O início de um tsunami com o fim das moratórias.

A partir de hoje, os consumidores vão ter de começar a pagar o crédito pessoal, mas a Deco reconhece que a verdadeira dor de cabeça começa em setembro com o fim das moratórias do crédito à habitação. Também chega ao fim a proibição de corte de comunicações, luz e água.

Estamos perante o início de um tsunami. As moratórias relativas ao crédito pessoal têm de começar a ser pagas a partir deste mês, mas nem todas as famílias estão em condições para retomar os pagamentos. A situação irá agravar-se ainda mais em setembro quando acabarem as moratórias relativas ao crédito à habitação. De acordo com Natália Nunes, responsável do Gabinete de Apoio ao Sobreendividado da Deco, os dados do Banco de Portugal (BdP) apontam para mais de 47 mil devedores que beneficiaram da moratória privada da Associação Portuguesa de Bancos (APB) e, segundo a responsável, “beneficiaram de um período de um ano, em que durante este tempo não pagaram a totalidade da prestação ou pagaram apenas os juros, sendo agora obrigados a retomar o pagamento da prestação na totalidade”, explica ao i.

O cenário não é animador. E para Natália Nunes não há dúvidas: “Se estamos perante devedores que pediram o acesso à moratória é porque tinham dificuldades em honrar o pagamento da prestação e daí terem aderido. Isto significa também que há um indício de dificuldades financeiras por parte destes devedores em retomar esses pagamentos”.

A solução, para Natália Nunes, passaria por as instituições de crédito antes de terminarem este período de moratória terem encontrado uma solução, o que, no seu entender, não foi possível por não ter havido abertura por parte das entidades credoras. “As famílias que nos contactam dizem-nos que já começaram em maio, e durante este mês, a contactar as instituições de crédito para lhes dar a conhecer as dificuldades que têm em retomarem o pagamento a partir de julho. Era expectável que essas situações já tivessem sido alvo de reestruturação e de renegociação para que as famílias não entrassem em situação de incumprimento”.

Uma solução que, segundo Natália Nunes, tem recebido cartão vermelho por parte das instituições financeiras. “Estão muito restritivas para analisarem e reestruturarem as situações. Não apresentam soluções para as famílias, quando sabemos que muitas perderam os seus rendimentos na totalidade e o pouco dinheiro que têm é praticamente para sobreviverem. Não têm qualquer capacidade para retomar o pagamento da prestação”, acrescenta, explicando que isso também representa uma dificuldade para as próprias entidades credoras, uma vez que, serão consumidores que deverão quase de certeza entrar em situação de incumprimento. “E isso não é benéfico para ninguém: nem para os consumidores que entram em incumprimento e podem ser confrontados com situações em tribunal e podem vir a perder os seus bens, nem para as instituições de crédito, que vão lidar com estas situações de incumprimento. Não compreendemos esta falta de abertura”.

 

Situação mais dramática

Uma questão que ganha maior revelo quando Natália Nunes reconhece que, a maioria das pessoas, pediram essas moratórias para não pagar a totalidade da dívida. “A partir de julho, a família vai ver retomado o pagamento da prestação, acrescido de alguns euros se não tiver pago a parcela dos juros. Em termos do prazo também existe um alargamento dos meses correspondente aos meses em que beneficiou da moratória. Não haverá grande alteração no valor de prestação se o consumidor pagou durante este ano os juros. Mas a maior parte das situações que temos acompanhado são de famílias que pediram a moratória na totalidade”, diz ao i.

No entanto, a responsável admite que a grande dor de cabeça vai ser em setembro quando terminarem as moratórias do crédito à habitação. “Estamos a falar de um volume muito maior e, a partir de outubro, as famílias vão ter recomeçar o seu pagamento da prestação. Aí sim vai ser muito complicado para  quem não recuperou o seu rendimento: famílias que são confrontadas com situações de desemprego, layoff, perda de remunerações variáveis ou até perda de atividade”.

Ao i, Natália Nunes garante ainda que está a acompanhar muitas famílias nesta situação e que já estão a “equacionar vender as suas casas porque perspetivam que não vão ter condições a partir de outubro de efetuar o pagamento da prestação”.

De acordo com os dados divulgados ontem pelo Banco de Portugal, o montante global de empréstimos abrangidos por moratórias era de 38,5 mil milhões de euros no final de maio, menos 1,2 mil milhões do que em abril. Mário Centeno voltou a recusar qualquer dramatismo em relação ao fim da moratória pública, cujo regime expira em setembro. “Não devemos fazer disto uma situação dramática pois estamos longe deste dramatismo mas não devemos descurar”, afirmou esta quarta-feira em sede de audição na comissão de orçamento e finanças.

 

Fim de outras medidas

Mas as alterações não ficam por aqui. Também a partir de hoje fica suspensa a proibição de corte de comunicações eletrónicas e de luz. Ana Sofia Ferreira, também da Deco, lembra que estas medidas excecionais estiveram em vigor desde março a setembro de 2020, mas depois foram repostas em janeiro de 2021 até agora. “Durante esse período, os comercializadores de energia, as entidades gestoras de água e as operadoras de telecomunicações não podiam cortar os serviços aos consumidores, ainda que houvesse falta de pagamento. Ou seja, os utilizadores que tivessem faturas em atraso não poderiam ser privados destes serviços”, diz ao i.

No entanto o cenário agora mudou. A responsável lembra que mediante o pré-aviso de corte, que é legalmente obrigatório, essa interrupção dos serviços volta a ser possível. E quem continua a não poder pagar? Neste caso, reforça Ana Sofia Ferreira, todos os consumidores que tenham faturas de gás, eletricidade ou telecomunicações em atraso devem contactar as entidades prestadoras destes serviços no sentido de celebrarem um acordo de pagamento faseado, na impossibilidade de pagarem os montantes na totalidade, uma vez que, ao celebrarem esse acordo, não se efetiva o corte.

“Nessa situação estão a fazer um acordo com o prestador do serviço em como vão pagar o montante em dívida em prestações” e, uma das soluções passa por encontrar acordos de pagamento que sejam viáveis para os consumidores, ou seja, adequados aos seus rendimentos atuais. “Sabemos que as medidas excecionais estão a terminar mas também sabemos que no dia 1 de julho os consumidores não vão ter os seus rendimentos repostos. Há muitos consumidores que estão em situação de desemprego, muitos sofreram uma queda dos seus rendimento e muitos ainda não estão numa situação de normalidade ou porque continuam desempregados ou porque têm rendimentos inferiores aos que tinham no início da pandemia. E, nesse caso, é preciso encontrar para esses consumidores um acordo de pagamento, de mensalidade, que seja compatível com as suas possibilidades atuais”.

 

Raio-x

Os alertas não ficam por aqui. Ana Sofia Ferreira lembra que é preciso analisar caso a caso. “Além de fazermos uma análise para tentar baixar o valor que os consumidores pagam mensalmente é preciso olhar para a fatura de eletricidade e ver se a tarifa contratada é a mais adequada aos consumos atuais – porque também sabemos que houve uma alteração dos consumos domésticos: muitos consumidores estão em teletrabalho e, como tal, passam mais tempo em casa, no início do ano também tivemos a telescola, portanto estamos a falar de um consumo doméstico superior e com horários diferentes daqueles que eram habituais”.

A agravar ainda mais esta situação está o facto de muitos consumidores terem contrato a tarifa bi-horária de eletricidade, o que no seu entender, era perfeitamente adequada aos consumos anteriores, mas, a partir do momento em que ficam em casa, passou a existir um consumo durante o dia que não existia. “Muitos consumidores estão a pagar eletricidade mais cara porque estão a consumir mais nas horas em que a eletricidade é mais cara, tendo em consideração a tarifa escolhida”, explica a especialista, acrescentando ainda que é importante verificar se o consumidor tem direito a tarifa social e, se tiver, se a está a usufruir.

A mesma recomendação é aplicada junto dos operadores de telecomunicações, isto é, se o contrato atual é o mais adequado às necessidades dos consumidores ou se for necessário verificar se é possível renegociar para um valor de mensalidade mais baixa. “Também é importante verificar as datas de pagamento, pois podem não ser as mais adequadas para o consumidor, evitando assim juros de mora por atrasos no pagamento porque estes montantes parecem pequenos mas, junto dos vários serviços, estas contas ao final de alguns meses acabam por ser quantias consideráveis”, acrescenta ao i.

Ainda assim, a responsável admite que os principais comercializadores de energia e de telecomunicações têm mostrado sensibilidade em torno destas situações porque percebem que é necessário encontrar soluções. “Naturalmente entendem que a situação é complicada”, diz. E dá exemplos: “nas comunicações eletrónicas, os consumidores em situações de desemprego ou de quebra do rendimento do agregado familiar igual ou superior a 20% devem poder cancelar o contrato sem qualquer penalização ainda que se encontrem dentro do período de fidelização. Do nosso ponto de vista, esta devia ser uma alteração estrutural”, afirma. Ana Sofia Ferreira admite ainda que tem assistido a um aumento de pedido de informações em relação a este fim de suspensão, principalmente no primeiro trimestre do ano, nomeadamente na área da energia.

 

E as rendas?

Também termina a suspensão da cessação dos contratos de arrendamento não habitacional. No caso dos estabelecimentos que, por determinação legal ou administrativa da responsabilidade do Governo, tenham sido encerrados em março de 2020 e que ainda permaneciam encerrados em 1 de janeiro de 2021, a lei prevê que a duração do respetivo contrato seja prorrogada por período igual ao da duração da medida de encerramento, aplicando-se, durante o novo período de duração do contrato, a suspensão de efeitos anteriormente referidos. A regra abrangia ainda lojistas dos centros comerciais que registassem quebra de vendas face aos seis meses anteriores a 18 de março de 2020, ou ao mesmo período de 2019, com uma redução de renda fixa proporcional à quebra de vendas, até ao máximo de 50% do seu valor.

Uma questão que também levanta preocupações junto da Deco. “Sabemos que a pandemia vai infelizmente criar estas dificuldades. Além da saúde, as atividades económicas não estão a laborar com a regularidade que tinham anteriormente, o que cria dificuldades económicas. A par do desemprego é preciso contar ainda com as situações de quebras de rendimento ou com as situações de layoff que não estão regularizadas. O que sabemos é que os efeitos económicos desta pandemia vão ser sentidos a longo prazo”, diz Ana Sofia Ferreira. “E mesmo que muitas famílias tenham conseguido inicialmente pagar as suas despesas através de algumas poupanças que pudessem ter, com o continuar desta situação, vão tendo cada vez mais dificuldades”.

Para a responsável, só há um caminho e o passado recente mostra porque é preciso segui-lo: “Temos de olhar para soluções que permitam ao consumidor cumprir as suas obrigações dentro das suas possibilidades, com os apoios que sejam necessários e com a reestruturação e a com renegociação de contratos que forem necessários. Ninguém quer ter um déjà vu do que se assistiu no período da troika, nem ninguém quer voltar àqueles níveis de incumprimento”.