O Jornal Nascer do SOLcontactou várias personalidades da sociedade civil no sentido de colher as suas opiniões sobre o artigo 6º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital . Tentámos perceber se a lei é mais uma ‘igual às outras’ ou se pode, efetivamente, ser equiparada a ‘censura moderna’. Falámos com os politólogos João Pereira Coutinho e Helena Matos, assim como o constitucionalista Paulo Otero. Este texto vem sentá-los numa mesa redonda, cruzando, assim, as suas visões sobre o tão polémico artigo.
Questionada sobre qual a tradução prática desta lei, Helena Matos explica ao Nascer do SOL que tanto se poderá «não lhe ligar nenhuma» – despindo-se então de aplicabilidade – como «levar a uma efetiva intervenção censória nos conteúdos». Já Paulo Otero explica que o artigo «nunca pode envolver qualquer medida de intervenção preventiva ou de controlo a priori sobre a liberdade de expressão», sem prejuízo de uma intervenção «a posteriori e compatível com uma sociedade democrática, aberta e tolerante». O Constitucionalista ressalva ainda que nada disto impede «que a aplicação da lei seja feita em sentido contrário, conduzindo a soluções aplicativas inconstitucionais, tal como sucede com qualquer outra lei».
Passando para o debate acerca do envolvimento dos órgãos de soberania na chancela à lei em questão, Helena Matos mostra-se «absolutamente surpreendida» pela lei ter sido aprovada sem qualquer voto contra no Parlamento. Diz que tal demonstra a «desatenção que vai na cabeça dos nossos deputados» e afirma que esperava ver «pelo menos a IL» e «alguns deputados do CDS, PSD e PS» a votarem contra. Já Paulo Otero assume uma posição diametralmente oposta, afirmando que tal ilustra «a consciência geral da conformidade da solução com a ordem constitucional em matéria de liberdade de expressão».
Pereira Coutinho alinha-se com Helena nas críticas. Afirma «faltar uma cultura liberal em Portugal», explicando que só tal poderá «permitir que partidos jovens como a IL aprovem uma carta daquelas». Em conversa com o Nascer do SOL, recorre ao contexto internacional para sustentar o seu próximo ponto: explica que «a Economist já havia avisado que, atrelada à pandemia, havia um conjunto de países – Túrquia, Rússia, Brasil e até a Alemanha – a passar leis contras as fake news, pondo assim em causa a liberdade de expressão», no que pareceu um paralelismo ao caso português. Por fim, afirma que estas tentativas de «controlar o discurso na internet e colocar o Estado como vigilante» levam, inevitavelmente, a um clássica questão na política: «Quem guarda os guardiães»?
E o Presidente Marcelo? «Devia ter chamado à atenção para os riscos inerentes a este tipo de texto», segundo Helena Matos, afirmando ainda que isso não seria necessariamente impeditivo de uma promulgação. Paulo Otero, por sua vez, afirma que o «Presidente da República deve ter feito [uma] interpretação sistemática e conforme do artigo 6º da [dita carta] com a ordem jusfundamental em matéria de liberdade de expressão», promulgando-a, por isso, «sem suscitar dúvidas de constitucionalidade».
Afetará o jornalismo?
Pereira Coutinho recorre a uma máxima orwelliana para expor a sua posição: «O jornalismo serve para publicar aquilo que o Governo não quer que as pessoas leiam, o resto é propaganda». Nessa lógica, afirma que «um jornal, ao receber o ‘selo de qualidade’ do Governo, está, na prática, a receber o ‘beijo da morte». Considera, por isso, uma «aberração iliberal» que o Governo «possa ser o decisor do que pode ser ou não escrito».
Depois, acidifica a crítica: «Partindo do pressuposto que o Governo é o maior produtor de fake news, como será possível dar-lhe o poder de vigiar a produção de fake news?». Não se ficando por uma condenação a um putativo futuro, chega mesmo a atacar o status quo da imprensa em Portugal: «Nem sequer devia existir ERC, quanto mais dar-lhe poderes acessórios para vigiar o que as pessoas andam a escrever na internet».
Também Helena Matos considera a lei «muito grave» e um retrocesso nos «passos que foram dados após o 25 de Abril», vendo-a com «grande apreensão». Explica ainda que a «liberdade de imprensa não nasce da produção de meios – jornais, rádios, etc – quimicamente puros», colocando a tónica na «diversidade». A mesma diversidade que, segundo a colunista do Observador, «inclui publicações boas e más, mais independentes ou menos». Constrói um raciocínio usando como exemplo o caso do extinto jornal República, associado ao PS.
Não obstante o seu «facciosismo político», o que estava em causa era «a liberdade das pessoas em fazerem esse jornal». «Devem ter liberdade para tal», explica. Cimenta o raciocínio utilizando outro exemplo: o da revista Gaiola Aberta. E diz que, apesar de «não lhe achar graça», a sua tentativa de encerramento foi «um atentado à liberdade». Por fim, remata a ideia-chave: «A liberdade de imprensa não serve para defender órgãos de comunicação que nós gostamos. Se assim fosse, deixaria de ser Liberdade de Imprensa e passaria a ser uma política de gosto».
Interrogámos ainda Helena Matos sobre a questão de António Abreu – Diretor do Notícias Viriato e em entrevista na coluna ao lado. Abreu viu a carteira de Jornalista ser-lhe negada apesar da ERC considerar o seu site como «publicação periódica de informação geral». Helena Matos considera que estão a fazer de António «um caso para dar um exemplo» e que não vê «razões para António não ter a carteira profissional». Baseada no raciocínio anteriormente exposto, afirma «não estar em causa se se gosta ou não», mas sim se «pessoas em circunstâncias idênticas – ou até diferentes, como o caso dos que trabalham em órgãos de comunicação de clubes desportivos – tiveram acesso à carteira».
Comparação a lei salazarista? Há discordância sobre ser justo comparar-se o artigo 6º desta carta à lei da censura de 1933. Helena Matos considera que sim, já Paulo Otero considera que não.
A politóloga acredita que o artigo «pode ser comparado a qualquer outra censura imposta noutro país e de qualquer natureza política». Acrescenta ainda que «as pessoas têm uma ideia muito ingénua sobre as censuras porque falam sobre elas as à posteriori, achando que toda a gente, na altura, tambémas achou má». Prossegue fazendo uma alusão direta ao artigo 6º, explicando que «a censura é invariavelmente apresentada como projetos de defesa da sociedade perante a mentira e ‘desinformação’». «Nada disto é novo», conclui.
Paulo Otero contraria a politólgoga, afirmando que a comparação só é válida no sentido de que «a liberdade de expressão a permite», não sendo, contudo, «verdadeira». O constitucionalista explica que durante o Estado novo a «intervenção do Estado sobre a liberdade de expressão era preventiva, daí a admissibilidade de censura». Atualmente, «pelo contrário, qualquer intervenção deve sempre assumir natureza repressiva (ou a posteriori)»
O Jornal Nascer do SOL tentou contactar a ERC, a CCPJ e o Sindicato de Jornalistas. Todavia, até à hora de fecho desta edição não foi possível obter qualquer resposta das entidades mencionadas.