Se há lugar que me encanta e inspira – talvez até mais do que as livrarias – são as papelarias. Sobretudo aquelas que têm vitrinas antiquadas com artigos cheios de pó, por vezes com o preço ainda marcado em escudos.
Desde miúdo, sempre adorei canetas, lápis, cadernos, borrachas. Ora, além de todo esse material escolar e de escritório, as papelarias têm jornais e revistas, papéis de embrulho, elásticos, recargas para esferográfica, livros de bolso, pequenos brinquedos, brindes – enfim, uma parafernália de artigos que lhes emprestam um colorido e uma aura particulares. Mas, se aprecio o facto de em muitas delas se respirar ainda um ar de outros tempos, não ignoro que isso se deve por vezes à falta de negócio, e preocupa-me que algumas papelarias tradicionais possam a prazo fechar as portas para dar lugar a negócios modernos que são iguais em todo o lado.
Foi numa dessas casas veneráveis que um destes dias me chamou a atenção um artigo perfeitamente comum: um puzzle de 500 peças. A fotografia que aparecia na caixa, em vez de a considerar banal, de tão repetida, pareceu-me extraordinária, e fiquei cheio de vontade de saber mais sobre ela.
Toda a gente a conhece. Chama-se Lunchtime atop a skyscraper (Hora do almoço no cimo de um arranha-céus) e mostra onze trabalhadores, julgo que operários metalúrgicos, no intervalo para o almoço a comer como se nada fosse. Acontece que estão sentados em cima de uma viga de aço, com as pernas a badalar no vazio, a 260 metros de altura. A foto foi tirada no dia 20 de setembro de 1932, mas só em 2003 foi identificado o seu autor, Charles B. Ebbets.
Com os seus 70 pisos, o RCA Building (hoje 30 Rockefeller Plaza), onde foi feita a imagem, é atualmente o 11.º arranha-céus mais alto de Manhattan. Mesmo quando foi concluído já havia edifícios mais altos – e mais bonitos. O elegante Chrysler Building (319 metros) tinha sido terminado dois anos antes, em 1930; o Empire State Building (381 metros) fora inaugurado no ano anterior, em 1931. Ambos já estavam em curso quando se deu o crash bolsista de 24 de outubro de 1929, a Quinta-feira negra de Wall Street.
Foi precisamente para contrariar a Grande Depressão que o primeiro bilionário da América, John D. Rockefeller, promoveu o Rockefeller Center, um complexo de 19 edifícios que tinha como peça central precisamente o RCA Building. Judith Dupré, no livro Skyscrapers (ed. Black Dog & Leventhal), descreve o edifício como «uma massa esguia que transporta o olhar numa viagem para cima sem fim». Quem já lá esteve sabe que isso é bem verdade.
Para atrair inquilinos naquele período de crise, o arranha-céus contava com novidades como ar condicionado e 60 elevadores, alguns dos quais de alta velocidade. O New York Times noticiava, em 1933, que o percurso até ao 65º andar era cumprido num tempo recorde de 37 segundos.
O utro golpe publicitário de génio foi a imagem dos metalúrgicos sentados na viga de aço. O RCA pode não ser tão alto como o Empire State, nem tão requintado como o Chrysler. Mas nenhum outro arranha-céus se pode gabar de ter recebido um almoço tão original como aquele que Charles B. Ebbets registou em 1932.
P.S. Sem qualquer interferência minha, a capa do jornal i de 3 de maio reproduziu a famosa fotografia a propósito do dia do trabalhador. E, assim, por um curioso capricho, dois dias depois de o tal puzzle me ter chamado a atenção, vários exemplares do jornal com a imagem de Ebbets entraram pela porta daquela mesma papelaria.