Berardo. A queda final do “portuguese dream”

A detenção do empresário ocorreu mais de dois anos depois da polémica audição no Parlamento, na comissão de inquérito à gestão da CGD onde garantiu que só tinha uma garagem, não tinha dívidas e rejeitou a ideia de ter ficado “com muitos milhões” dos portugueses.

O empresário Joe Berardo foi ontem detido pela Polícia Judiciária, por suspeita de burla qualificada, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Além do empresário, também o seu advogado André Luiz Gomes – managing partner da Luiz Gomes & Associados e que está com o empresário madeirense há 30 anos – foi detido para serem ouvidos pelo juiz de instrução criminal Carlos Alexandre. Em causa estará a forma como o “portuguese dream” – como ele se chegou a classificar – conseguiu obter financiamento de três bancos, além do esquema que terá montado para escapar ao pagamento dos credores, que “causou um prejuízo de quase mil milhões de euros à CGD, ao Novo Banco e ao BCP”.

Os créditos concedidos pelas três instituições bancárias serviram para comprar ações do BCP, que, em 2007, viveu uma guerra interna de poder. Como garantia, Berardo deu as próprias ações do BCP, que acabaram por desvalorizar significativamente, trazendo perdas avultadas para os bancos. Só a CGD tinha, em 2015, uma exposição à Fundação Berardo na ordem dos 268 milhões de euros.

“No âmbito de um inquérito dirigido pelo Ministério Público do Departamento Central de Investigação e Ação Penal estão em curso cerca de meia centena de buscas, sendo 20 domiciliárias, 25 não domiciliárias, três a estabelecimentos bancários e uma a escritório de advogado, tendo ainda sido emitidos dois mandados de detenção”, leu-se no comunicado da PGR. Estas diligências decorrem em vários locais do país, nomeadamente, em Lisboa, Funchal e Sesimbra.

“No inquérito investigam-se matérias relacionadas com financiamentos concedidos pela CGD e outros factos conexos, suscetíveis de configurar, no seu conjunto e entre outros, a prática de crimes de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal qualificada, branqueamento e, eventualmente, crimes cometidos no exercício de funções públicas”, informou ainda a Procuradoria, acrescentando que as diligências estão ser executadas pela Polícia Judiciária, com a intervenção de 138 elementos desta força policial, acompanhados de nove magistrados do Ministério Público, sete Juízes de Instrução Criminal e 27 inspetores da Autoridade Tributária, “a maioria dos quais foram alocados apenas para a concretização desta operação, não tendo a equipa de investigação do processo esta composição”.

Paulo Saragoça da Matta, advogado do empresário, lamentou o timing da operação. “Acho sempre muito curiosas estas investigações que duram cinco ou seis anos e só depois é que alguém se lembra de levar a cabo uma detenção”. Em relação ao estado de espírito de Berardo falou apenas em “calma total” e “bastante serenidade”. Ainda assim chamou a atenção para o seu estado de saúde, “que todos sabemos” qual é, não dizendo qual.

 

Santos Ferreira não escapa

Carlos Santos Ferreira, antigo presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD) e do BCP, foi também constituído arguido nesta operação, avançou a TVI. Em causa estarão as ligações entre Carlos Santos Ferreira e os créditos concedidos ao empresário ao longo dos anos e como foi permitido renegociar as dívidas que ascendem a mil milhões de euros.

A casa de Santos Ferreira terá sido, aliás, alvo de buscas pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção e foi chamado ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) para ser constituído arguido – a par de outros decisores.

 

Rombo na banca

A detenção do empresário ocorreu mais de dois anos depois da polémica audição no Parlamento, na comissão de inquérito à gestão da CGD onde garantiu que só tinha uma garagem, não tinha dívidas e rejeitou a ideia de ter ficado “com muitos milhões” dos portugueses. Também longe de ser pacífica foi a sua resposta ao deputado Duarte Marques: “A Caixa está a custar uma pipa de massa? A mim não”.

Declarações essas, juntamente com os seus sonoros “ah ah ah” no Parlamento, levaram o presidente da comissão, Luís Leite Ramos, a solicitar aos serviços da Assembleia da República a “transcrição urgente” das declarações de Berardo com o intuito de as enviar para o Ministério Público, para avaliar a existência de indícios de crime.

Berardo não ficou de braços cruzados e enviou, na altura, uma carta aberta ao presidente da Assembleia da República. “Nem eu nem nenhuma entidade ligada a mim alguma vez tivemos ao nosso dispor […] dinheiro que tenha sido emprestado pela CGD [Caixa Geral de Depósitos], ou por outros bancos”, acrescentando ainda que “como se não bastasse o ataque ao meu património, tenho agora de defender-me do ataque ao meu bom nome”, considerando, na altura, que foram violados os seus direitos fundamentais na audição na comissão parlamentar de inquérito à Caixa Geral de Depósitos.

Em cima da mesa desta comissão estava a auditoria da EY à CGD, onde apurou uma exposição de 267 milhões de euros do banco público à Fundação Berardo e outra de 52,5 milhões à Metalgest, ambas as entidades ligadas ao empresário madeirense. Nos dois financiamentos, o banco registava perdas por imparidade na ordem dos 50%.

Só em julho de 2019, os bancos obtiveram uma primeira vitória na justiça, tendo conseguido o arresto da coleção de quadros e de obras de arte de Berardo e imóveis. O pedido de arresto foi feito pela Caixa e a justiça recorreu a uma figura jurídica que raramente é usada: desconsideração da personalidade jurídica coletiva. No entanto, o caso do empresário foi considerado excecional. Este mecanismo é usado em situações “onde se configura um mau uso de institutos próprios do direito das sociedades, nomeadamente aproveitando ilicitamente a personalidade coletiva para cometer fraudes ou abuso do direito”.

Em dezembro desse ano perdeu os recursos contra o arresto de dois prédios em Lisboa e uma quinta na Madeira, também pedido pela CGD. Já este ano viu a Fundação Berardo perder o estatuto de utilidade pública, depois da Inspeção-Geral de Finanças ter identificado irregularidades na gestão entre 2007 e 2017, concluindo que a fundação prosseguiu fins distintos dos estatutários, sendo usada quase apenas para operações financeiras. O relatório dava ainda conta de uma forte degradação das contas, que passaram de 102 milhões de euros positivos em 2007 para prejuízos de 575 milhões em 2017.

Mas mesmo com estas polémicas, Berardo continuou a apostar no negócio dos vinhos a par da arte. Os mais recentes exemplos são a abertura do Museu Berardo Estremoz, dedicado ao Azulejo e, há pouco mais de dois meses, do Berardo – Museu Arte Deco (B-MAD) em Lisboa.