A os olhos de um leigo, talvez os salpicos de tinta e as pinceladas vigorosas de uma tela de Willem de Kooning tragam à ideia a palavra ‘gatafunhos’. E, no entanto, estes ‘gatafunhos’ surgem hoje em lugar de destaque nalguns dos melhores e mais prestigiados museus de arte do mundo, como o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque ou o Stedelijk de Amesterdão. De facto, de Kooning é hoje considerado um mestre.
E é precisamente como tal que surge no título da biografia de Mark Stevens e Annalyn Swan: de Kooning, an American Master. Título esse que tem a sua dose de ambiguidade: além de as suas telas não revelarem o perfeccionismo que associamos ao conceito de mestre da pintura, de Kooning não era exatamente americano…
Nascido em Roterdão em 1904, teve uma infância marcada por uma mãe autoritária e pouco afetuosa. Cornelia Nobel não gostava de tocar em crianças mas em público fazia um esforço e abria uma exceção, de modo a mostrar-se uma mãe dedicada. Os biógrafos explicam que possivelmente é por isso que, nas pinturas do filho, a mulher aparece como uma figura ameaçadora que, no lugar de mãos, apresenta uma espécie de garras.
Em 1926, com vinte e poucos anos, um dia de Kooning simplesmente desapareceu sem dizer nada. Ele, que sempre tinha gostado da bandeira americana por lhe parecer uma pintura, e que via nos EUA o país da modernidade, embarcou semi-clandestino para Newport News (Virginia), a bordo de um navio inglês.
Do lado de lá do Atlântico, durante alguns anos trabalhou como decorador de montras de uma sapataria de Manhattan. Mas nunca deixou de pintar e desenhar. Afinal, fora para a América com a intenção de se tornar artista, não para ter uma profissão das nove às cinco.
A biografia de Stevens e Swan, que demorou dez anos a escrever e venceu o Pulitzer da sua categoria em 2005, conta ao pormenor o processo de transformação de de Kooning, de decorador de montras (e carpinteiro), num artista americano moderno com uma carreira bem-sucedida. Por vezes, mostra-o no seu despojado estúdio da Quarta Avenida a pintar. Outras vezes, vemo-lo nos cafés e em festas, a beber desalmadamente – como a ocasião em que, durante uma discussão acalorada com a mãe, lhe entornou uma chávena de café bem quente pela cabeça abaixo.
Mas havia outro episódio célebre sobre o qual eu queria ler uma versão fidedigna e detalhada. Em 1953, quando de Kooning já era um artista respeitado – mas de modo algum uma estrela e ainda menos a lenda que viria a tornar-se – recebeu um dia a visita de um jovem, que trazia consigo uma garrafa de uma bebida forte para ganhar coragem. O jovem chamava-se Robert Rauschenberg e tinha um pedido estranho para lhe fazer. Queria um desenho dele, «não para o pendurar no seu estúdio, mas para o apagar».
De Kooning acabou por aceitar. «Trouxe um portfólio de desenhos e começou a folheá-lo». Escolheu um, mas depois mudou de ideias. «Quero dar-te um de que vou sentir a falta». E trouxe uma segunda pasta. Mais uma vez não ficou convencido. «Quero que seja mesmo muito difícil de apagar». Decidiu-se por um exemplar muito carregado. «Levou-me dois meses e mesmo aí ainda não estava completamente apagado», recordaria Rauschenberg. «Gastei imensas borrachas».
Conhecia o relato pelo lado do iconoclasta. Mas sempre me interroguei qual teria sido a reação do artista mais velho. Teria achado graça à impertinência? Ter-lhe-ia sido indiferente? Teria ficado ressentido, magoado? Agora já sei a resposta. Mas limitar-me-ei a dizer que a história termina com a folha espectral do desenho apagado, devidamente emoldurada, numa parede do Museu de Arte Moderna de São Francisco. Não quero ser desmancha-prazeres.