Comentando um dos meus últimos artigos, Mistérios da vacinação, a minha colega Joana Martins enviou-me uma curiosa mensagem com uma sugestão: «Deixo o desafio para uma próxima vez: o mistério da multiplicação dos médicos de família que nesta pandemia têm respondido em todas as frentes – trace covid, ADR, centros de vacinação, juntas médicas…».
Com algum toque de humor, esta mensagem reflete a preocupação de uma médica de família em conseguir conciliar a sua atividade habitual com as outras tarefas que, de repente, caíram em cima destes profissionais, obrigando-os a mudar por completo as rotinas.
A dra. Joana Martins, médica de família por vocação, é uma excelente profissional, muito dedicada aos doentes e sempre pronta a colaborar no serviço. Lembro-me da época em que chegou à unidade onde eu trabalho. Era a colega mais nova do grupo, ‘a nossa Joaninha’, como carinhosamente a tratávamos. Transmitimos-lhe um pouco da nossa experiência – e também aprendemos com a sua nova forma de trabalhar, de acordo com as normas que passámos a ter de cumprir.
A chamada de atenção que ela faz na mensagem que me enviou é importante e merece ser abordada, até por não sabermos o que o futuro nos reserva e é bom estarmos preparados para o que pode vir aí.
Apesar de haver no Estado três carreiras médicas – hospitalar, medicina familiar e saúde pública (excluo a medicina legal, por pertencer a outro departamento) – em alturas de crise o trabalho suplementar parece recair mais na medicina familiar do que nas outras duas, como novamente se verificou durante o tempo de pandemia.
Com efeito, a deslocação dos médicos de família para os ADR (atendimento das doenças respiratórias), o trabalho acrescido com o Trace Covid (contacto telefónico diário, incluindo fins de semana com os doentes infetados), a colaboração nas juntas médicas (como é o meu caso) e agora mais recentemente nos centros de vacinação, tudo em acumulação com o trabalho normal nos centros de saúde, veio desorganizar o serviço e alterar rotinas com o inevitável prejuízo para os doentes.
Então, é legítima a pergunta: a pandemia não afetou todas as carreiras? Qual a razão para serem só alguns (neste caso, os médicos de família) os mais sacrificados? Não seria mais razoável, em situações anómalas, ‘dividir o mal pelas aldeias’, distribuindo tarefas por todos?
Com estas ‘multiplicações’ de serviços, os centros de saúde não podem dar a resposta adequada – e a falta de resposta dos cuidados primários vai provocar complicações a nível hospitalar, podendo levar ao colapso do SNS. E depois quem paga a fatura? Os doentes, os eternos ‘pagadores’.
Por estas e por outras, a medicina familiar vai-se transformando numa espécie de ‘manta de retalhos’, afastando-se cada vez mais da sua missão mais nobre – a prevenção. Ouvi em tempos dizer a um representante da Ordem dos Médicos que, para ele, a Medicina Familiar era a especialidade que mais se tinha degradado nos últimos anos. Hoje, com mágoa, compreendo o significado daquele comentário tão negativo. Por isso, é preciso apoiar os profissionais que optaram por esta área.
Muitos daqueles que a escolheram por vocação, e alimentaram expectativas que não se concretizaram, acabaram por abandoná-la, dando outro rumo às suas vidas. No meu centro, conheço alguns que desistiram, trocando o SNS pelos convites aliciantes do setor privado. O Estado ficou a perder. É isto que se quer? Vamos continuar assim?
Aqui fica o meu alerta. Em tempos de aflição, não faz sentido pedir sacrifícios sempre aos mesmos. Esses ‘pedidos’ acarretam outro tipo de problemas – e os doentes é que sofrem. Com o adiar constante de consultas, de exames e de cirurgias, podemos estar a ‘adiar’ também a vida de seres humanos. Pensemos nisto agora, que entrámos no desconfinamento e não queremos regressar ao passado.
Não podia ficar indiferente ao desafio que me foi feito. Acho que é um bom instrumento de reflexão para analisar o passado e olhar com outros olhos para o futuro. Obrigado, Joaninha.