Justiça ficou conforme estava. A partir de 74-75, as modificações foram sempre muito graduais, e geralmente traduziam-se em penetração, isto é, aumentava mais 50 juízes, mais 50 delegados do Ministério Público, mais 200 para a Polícia Judiciária, e grande parte dessas fornadas eram fornadas políticas e partidárias.
Houve grupos que se foram infiltrando?
Há quem diga que há grandes interesses da Maçonaria. É capaz, mas também há de outros que não são da Maçonaria. Há interesses dos católicos. Sim, mas também há de outros que não são. Não, é a influência da Universidade de Coimbra e da Universidade de Lisboa, dizem outros… É muito difícil contar a história da Justiça portuguesa nestes anos e do seu fiasco. A Justiça democrática é um monumental fiasco. Já uma vez disse e repito sem qualquer espécie de vergonha: a Justiça civil e penal do Antigo Regime era mais competente e mais séria do que agora. O problema antigamente era o Ministério Público, que era político, era a Justiça política, dos plenários, os tribunais administrativos, a Justiça económica… tudo isso era do piorio. Mas no aspeto central a Justiça no Antigo Regime era melhor do que agora.
Encontra alguma ligação entre estas duas realidades de que falámos: o facto de estarmos na cauda da Europa e a corrupção que vai corroendo o Estado?
Não me parece que haja uma razão direta e imediata. Se eu fosse um grande capitalista australiano ou americano não investia em Portugal. Portugal não me dava condições, segurança fiscal, estabilidade das políticas financeiras. Ao fim de um ano mudam os impostos, ao fim de três anos mudam as regras de importação/ exportação, ao fim de quatro anos tenho de dar dinheiro à Câmara. Não metia o meu dinheiro aqui. Por isso hoje praticamente não tem grandes investidores internacionais. Tem uns bandidos. Querem comprar as empresas já feitas, querem partir as empresas aos bocados, vender um bocado aqui e um bocado acolá. Ou então tem Estados. Uma das maneiras mais patéticas e caricaturais de privatizar a economia portuguesa é vender grandes empresas a Estados. Vendeu-se ao Estado angolano, vendeu-se ao Estado chinês. O Estado chinês possui uma parte importantíssima da economia portuguesa.
Considera então que o principal problema da economia é o investimento?
Se eu vivesse em Paris ou em Londres, porque é que havia de investir em Portugal? Comprava empresas que desfazia em partes. Porque é que foi tão interessante investir na PT, e depois na EDP? Metade destas empresas foram desmanchadas sistematicamente – com um partido e depois outro [PSD e PS]. Isso talvez contribua para o facto de esses partidos não se empenharem verdadeiramente em encontrar investimentos internacionais. Querem, eventualmente, investimentos que só lhe deem dinheiro a eles. Veja o que se está a passar neste instante em Odemira: a meu ver, é uma espécie de enciclopédia dos erros e misérias nacionais. A política agrícola falhou. Regou mal, não distribuiu a água bem. Deixou fazer estufas a mais. Não fez as estufas como deve ser. Foi tudo errado no ponto de vista económico agrícola e técnico. Depois deixou entrar pessoas de qualquer sítio do mundo, sem papéis. Falhou a segurança, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, falharam as polícias, falhou a Câmara. Pessoas que ganham por vezes um euro e meio ou dois euros à hora para trabalhar e trabalham doze a dezasseis horas por dia? Que vivem em quartos que dormem doze ou catorze? Os serviços médicos, serviços da segurança social, o Ministério do Trabalho, a Câmara Municipal, a Freguesia, o Ministério da Agricultura, a Polícia, a GNR, falharam, não cumpriram os seus deveres e taparam os olhos.
O próprio primeiro-ministro inaugurou aquelas estufas.
Colaboraram todos, é uma verdadeira enciclopédia do nosso subdesenvolvimento, do erro político, económico e social. Como é que você pode contratar pessoas que são transportadas por negreiros? A muitos deles tiram-lhes os passaportes, em casas onde há lugar para seis dormem 20 ou 30. Há anos que isso se sabe. E além de Odemira há mais de cinquenta sítios assim. Onde você vir arrancar a cortiça, apanha de tomate, estufas, estão pessoas nestas condições. E, agora, como se isso não bastasse, o Estado ameaça requisitar a casa das pessoas? Algumas delas residência principal ou residência de fim de semana? É um ato de total vandalismo político. Absoluto vandalismo político.
Por falarmos em economia e dinheiro, vem aí a ‘bazuca’…
Detesto esse nome. Não quero fazer psicanálise barata, mas chamar-lhe-ia uma cornucópia de fortuna, chamar ‘bazuca’ já dá a ideia de que aquilo é para atirar dinheiro para cima. Puumm! Atira-lhes com dinheiro para cima!
Acha que esse dinheiro vai servir para nos desenvolvermos ou, pelo contrário, para manter tudo na mesma?
Em primeiro lugar, corre o risco de alimentar a corrupção. Isso só não vai acontecer se a União Europeia desenvolver uma ação de fiscalização verdadeiramente policial. Se não Portugal daquilo faz um piparote – como foi até hoje. Aproveita uma parte e a outra parte desaparece. E o Partido Socialista não tem demonstrado nem vontade nem meios de querer evitar a corrupção, ou o gasto ostentatório. O gasto ostentatório para proveitos eleitorais é uma forma de corrupção. Essas receitas poderiam ser importantes e interessantes. Tem um erro gravíssimo de não resolver o investimento privado – e sem investimento privado, nacional ou estrangeiro, Portugal não vai a sítio nenhum. Estou convencido de que este dinheiro europeu vai ficar excessivamente à discrição do poder político, excessivamente à discrição do Partido Socialista.
De certeza que já teve oportunidade de olhar para o Plano de Recuperação e Resiliência. Há uma grande aposta na transição digital e na economia verde. Parece-lhe que as metas foram bem traçadas?
Se quer que lhe diga, não tenho competência suficiente. Um programa destes é um programa para Portugal nos próximos dez, vinte, trinta anos, com todas as dimensões possíveis e imagináveis, da ciência, da tecnologia, da economia, da sociedade. Sinto que há uma espécie de desfasamento entre o plano e a realidade. A maior parte dos planos de fomento do antigamente, não serviam para nada. O grande plano conhecido como ‘Documento Melo Antunes’, que se dizia que ia salvar a revolução, em 75, foi à vida. Era um plano muito interessante. Não tinha nenhuma relação com a realidade e a realidade em três meses deu cabo dele. O primeiro plano económico do Portugal democrático foi feito no primeiro Governo Constitucional, em 76. Tem doze volumes – doze volumes! –, organizados por uma cabeça prodigiosa, a Professora Manuela Silva, secretária de Estado do Planeamento, que era de uma genica, e de uma honestidade raríssimas na vida portuguesa. Fizeram um plano perfeito, tinha tudo e mais alguma coisa. Excepto relação com a realidade. Esse plano também foi à vida, e depois dele houve mais dois ou três.
Não passam de boas intenções?
Para ter um bom plano é indispensável ter os instrumentos. Ter o dinheiro, ter os capitais – privados, públicos –, ter as instituições. Quais são as instituições que vão pôr as coisas a funcionar? Onde estão os instrumentos reais de empenhamento, de envolvimento? Julgo que não existem. O Parlamento continua a ocupar-se com a eutanásia e com outros interesses laterais, que não têm nada a ver isto. Não vejo, sinceramente, nem meios, nem instrumentos, nem agentes de transformação capazes de levar a cabo um plano destes. Não vejo grande saída. Pode ser que o Governo no próximo ano se desunhe e encontre os meios, consiga negociar com grandes agências privadas de investimento, que tragam novos investimentos. Porque arranjar quem compre o que já cá está para dar cabo disto já estamos fartos. Fora isso, acho que o plano vai ficar como mais uma boa grande intenção da história portuguesa.
Viu a entrevista do primeiro-ministro à TSF/JN/DN?
Vi uma parte do que foi publicado no Diário de Notícias.
António Costa disse que um partido que negoceia com o Chega, como o PSD, não é um partido de confiança. A minha pergunta é: se o PS pode fazer acordos com o Bloco de Esquerda e com o Partido Comunista, o PSD não tem direito de negociar com o Chega?
Acho que toda a gente tem o direito de negociar e de assinar acordos com quem lhe apetecer. O PS tem direito de negociar com o PC? Claro que tem. Posso é fazer exigências – que o papel esteja escrito, que seja conhecido, que a gente saiba o que lá está. Simplesmente o PS depois tem de pagar o ónus de fazer esse acordo. Nunca gostei do acordo entre o PS e o PC e o Bloco, mas é totalmente o seu direito. À direita, o PSD tem todo o direito de fazer acordos com o CDS, com os liberais e com o Chega, se quiser. Acho que assinar acordos com o Chega significa metê-lo dentro do sistema. Esta ideia não me agrada, mas têm todo o direito de o fazer, tal como na esquerda têm todo o direito de ter o PC e o Bloco dentro do sistema. Por outro lado, o António Costa e o Rui Rio e os seus amigos mais próximos, parecem putos a brincar com berlindes. Empurra para lá, empurra para cá, olha o Chega. Isto é inútil, quem ganha com isto é o Chega, ou ninguém. Pessoalmente não dou qualquer crédito ao Chega. Acho que o Chega, não tem estatura, não tem solidez, não tem pensamento, não tem peso social, não tem base. O Chega tem reflexos condicionados. Tem emoções – então não tem? Tem irritações e arrepios epidérmicos. Não tem mais nada. E estou convencido que a democracia portuguesa, que derrotou o Partido Comunista em 75, e de uma maneira única na História, também derrotará o Chega da mesma maneira, ou melhor ainda.
O Chega não pode ser útil para equilibrar o espectro político, de maneira a que as coisas não estejam tão inclinadas para a esquerda? Temos umas pessoas a dizer que Portugal tem de fazer a sua contrição pelo racismo e pelo colonialismo. Não faz sentido aparecer alguém que defenda o contrário, em vez de estar sempre a recuar?
Acho que o Chega não chega para isso. O Chega não tem estofo, pensamento, liderança, capacidade, base social para isso. Se tivesse, e constituísse essa espécie de contrapeso à direita, acho que faria falta ao sistema político.
Falou-me das suas preocupações, disse que se deprime quando não vê solução. No meio disso, há alguma coisa que lhe dê esperança, apesar de tudo?
Pouco. E se tenho de pensar é mau sinal… Creio sinceramente que na área das ciências, ao fim de 10, vinte, trinta, quarenta anos de desenvolvimento gradual, com altos e baixos, com muita colaboração internacional – portugueses que foram lá fora, outros de fora que vieram para cá –, com a criação de cinco ou seis grandes institutos, em zonas muito sensíveis – o IMM [Instituto de Medicina Molecular] na Universidade de Lisboa, o Instituto Gulbenkian de Ciência, o Centro Champalimaud, o Ipatimup [Instituto de Patologia e Imunologia Molecular] do Porto, centros em Coimbra, em Braga…. Alguns deles têm 600 pessoas a trabalhar. E eu creio que ali há novidades. Portugal sempre teve má ciência, há muitos anos. A ciência em Portugal vivia de um génio ou dois génios. A ciência em Portugal hoje em dia tem muitos génios – isto é, não tem nenhum génio [risos]. Creio que há aí qualquer coisa de particularmente interessante. Na literatura não, nem no teatro, nem nas artes, nem na música. Na ciência sim.
E noutras áreas?
Portugal fabrica jogadores de futebol e treinadores. Tem um péssimo futebol cá dentro, péssimos costumes, as pessoas mais ordinárias que se possa imaginar estão ali. Os árbitros, os insultos aos árbitros – é inacreditável o que aqui se passa. Todavia, há dezenas de treinadores portugueses e dezenas ou centenas de jogadores de futebol – bons, ao que parece – que exportamos. É um fenómeno curioso. Infelizmente não chega para termos um bom futebol cá dentro.
Mas não é uma área que acompanhe, ou é?
De todo. Na economia, não há novas empresas. Apareceram três ou quatro, agora temos três unicórnios. Mas são três. As grandes empresas têxteis que tínhamos estão praticamente todas a destruir, a desfazer, a reduzir. Começou-se a descobrir as potencialidades do Alentejo com o regadio. O Alqueva veio mudar muita coisa. Mas já se estão a fazer disparates, olivais híper-intensivos. Já temos o maior olival do mundo, o olival mais híper-intenso do mundo. Aquelas loucuras típicas de Portugal. Em poucas décadas vão destruir a água, a terra e tudo.
Pior do que os eucaliptos!
A entrada de Portugal no mundo dos contentores com Sines, se prosseguir, acho que é uma boa notícia. Porque liga Portugal ao Atlântico, à América, à China, à Europa. Se deixarem fazer, se deixarem Sines crescer, se puder ligar-se com empresários internacionais, ao caminho-de-ferro, às estradas, aos portos, pode ser uma boa notícia.