Uma Europa (mais) social a partir do Douro

Três académicos, Amílcar Moreira, Carlos Farinha Rodrigues e Céu Mateus, dizem ao Nascer do SOL o que esperam da Cimeira Social da UE. Risco? Ser uma oportunidade perdida. 

Uma Europa (mais) social a partir do Douro

por Ana Maria Simões

O discurso político, o português e até mesmo o europeu, não poupa nas palavras e na ‘ambição’ do momento que é tido como o ‘ponto alto’ da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE). Na cidade com vista para a Serra do Pilar, vão estar 24 dos 27 chefes de Estado e de Governo, a que se juntam dirigentes sindicais e de empresas, membros da sociedade civil e académicos em diferentes painéis para um debate comum, mais abrangente e que acrescente mais à Cimeira Social de 2017, em Gotemburgo, ou que contribua para consolidar o pilar social, aprovado no Parlamento Europeu, e que tem sido o instrumento quadro para a dinamização da política social europeia.

Os objetivos para a Cimeira Social do Porto são ambiciosos, garantem os políticos. Os académicos pensam da mesma forma, mas por razões diferentes: é necessário que os objetivos sejam mesmo muito ambiciosos, prevendo o que se perde pelo caminho ou o que nunca se alcançará porque há questões dos tratados que implicam penalizações para os países que não cumprem – e falamos da taxa de inflação ou do deficit –, mas quando se trata de política social é deixado ao critério de cada país a sua implementação.

Através do primeiro-ministro António Costa, confirmou-se que a agenda social é uma das prioridades desta presidência rotativa. Sendo que a agenda social europeia não é nova, e novos também não são os problemas que, e no limite, foram acentuados pela pandemia da covid-19 – a mesma que impediu a chanceler alemã Angela Merkel, o primeiro-ministro holandês Mark Rutte e o primeiro-ministro maltês Robert Abela de se deslocarem ao Porto. Tirando estes, quem tinha de estar está entre a Alfândega e o Palácio de Cristal, com o Douro ali tão perto e estão, entre tantos outros, os presidentes do Parlamento Europeu, David Sassoli, do Conselho Europeu, Charles Michel, e da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Optámos por voltar um pouco as costas à abundância do discurso político e fomos ouvir a Academia. O Nascer do Sol conversou com Amílcar Moreira, investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, Carlos Farinha Rodrigues, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), e Céu Mateus, professora de Economia da Saúda na Universidade de Lancaster, no Reino Unido, e com eles quisemos perceber que Europa social pode sair desta cimeira .

 

Revitalizar a componente social da Europa

«É importante que haja esta cimeira, que de alguma forma se tente revitalizar a componente social da Europa, e acho que é importante que Portugal tenha assumido isso mesmo, tal como aconteceu em presidências anteriores. Dito isto, o grande risco é que seja, e mais uma vez, uma oportunidade perdida», começa por nos dizer Carlos Farinha Rodrigues. E explica porquê: «Este pilar europeu consagra uma série de questões que seriam importantes para a Europa, mas confronta-se com um problema base, que é a subalternização que as questões sociais têm, e continuam a ter, dentro da Europa». Para o professor do ISEG, isto é algo que a Cimeira do Porto não vai ultrapassar, «o que não significa que não se possam obter alguns resultados», acrescenta, e isso «passa por conseguir alguma consensualização entre as instituições europeias, os parceiros sociais e a sociedade civil para concretizar a definição de algumas metas».

«O que sei é que, passado este período excecional da pandemia, se não cumpro as metas do deficit, sou fortemente penalizado por isso; se não cumprir as metas em termos da redução das taxas de pobreza, não acontece nada», diz ainda Farinha Rodrigues, sublinhando que é importante que da cimeira possa sair o reforço do Estado Social, que, ainda assim, «não poderá ir mais longe porque tem uma deficiência de base: as questões sociais continuam a ser o parente pobre».

Numa Europa que na última década esteve quase essencialmente concentrada nos mecanismos de controle orçamental – e que atravessou a difícil crise do euro  – temos que, em 2021, surge um plano europeu dos direitos sociais que prevê que até 2030 a UE atinja uma taxa de emprego (dos 20 aos 64 anos) de 78%; que pelo menos 60% dos trabalhadores adultos na UE recebam anualmente formação, especialmente em competências digitais; e que os 27 consigam retirar 15 milhões de pessoas da situação de pobreza ou em risco de exclusão social, sendo cinco milhões crianças.

Temos, então, a possibilidade de um «ressurgimento da dimensão social do projeto europeu», defende Amílcar Moreira, investigador no ICS. Mas, para que isso aconteça, é importante que algo mude e que as palavras do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, façam realmente sentido quando afirma que «a bússola europeia não pode ser o PIB, tem de ser o bem-estar dos cidadãos». Uma ideia que reforça a visão dos académicos com quem conversamos.

«Gostava que a Cimeira do Porto fosse um sucesso» afirma Céu Mateus, professora catedrática da Universidade de Lancaster, acrescentando que a Europa precisa deste pilar social «como pão para a boca», também porque «a ascensão da extrema-direita europeia tem a ver com a corrosão do tecido social dos países – não são os pobres que estão à frente dos partidos de extrema-direita, mas são os pobres que votam nos partidos de extrema-direita. Se acabarmos com os pobres não acabamos com a extrema-direita, mas damos-lhe um grande entalão», frisa.

Farinha Rodrigues exprime-se no mesmo sentido, mas aponta outros entraves. «O pilar refere, só a título de exemplo, a necessidade de reforçar o salário mínimo na Europa, de termos mecanismos de rendimento mínimo ativos no conjunto dos países, e aí o consenso está a revelar-se, obviamente, muito mais difícil, com países que, e a pretexto que isso deve ser uma responsabilidade exclusiva de cada um, acabam por obstaculizar que haja políticas comuns nessa vertente social».

Da ausência de políticas comuns europeias para as políticas em Portugal, observa-se que «as fragilidades que existem, ou seja, a resposta que Portugal dá, reflete a natureza do sistema de proteção social que temos, que é um sistema que protege pouco quem tem um vínculo de trabalho mais precário ou que está em grupos que não têm tanto acesso a outros recursos sociais», aponta Amílcar Moreira. «E mesmo que Portugal, no contexto dos países do Sul, tenha um modelo de Estado Providência mais equilibrado, tem, no entanto, outras debilidades quando comparado com os outros países, como é o caso dos países do Norte da Europa», prossegue o investigador do ICS, para quem a Cimeira Social do Porto «marca o relançar da dimensão social do projeto europeu, que esteve muito presente nos anos de 1990 e 2000, com o método de coordenação aberto, nomeadamente em políticas de inclusão social».

 

O abrir de olhos da pandemia

Entretanto, o desenvolvimento institucional da UE, nos últimos dez anos, «não teve nada a ver com a dimensão social do projeto europeu, pelo contrário. Refletiu o impacto da crise financeira», reitera Amílcar Moreira. «Os países têm diferentes realidades e diferentes prioridades políticas, dependente do próprio sistema político, isso é inevitável. Temos tido nos últimos anos o reforço de posições que são muito críticas do Estado social e se nos colocarmos no período antes da pandemia, temos, em vários setores, opiniões profundamente críticas e que pugnam por uma redução do Estado social», afirma Farinha Rodrigues. «No entanto, e se há coisa que a pandemia veio demonstrar, é que as consequências seriam muitíssimo piores. Parece-me que alguns dos maiores defensores do aniquilamento do Estado Social estão um pouco mais calados, porque a realidade entra pelos olhos dentro, mas daqui a uns tempos voltarão com o mesmo discurso», adverte.

«A pandemia veio intensificar problemas que já existiam, com a exceção da doença, não temos problemas novos: já tínhamos pobreza, já tínhamos desigualdade, já tínhamos trabalho precário, contratos de zero horas, salários baixos, problemas na prestação de cuidados de saúde, de sustentabilidade da Segurança Social», diz Céu Mateus, prosseguindo: «A forma como agimos ou antecipamos os problemas é que pode ter sido inovadora, e a pandemia veio mostrar, de uma forma muito óbvia, que foram os serviços, a legislação e a regulamentação prestados pelo Estado que foram fundamentais». Há, na visão de Céu Mateus, um reconhecimento do papel do Estado, que também «teve de se chegar à frente».

Para a professora de Economia da Saúde, a Cimeira Social do Porto pode refletir, e até tendo como exemplo inspirador a ‘agenda Biden’, «a possibilidade de se pôr de lado um certo liberalismo ou neoliberalismo do tempo de Reagan e Thatcher e recuperar uma agenda mais keynesiana, do papel central do Estado e da agenda social no topo das prioridades», embora reconheça «que há um problema de consenso a nível europeu: os países estão em níveis de desenvolvimento muito diferentes, governados por partidos muito diferentes».

Céu Mateus chama igualmente a atenção para um problema dos dias de hoje de Portugal: uma parte significa das pessoas que trabalham são pobres. Farinha Rodrigues dá os números: «33% da população pobre tem emprego, dito de outro modo, há 11% de trabalhadores pobres, mas dentro do universo dos pobres, cerca de um terço, 33%, estão a trabalhar». Para o investigador, promover o emprego é fundamental, mas não só. «É importante assegurarmos a promoção do emprego, mas de um emprego com direitos e com salários dignos, porque é isso que terá consequências ao nível dos indicadores de pobreza».