Hungria-Portugal. A batalha pelo céu…

Foi a Hungria que apadrinhou a estreia de Portugal num Campeonato do Mundo. Certamente, o jogo mais importante entre ambos.

BUDAPESTE – Vitória! Vitória! Vitória! Três vezes vitória; três vezes golo! Emudeciam os velhos do Restelo, os arautos da desgraça. Portugal vencera a Hungria em Old Trafford, na sua estreia, e dava um grande passo em frente na direção dos ambicionados quartos-de-final do Campeonato do Mundo de Inglaterra. De pouco valeu o ‘ferrolho’ húngaro, praticado na maior parte dos noventa minutos. Um golo cedo, muito cedo, logo aos dois minutos, derrubou a estratégia dura e maçadora dos adversários. Na marcação de um canto, Simões lançou uma bola longa para Torres que a pôs à disposição da cabeçada certeira de José Augusto. Falou-se de sorte nesse confronto histórico de Portugal, o primeiro numa fase final de Mundiais desde que os havia (1930). Talvez tenha soprado uma aragem suave de fortuna nos momentos precisos dos golos que golpearam a talhadas de machados as ambições magiares. Se alguém tinha dúvida sobre a utilização da estrela Ferenc Bene, elas ficaram desde logo dissipadas: jogava, pois então! E junto dele, num ataque temível, Nagy, Rákosi, Florien Albert e Farkas. Que bela equipa tinha a Hungria!

Do lado português havia uma serenidade intrínseca e contagiante. Todos estavam cientes do seu papel e das dificuldades que teriam de atravessar durante essa hora e meia tão, tão, tão longa que valiam as vagas alterosas enfrentadas por Gil Eanes quando passou o Bojador. Fernando Pessoa sabia-o bem: «Quem quer passar além do Bojador/Tem de passar além da dor…».

Os jogadores lusitanos sacrificam-se. Há momentos em que se predispõem a combater o adversário no seu próprio meio campo com uma fúria de chacais esfomeados. Cada palmo de terreno vale mais do que um metro quadrado no centro de Shibuya ou Harajuku, os bairros cosmopolitas de Tóquio. Eusébio está no centro das atenções dos húngaros procura espaços onde eles não existem. A Pantera refugia-se sobre a direita e tem pormenores felinos inexplicáveis. De repente, numa disputa de bola com o guarda-redes contrário, leva um soco no sobrolho. Sangra. Sai de campo para regressar de cabeça enfaixada: um príncipe negro com uma coroa de pano branco.

A reação da Hungria vale um golo. Justo, provavelmente. Meio confuso, muito consentido por Hilário e Carvalho que demoraram a desfazer o passe rasteiro de Farkas. Ferenc Bene, o homem do bluff de Lajos Baroti estava lá para fazer o que melhor sabe – 61 minutos de jogo. Meia hora para cada um dos contendores mostrar o que valia. Valeu Portugal.
Bastaram cinco minutos, quem diria? Aproveitando o descaramento súbito dos húngaros, a Seleção Nacional desenha um movimento de contra ataque. Torres, desviado da sua posição para fugir à marcação dura dos centrais contrários, cruza suavemente para a área de Szentmihalyi. À oferta de Carvalho, responde o seu homólogo com outra oferta: não segura a bola e deixa-a fugir para nova cabeçada de José Augusto. Os portugueses estão na frente. Não desperdiçarão essa prebenda divina à qual muitos chamam de fortuna. O jogo equilibra-se. Golpes e contragolpes sucedem-se. E o tempo passa. Devagar para os portugueses, a voar para os húngaros.

Resolvido!

O fim está próximo. Eusébio foge pela direita com a sua cabeça enfaixada de guerreiro sikh, leão do Punjab. Ganha um canto e marca-o de imediato. A bola sobrevoa toda a grande área de Szentmihalyi e cai a pique na cabeça de Torres que salta mais alto do que Matrai. Golo!

Minuto 89! Talvez sorte, talvez vontade de ter sorte. Os portugueses erguem os braços. São dignos dos egrégios avós de uma nação valente que tantas vezes se humilha, mais por ternura do que por modéstia. Confirmava-se: Portugal nunca perdera com a Hungria. Nos quatro jogos anteriores, duas vitórias e dois empates. Agora a vitória mais importante, mais sentida.

Uma vaga de satisfação alagava a cabina portuguesa. Otto Glória predizia: «Este jogo e o Brasil-Bulgária só serviram para confirmar e consolidar, até, o que já tinha como ideia muito minha: Portugal, se não houver algum Imprevisto, tem todas as possibilidades de se apurar para a fase seguinte. No jogo de hoje, de início, alguns jogadores acusaram certo desnorte nas fases mais complicadas, mas isso é natural até por causa da inexperiência de um ou outro em competições deste calibre. Mas podem crer que sinto aumentarem as esperanças. E mais: Portugal pode até discutir com o Brasil o primeiro lugar do grupo». E como era Old Trafford o palco da vitória portuguesa, não faltava na bancada o famoso Matt Busby treinador do Manchester United: «Eusébio é, na realidade, um jogador extraordinário. O melhor elogio que lhe posso fazer é dizer que o comparo a Pelé». Em Lisboa, a Philips fizera sensação ao transmitir o encontro entre Portugal e Hungria no ecrã gigante do Cinema Monumental. O futebol chegara à televisão para nunca mais a deixar. Apesar de uma frustrante confusão na distribuição das imagens pelo Centro Técnico da Eurovisão, em Bruxelas, que impediu os telespetadores portugueses de verem o primeiro golo de José Augusto, ficando agarrados a uns bons minutos do França-México de Wembley que se disputava à mesma hora, a RTP assentava num êxito tremendo, mobilizando o interesse de um país inteiro, reunindo famílias à volta da pantalha e enchendo até transbordarem os estabelecimentos comerciais que se davam ao luxo de possuir a caixinha mágica.