Consultas médicas adiadas, gente que não pode acompanhar o corpo da mãe à sua terra natal, que está farta de saltar de país em país e só quer assentar. Por trás da espera interminável, às vezes de anos, que enfrentam tantos imigrantes em Portugal, para algo tão simples como agendar um pedido de autorização de residência ao SEF, estão histórias desesperadas de pessoas que não conseguem viver no país para o qual têm contribuido com os seus impostos.
Algo que já deixou o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, sob críticas, após advogados denunciarem que não só a espera é longa, como é injusta, acusando o agendamento online do SEF de ser quase impossível e não por ordem de chegada,
A resposta do ministro, perante a Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, no início do mês, foi acusar as “praticas erróneas sobretudo de alguns escritórios de advogados que, no fundo, monopolizavam as aberturas de agendamento digital” pelos problemas do serviço. E Cabrita, citado pela Lusa, garantiu que “está em revisão neste momento para limitar essa possibilidade de apropriação ilegítima por intermediários daquilo que são direitos dos cidadãos”.
Um grupo de 19 advogados já assumiu que vai processar o Ministério da Administação Interna, que acusam de querer descartar-se a responsabilidades, desviar a atenção do problema e manchar o seu bom nome e da classe profissional.
Mas o problema é que as pessoas continuam à espera, sem opções. “O procedimento continua a ser o mesmo, não há qualquer alteração, pelo menos que nós nos apercebamos”, diz ao i Filipa Santos Costa, a advogada que denunciou o caso, parte do grupo que pretente processar o MAI. O i pediu um esclarecimento do ministério, mas não obteve resposta até ao fecho da edição.
Para a advogada, após passar pelo Conselho Português para os Refugiados CPR) e pelo Centro Nacional de Apoio ao Imigrante (CNAI), começar a tratar dos casos deste imigrantes que ficam presos na fila de espera do SEF foi uma transição quase natural. Já tem 45 casos em mãos, alguns estão há anos à espera, com todos os documentos necessários prontos – como inscrição na administração fiscal, contrato de trabalho, registo criminal do país de origem, comprovativo de morada. Mas há meses que Costa não consegue agendar um pedido de autorização de residência
O processo soa a pesadelo. Na prática, implica estar parado à frente de um ecrã, à espera que surja uma vaga online, que desaparece em minutos, quando não em segundos.
“Além de ser uma grande dificuldade, é uma forma de desigualdade. Porque o sistema permite que pessoas que chegaram depois obtenham uma autorização de residência primeiro”, explica Costa. “Imagine, um emigrante brasileiro, que domina melhor a informática, passa à frente de um imigrante africano, que seja analfabeto e esteja a trabalhar o dia inteiro na apanha dos frutos vermelhos. Como é que esse imigrante vai fazer um agendamento?”.
Isto além do potencial para o favorecimento individo, acusa a advogada. “O facto dos agendamentos online serem feitos desta forma abre várias maneiras de possibilitar a corrupção”, considera. “Não estamos a acusar ninguém em particular, porque não seria sério”, frisa.
“Mas a verdade é que qualquer pessoa o pode fazer, porque é fácil do lado de dentro, digamos assim, das pessoas que fazem os agendamentos”, exemplifica. “Tanto a nível de pessoas que são avisadas previamente de quando as vagas vão abrir, como diretamente. Porque nós não sabemos quais são os critérios, porque é que uns conseguem e outros não. É tudo muito pouco transparente“.
“A espera até compreendemos, é preciso algum tempo, dado o aumento na imigração que houve e o SEF ter mantido mais ou menos os mesmos recursos humanos”, considera a advogada. “O problema é as pessoas não serem atendidas por ordem
Vidas em pausa Para quem vive este drama na pele, a frustração é algo do quotidiano. “Já tentei de todas as maneiras”, queixa-se Ana Almeida, uma doméstica de 50 anos. Originária de Cabo Verde, tantas vezes descrito como suposto país irmão de Portugal, chegou ao país porque a vida lá estava complicada. E já está há espera agendamento do SEF há anos. “Fica muito complicada a vida sem documento, não consigo fazer nada”, desabafa.
“Tentei ter uma consulta no centro de saúde e disseram-me que não podia. Só quando sofri de dores muito fortes é que fui atendida num hospital”, conta Almeida. “E eu já tenho três anos de descontos”. É uma queixa recorrente. Outros, só queriam ver de novo os seus familiares. Ou pelo menos despedir-se deles, como Silvestra Mendes, de 34 anos, que perdeu a mãe três meses depois de chegar a Portugal.
“Tinha as cerimónias da Guiné para fazer pela minha mãe, queria levar as coisas dela de volta, mas não consegui”, lamenta Silvestra. É que, nesse ano de 2019, estava à espera de agendamento do SEF para fazer um pedido de residência – não conseguiu até agora – e tinha medo de não conseguir regressar a Portugal. “Lá fazer visto demora muito”. explica. Teve de enterrar a mãe longe da sua terra, com ajuda da Santa Casa da Misericórdia, sem os rituais tradicionais da etnia da mãe, sem “toca-choro” – o sacrifício e consumo de vacas para honrar os mortos – depois da missa.
Entretanto, enquanto fazia o luto como podia, Mendes ia trabalhando no Pingo Doce, antes de trabalhar como cuidadora de um idoso em Santo António dos Cavaleiros.
“Não é coerente”, queixara-se Filipa Santos Costa. “As pessoas durante esses anos que estão à espera de agendamento estão a contribuir para a Segurança Social, a apresentar anualmente a sua declaração de IRS, estão a cumprir todos os seus deveres como cidadãos de pleno direito. Mas depois, se quiserem tirar a carta de condução, visitar familiares, arrendar uma casa, tudo isso lhes está vedado”, explica a advogada.
“A pessoa pode ser agendada, chegar lá no dia, depois de uma série de anos à espera, a fazer descontos e o SEF recusar a autorização”, continua. “Mas os que me marcam mais são sempre os que desistem. Porque no meio disto há muita gente que desiste. E quando desistem já fizeram descontos a segurança social durante anos, Descontos de que não vão disfrutar”.