Pode falar-me do FILMEU e do papel que a Lusófona tem na sua criação?
O FILMEU é um dos 41 projectos que a União Europeia aprovou ao longo dos últimos dois anos na criação daquilo a que se chamam as Universidades Europeias. Estas são encaradas pela UE como o tubo de ensaio do que serão, no futuro, as universidades na Europa. O programa iniciou-se há um ano e irá prolongar-se, nesta primeira fase, até 2024, sendo expectável que estes 41 consórcios que estão a ser financiados venham a ter um financiamento programático para mais 20 anos. Estas universidades são consórcios de instituições de ensino superior, e aquele que integramos tem quatro instituições. É a Universidade Lusófona em Lisboa (que lidera o consórcio), a Universidade de Cinema e Teatro de Budapeste, a Universidade de Cinema e Artes em Bruxelas, chamada LUCA, e o IDT, que é o instituto politécnico em Dublin, sede da Escola Nacional de Cinema da República da Irlanda. Estas quatro instituições juntaram-se para concorrer ao tal programa, criando uma Universidade Europeia na área do cinema e das artes dos media. Há mais universidades portuguesas envolvidas noutros seis consórcios. Somos a única universidade a liderar um, mas há o Politécnico de Leiria que também lidera outro consórcio.
E que outras formaram consórcios?
Entre as instituições portuguesas em outros consórcios contam-se o Instituto Superior Técnico, a Universidade do Porto, a de Coimbra, o Politécnico do Porto e, como já mencionei, o de Leiria. Além de serem projetos pilotos, estas universidades são sem fronteiras, uma vez que, tendo campus espalhados por toda a Europa, e sendo os graus atribuídos e reconhecidos pelo conjunto destas instituições (aquilo a que a UE tem vindo a apelidar de grau europeus), leva a que o reconhecimento de competências seja automático e que os alunos circulem pelos diferentes países no decorrer dos cursos. Espera-se que estas universidades europeias venham a ser altamente competitivas e que se afirmem como líderes nas diferentes áreas do saber a nível internacional. Ou seja, o intuito da UE é ter instituições de grande porte que lhes permita competir com as instituições da Ásia e dos EUA ao nível do ensino superior. No nosso caso particular, dentro destes 41 projetos há duas no domínio das artes: uma na área das Belas Artes e a nossa na do Cinema e nas Artes dos media.
O que vos diferencia?
A nossa é a única que cruza temáticas relacionadas com as artes e a tecnologia. O nosso consórcio tem já um longo historial de colaboração – são já 20 anos de projetos de investigação e formação na área do cinema e do audiovisual, e somos neste momento os coordenadores e os promotores de quatro mestrados nesta área. Os mestrados Erasmos Mundus foram um dos primeiros passos que a UE deu na criação deste espaço conjunto de ensino superior a nível europeu. E são mestrados que, basicamente, são acreditados e financiados pela UE e que dão um grau comum a várias instituições de ensino no continente. Neste momento, há quatro graus na área do cinema e os quatro são promovidos por este consórcio. O objetivo do FILMEU é, em 2024, ter estabelecido esta universidade, uma entidade de ensino superior transeuropeia, com vários campus espalhados pela Europa, e com a sede em Lisboa. Pretendemos assim contribuir para a competitividade do ensino superior português, e estamos absolutamente convencidos de que há espaço para que Portugal tenha um papel de grande relevo a nível internacional na formação no domínio das indústrias culturais e criativas, e em particular nos domínios do cinema e do audiovisual e das tecnologias ligadas aos media.
Como tem sido o processo de internacionalização?
Existem hoje todas as condições para se criar um polo de excelência e competitividade nesta área. Estamos há muitos anos a trabalhar nesta área e, progressivamente, temos vindo a atrair cada vez mais estudantes de altíssima qualidade. Para lhe dar um exemplo, os últimos filmes realizados ou produzidos por estudantes nossos ganharam o prémio na secção principal competitiva em Lucarno; este ano o Urso de Ouro em Berlim para um filme de curta-metragem foi para um filme realizado num mestrado nosso; tivemos filmes feitos na licenciatura a competir em Cannes, na mostra em Sundance, no TIFF, em Toronto, para além de termos tido dezenas de filmes em mostras paralelas noutros festivais. A nossa convicção é de que é possível atrair para Portugal não só os melhores alunos como os melhores professores. E estamos convencidos de que a melhor maneira de o fazer é trabalhar em rede a uma escala europeia. Portugal seria assim uma espécie de centro deste Hub. O FILMEU parte desta ideia central.
O que falta ainda implementar?
Acreditamos que qualquer área de investigação e formação só se pode desenvolver verdadeiramente se for compaginada segundo aquilo a que a UE denomina o triângulo do conhecimento, ou seja, aliando uma componente de ensino a uma componente de investigação a uma outra de ligação às empresas. E deve assim promover atividades que cruzem estes três domínios. É nesse sentido que estamos a olhar com muita atenção para o que será a aplicação dos financiamentos previstos no âmbito do PRR, nomeadamente no que venham a ser as iniciativas no contexto das chamadas agendas mobilizadoras. Há todas as condições para que o nosso país consiga atrair investimento estrangeiro significativo neste domínio, mas também para promover iniciativas nacionais de relevo, sobretudo numa altura em que o espaço europeu de produção e criação de audiovisual se vai transformar brutalmente nos próximos anos, isto com a nova diretiva europeia e a transposição para o contexto local. As necessidades de produção vão crescer exponencialmente…
Pode explicar quais são as principais alterações a que esta diretiva europeia irá conduzir?
Fundamentalmente, a nova directiva europeia dos serviços de media vem, entre outras medidas relevantes, impor a obrigatoriedade de investimento no setor por todos os intervenientes da cadeia de valor. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que as Netflix, as Amazon, HBO, as Orange, os operadores de telecomunicações em Portugal, todos estes intervenientes da cadeia de valor, e nomeadamente os internacionais, que, até hoje, não eram obrigados a investir na produção europeia passam a ser. Por isso é que estes gigantes do streaming vão começar a produzir em larga escala em todos os países e europeus e serão obrigados a colocar esses conteúdos nos seus catálogos. Isto vai gerar um impulso brutal em termos de empregabilidade, com a necessidade de pessoas bem formados do ponto de vista técnico e artístico, e vai gerar um impulso brutal também em termos de dinâmica de produção, a que os atores locais terão de dar resposta – e a nossa convicção é de que só o poderão fazer em rede. Porque, de outro modo, estes grandes players internacionais vão tomar conta do mercado europeu… Mas já estamos a assistir a reações em antecipação a isto.
Pode dar exemplos?
Ainda recentemente, aqui ao lado, em Espanha, foi anunciada a criação de um novo complexo de estúdios e de um novo mediaparque, e iniciativas deste género terão também de surgir em Portugal rapidamente. Basta pensarmos que um dos clusters mais dinâmicos na Europa e no que toca ao audiovisual fica hoje na Lituânia.
No nosso país, as grandes discussões de que nos vão chegando ecos neste meio parecem centrar-se sempre à volta da atribuição dos subsídios estatais, nomeadamente através do ICA. Frequentemente, vamos vendo as pessoas ligadas ao cinema todas engalfinhadas. Qual lhe parece que será a evolução desta guerra civil quando houve dinheiro a sério a entrar? Acha que vão finalmente ser declaradas tréguas e haverá uma indústria que irá amadurecer para dar resposta a estes novos desafios?
É absolutamente crucial que a questão da diversidade seja aflorada. O sucesso daquilo que venha a ser uma dinâmica de produção para a audiência A não deve de todo eliminar a necessidade de se produzir para o nicho da audiência B, C, D… que vai assegurar essa diversidade cultural, vai assegurar a produção de conteúdos que têm uma elevada circulação internacional, embora falhe em captar audiências locais. O mais interessante que pode resultar deste processo é que se perceba que irá haver espaço para todos, e isto porque todos vão ser necessários. E creio que isso irá, inevitavelmente, apaziguar este clima de conflitualidade constante que se faz sentir em torno do audiovisual português, e que parte muitas vezes da insistência nesse fosso – absolutamente falso – entre o que se chama uma produção comercial e aquilo a que se chama uma produção artística. A grande produção comercial tem de ter uma componente artística, e a produção artística que não tem ambições comerciais, terá aspetos em que se cruzará com um outro tipo de visão comercial que não se liga meramente a uma proposta dirigida às massas. Nós tendemos a achar que qualquer visão comercial está ligada a uma perspetiva de massificação. Isto não tem de ser necessariamente assim. Um sistema maduro e interessante é aquele em que todos têm espaço e em que existem mecanismos de financiamento para todos.
E o que pensa que vai mudar para permitir isto?
Julgo que irá passar a haver financiamento para a produção de topo para séries dirigidas às massas, ou, pelo menos, para segmentos de maior escala, mas também haverá, e é obrigatório que continue a existir, financiamento para um cinema que não corresponde a um género específico, e o qual tem dado a Portugal um reconhecimento internacional que é hoje inegável. O problema deste clima de guerrilha constante é que depois parece que se cai num discurso de ‘ou sou eu ou são os outros’. Mentira. Um sistema maduro é, em primeiro lugar, aquele que impõe uma ordem colaborativa. E acho que vão existir muito mais condições para a colaboração, porque, havendo uma diversificação das fontes de financiamento, irá inevitavelmente haver um enriquecimento qualitativo da produção, o qual deriva também de um enriquecimento quantitativo. Não nos podemos esquecer de que Portugal já teve esse papel. Na década de 40, os estúdios da Tóbis eram os de maior escala em termos de produção ao nível da península ibérica. Portanto, essa perspetiva de Portugal se assumir como uma entidade competitiva no domínio da produção de conteúdos criativos e culturais nem sequer é uma ideia mirabolante, porque já o fomos. Depois até podemos discutir se os conteúdos eram isto ou se eram aquilo, se tinham mais ou menos valor… não interessa. Do ponto de vista das infraestruturas, isto não é nenhum cenário de ficção científica.
O que falta fazer?
O que temos é de trabalhar a uma escala que corresponda a uma visão do mercado internacional plausível. Ora, o que tem acontecido em Portugal é que, hoje, abraçamos projetos que têm uma noção tão desajustada daquilo que são as necessidades efetivas a que podemos corresponder que, depois, muitas vezes desanimamos se não conseguimos alcançar aquilo a que nos propusemos. Este desânimo leva-nos, depois, a esse ambiente de conflitualidade, até para nos libertarmos desse sentimento de fracasso, responsabilizando algo de exterior. Parece-me que esse regime de conflitualidade que vai passando para a opinião pública é resultante desse fosso entre expectativas e aquilo que somos capazes de realizar e, ao mesmo tempo, por essa falta de diversidade ao nível das fontes de financiamento. Como é que diz o ditado? ‘Em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão…’, não é? É este o caso.
E em termos de ganhos económicos?
Outra das principais consequências da transposição da diretiva europeia é a consciencialização do papel muito relevante que as indústrias culturais e criativas podem ter no contexto económico passa pelo aumento e diversificação das fontes de financiamento, o que vai criar oportunidades do ponto de vista artístico, mas também oportunidades do ponto de vista comercial. E uma coisa não choca nem é impeditiva da outra. Teremos é de ter a capacidade de evoluir e adaptarmo-nos a esta nova realidade, e agarrar as oportunidades que nos oferece. No PRR, as possibilidades que resultam das agências mobilizadoras, que é um item específico do incentivo à economia, não podem nem devem esquecer o potencial gigante que as indústrias criativas têm do ponto de vista da geração de emprego, por exemplo. Temos uma tendência horrível para encarar estas atividades como atividades que não geram valor económico. Isto é completamente falso. Se formos aqui ao lado, a França, vemos que, em 2019, a indústria cinematográfica criou mais emprego que a indústria farmacêutica. E, em França, há consciência absoluta da importância que a produção cinematográfica tem, seja ela de género, como a comédia, por exemplo, seja uma produção mais artística, que não assume um género, e que se dirige a outros circuitos e promove outro tipo de valores.
Um dos aspetos do vosso currículo na Lusófona passa por formar produtores. Começa a parecer-lhe que esta área começa a ser convidativa para investidores que possam ter retorno sobre o seu investimento através da produção de conteúdos nesta área?
Sim e não. Sim: o potencial existe. Não: não é uma área atrativa para um capitalista que procure maximizar o retorno direto sobre um projeto. Ou seja, não vai aparecer nenhum unicórnio na área da produção cinematográfica nos próximos tempos. Vão aparecer, sim, modelos de investimento em projetos que terão um rendimento interessante, embora os riscos continuem a ser muito elevados. Mas outro aspeto que pode tornar este setor muito interessante do ponto de vista económico é pela diversificação das próprias oportunidades de produção. O que isto quer dizer é que, se, no passado, em Portugal, por exemplo, estávamos muito limitados à produção de formatos de longa-metragem, e dos formatos serializados de longa duração – ou seja, as telenovelas (formatos orientados para a televisão e com centenas de episódios) –, hoje, há uma muito maior diversidade do tipo de produção e dos canais de distribuição, o que tem potenciado o aparecimento de oportunidades noutros setores, nomeadamente a criação de conteúdos audiovisuais que se dirigem a outras indústrias como o turismo, ou outras funções, como a educação, e outras áreas de inovação tecnológica, como é o caso dos videojogos, a realidade aumentada ou virtual. Desse ponto de vista, as oportunidades de investimento são cada vez maiores, e é muito importante que surjam estruturas empresariais cada vez mais sólidas.
E como vê a evolução deste setor por cá?
Uma das características mais complexas desta área na Europa, é a fragilidade do setor da produção. Por norma, é composto por entidades de pequena dimensão, com uma lógica de funcionamento que se molda a cada projeto, com a sua subsistência e sustentabilidade associada à angariação constante de novos projetos, e com a sua estrutura a mudar de acordo com a dimensão e a dinâmica destes projetos. Isso tem de mudar. Deve haver estruturas que sejam mais sólidas. Um dos caminhos para se conseguir isso é precisamente trabalhando cada vez mais em rede. Ou seja, desenvolvendo uma lógica colaborativa, que possa integrar várias entidades que se complementem ganhando maior escala. A UE está consciente disto, e, por alguma razão a primeira das chamadas FIC que anunciou no novo quadro comunitário é precisamente na área das indústrias culturais e criativas. A UE está absolutamente convencida do papel que esta área terá nomeadamente na recuperação pós-covid, portanto, no cenário económico que está a projetar para os próximos quatro ou cinco anos.
Neste vosso consórcio entre quatro instituições de ensino na área do audiovisual, que apoio é que obtiveram?
O FILMEU tem várias fontes de financiamento. A UE aprovou financiamentos através de vários programas. Há um financiamento base de cinco milhões de euros que vem através do programa Erasmus Mais. Depois há um financiamento adicional de mais dois milhões através do H2020, que é o programa europeu de apoio à investigação. Este é um financiamento para estes três anos da instalação do consórcio. O que é expectável é que, a seguir, no período até 2030, haja um financiamento adicional que rondará os 15 a 20 milhões, e depois haverá um financiamento programático, que se estenderá de 2030 em diante, mas ainda não nenhuma indicação de qual será o montante. Ao todo, neste projeto e na fase de instalação em que estamos, contamos com um investimento global de 10 milhões. É importante frisar a este propósito que Portugal é um dos poucos Estados europeus que não está a apoiar estas universidade europeias. Em todos os outros países (França, Hungria, Alemanha, Suécia, Dinamarca…), as universidades europeias que integram universidades locais recebem também uma subvenção dos governos locais. Portugal, por razões que desconheço e não consigo compreender, não está a fazer a mesma coisa. Acho que isto nos ficou particularmente mal, nomeadamente numa altura em que detínhamos a presidência da UE. O discurso oficial é de que já existe um apoio através da FCT, mas, na prática, esse apoio não tem qualquer ligação com aquilo que está a ser feito por outros países europeus. Basta dizer que, em França, o Estado está a apoiar, não só as universidades francesas que estão integradas em consórcios vencedores, mas também aquelas que apresentaram candidaturas que não foram aprovadas, mas que querem continuar a desenvolver os projetos. Isto diz-nos também muito sobre a diferença de velocidades entre Portugal e outros países europeus na capacidade de incentivar as iniciativas que promovem a formação e a competitividade num âmbito internacional.
Para um aluno que entra no vosso programa na Lusófona, nesta fase de instalação e nos próximos anos, que benefícios é que ele retirará deste vosso consórcio?
À partida, cinco coisas logo de base. A primeira é a mobilidade obrigatória dentro destes circuitos de estudo. Portanto, não há nenhum grau que seja feito exclusivamente com aulas presenciais em Lisboa. Todos os graus têm períodos no estrangeiro, sejam de curta duração, sejam de longa duração. E é importante mencionar que, dentro do FILMEU, não há só mobilidade para as quatro instituições que formam o consórcio, porque nós depois temos um conjunto de parceiros associados, tanto no Norte da Europa, como a Universidade de Aalto, na Finlândia, e a Universidade de Tallinn, na Estónia, e há um conjunto de parceiros fora da Europa, nomeadamente em Los Angeles, nos EUA, e na Austrália. Pela nossa parte, uma das coisas que temos previstas são as escolas de verão nestes países. Já no próximo ano, temos um conjunto de alunos que vão filmar no deserto da Austrália no âmbito da parceria com essa universidade. E, anualmente, desde há seis anos, enviamos 20 estudantes e um professor para participarem num programa de mobilidade que se chama ‘Looking at China’, que é um programa para estudantes de cinema pelo Ministério da Cultura chinês, que convida os alunos das melhores escolas de cinema do mundo para contactarem com a realidade chinesa. Portanto, os benefícios começam por um conjunto de oportunidades de mobilidade que não existem, por norma, nas instituições de ensino em Portugal.
E a segunda questão?
O grau europeu. Ter um grau que não é só concedido por uma instituição portuguesa, mas a uma escala europeia. Esta ideia dos graus europeus é algo que já concedemos ao abrigo do Erasmus Mundus e que podemos depois alargar a todos os títulos de formação. Terceira questão importante é a partilha de recursos físicos e materiais. O ensino na área do cinema e do audiovisual é brutalmente caro, os custos em equipamento e em produção são elevadíssimos, o que tornam esta uma formação muitíssimo dispendiosa, com uma necessidade de renovação tecnológica absurda. De dois em dois anos ou de três em três anos é necessário renovar-se o equipamento, e uma das grandes vantagens deste consórcio é que começámos já a partilhar equipamento entre as várias escolas. Uma quarta dimensão muito importante é a partilha de professores, e assim os professores passam a ser comuns a todas as instituições, e parece-me que isto é muito interessante do ponto de vista do que é a experiência internacional no currículo dos estudantes e no contacto com outras realidades e com outras culturas. E outro aspeto fundamental já no imediato é o acesso a recursos educativos, portanto, tudo aquilo que sejam plataformas tecnológicas, ou bibliotecas, tudo o que sejam recursos digitais complementares ao ensino, gestão, etc., passam a ser comuns a todas as instituições. Isto aumenta exponencialmente os meios à disposição dos estudantes. Isto são cinco vantagens imediatas que correspondem a vantagens competitivas que o nosso estudante tem e que não estão à disposição dos estudantes de uma instituição típica do ensino superior em Portugal.
Há dois anos, no dia mundial do cinema, escreveu um artigo no Público em que falava do crescimento das receitas, nomeadamente em termos de bilheteira. Tendo em conta esta transferência abrupta para o digital acelerada pela pandemia, qual lhe parece que serão as principais alterações que isto acarretará para a indústria nos próximos anos?
Diria que há três cenários que são já mais ou menos inevitáveis. Primeiro, o setor da exibição cinematográfica foi profundamente atingido pela pandemia e isso é transversal a toda a Europa, e muitas salas e muitas distribuidoras terão dificuldade em sair desta crise. Há já um efeito económico dramático, sobretudo sobre este setor da exibição e da distribuição. O segundo aspeto é esse movimento das audiências para um consumo de um perfil distinto de conteúdos, nomeadamente a ficção televisiva serializada, a qual é consumida de uma forma diferente e há dados muito interessantes da BBC que, há uns meses, indicavam que, contrariamente ao que se possa pensar, nem eram só os conteúdos transnacionais que estavam a ver o seu consumo a crescer, ou seja, não são só as séries da HBO, da Netflix, as dos EUA, que estão a ser mais consumidas, é todo o conteúdo serializado, inclusivamente aquele que é produzido localmente. Se olharmos para esta realidade em paralelo com aquilo que está a ser promovido pela nova diretiva europeia, isso leva-nos a traçar um cenário em que, daqui por três ou quatro anos, tal como há uns anos o prime time televisivo em toda a Europa era dominado por produção local, e não pela produção norte-americana, podemos assumir que o consumo de catálogos de streaming será muito significativo a nível dos conteúdos produzidos localmente. Se há uns anos fosse sugerido este cenário, dir-nos-iam que não, que em breve a produção norte-americana tomaria conta disto tudo. Acho que o crescimento do consumo de séries produzidas localmente, seja por grandes operadores OTT, como a HBO e a Netflix, seja por operadores locais, é outro aspeto muito importante.
Um dos aspetos bastante atrativos do vosso curso é que o vosso polo tecnológico está apetrechado de forma tão digna que reclamam a posição de topo a este nível na península ibérica. Na vossa campanha para obter reconhecimento internacional, nomeadamente, com filmes a competirem em festivais de cinema internacionais, quais são os vossos principais desafios em termos de conseguirem que o país e o Estado português reconheçam também o vosso trabalho?
Os equipamentos e as instalações são para nós um constante constrangimento. Isto pelo simples facto de a necessidade de renovação tecnológica nesta área ser gigantesca. Depois, nesse objetivo de colocar no centro da nossa estratégia de desenvolvimento essa dinâmica internacional, isso implica que sejamos capazes de atrair estudantes e docentes estrangeiros, o que, por sua vez, implica ter muitos mais espaços e muitos mais meios para podermos competir com escolas que hoje têm muitos mais recursos do que nós. Aquilo que é atualmente a nossa maior vantagem competitiva é a qualidade dos nossos meios técnicos, mas isso é também, simultaneamente, uma ameaça, já que o obsoletismo é tão rápido nestas áreas e as nossas necessidades têm crescido tanto, por via do crescimento do número de estudantes matriculados, que isso acaba por tornar-se um desafio sério para nós. Gostávamos de poder começar a desenhar já a implantação até 2030 de uma estrutura própria de estúdios e de laboratórios. A estrutura que temos atualmente é vocacionada para o ensino e para a investigação, e a qual pode ser descrita como algo de grande escala ao nível nacional, mas de pequena escala a um nível internacional. Se me for comparar com uma das instituições de topo nos EUA, diria que temos 5% do que eles têm. A nossa ambição era podermos começar já a trabalhar na implantação de uma estrutura que competisse a essa escala. Porque é preciso apoiar não apenas o estudo e a investigação, como a criação e a inovação.
Contempla a hipótese de neste vosso projeto estar o germe para um estúdio grande no nosso país?
Não diria sermos o germe, mas obrigatoriamente estarmos presentes. Se olhar para aquele que é o mais dinâmico parque de produção e criação cinematográfica neste momento na Europa, que se situa nos arredores de Berlim, este integra a universidade alemã de cinema, que se chama Konrad Wolf. Portanto, todos os melhores exemplos ligam o tal triângulo do ensino-investigação-empresas. Só assim é que surge verdadeiramente a inovação. A nossa estrutura não está preparada para a inovação. Esperamos que até 2030 isso mude, e que possamos apoiar as empresas em Portugal, os jovens criadores, e tornarmo-nos uma incubadora de projetos inovadores.
No final de 2018, foi eleito presidente da Associação Europeia das Escolas de Cinema e de Televisão (GEECT-CILECT), sendo simultaneamente escolhido para a direção executiva da Associação Mundial das Escolas de Cinema e audiovisual (CILECT). Gostava de perceber qual tem sido o seu papel nestes cargos.
São organismos que, fundamentalmente, têm um papel de representação das escolas de cinema junto dos organismos financiadores e reguladores, e isto basicamente coloca-me na mesa de negociações ao nível da União Europeia, isto nos grupos de trabalho junto da Comissão Europeia e na definição de políticas para o audiovisual e para o setor da cultura de uma forma mais vasta, mas também na parte educativa. Aí há uma participação constante em diferentes organismos europeus que definem políticas para estes setores. Há também um papel importante na colaboração com as diferentes agências de avaliação e acreditação no ensino superior e no espaço europeu, e também noutras organizações congéneres que operam nesses domínios. Depois, há escala internacional, este organismo tem um papel muito importante na colaboração seja com a UNESCO, que trata do financiamento a políticas culturais a uma escala internacional, seja com a OCDE no domínio da definição de indicadores e de modelos principalmente para a investigação no campo das artes. Portanto, este é sobretudo um trabalho de representação, podemos chamar-lhe lóbi a favor das escolas e das entidades de investigação no setor.
Como vê e classifica a relação que vai tendo com o nosso Ministério da Cultura e as nossas entidades governamentais?
Em Portugal existe uma associação que representa as poucas escolas que existem no país nesta área, que, embora seja gigante do ponto de vista económico, e em termos do seu peso cultural, na verdade é uma área muito pequena no país a nível do número de escolas que operam nesse domínio. A associação é a FECA, da qual sou também o presidente, e esta tem um papel constante de interação e diálogo com o principal instituto que existe por cá no setor, que é o ICA. Diria que o diálogo é muito positivo. A FECA integra a SECA, a secção que aconselha o ICA em tudo o que tem a ver com políticas de financiamento para o audiovisual e o cinema. A SECA colaborou com o ICA no desenho dos concursos de apoio e formação aos jovens criadores, nomeadamente uma coisa que se chama novíssimos, que é um programa específico de financiamento. Este é um diálogo já muito antigo e frutuoso. Com o Estado português no seu todo, não sei se a cultura na forma como é vista pelo Estado é compreendida nas suas múltiplas dimensões, e não me parece que, no caso particular do cinema e do audiovisual, tenha havido ao longo das últimas décadas uma sensibilidade para entender o potencial e a importância que este setor tem. A culpa, eventualmente, será para distribuir pelos governantes mas também pelo setor. O certo é que se podia fazer muito mais, e parece-me que quanto mais diálogo houver, e quanto mais consciência houver, melhor. Se calhar se tivéssemos perdido menos tempo nos últimos a dizer mal uns dos outros, que é uma coisa que adoramos fazer, e tivéssemos perdido mais tempo a pensar o que é que poderíamos ter feito em conjunto… Infelizmente, é mais divertido andar a dizer mal dos outros, portanto, divertimo-nos a dizer mal dos outros.