Já lá vão mais de 150 anos desde que o Governo dos Estados Unidos esmagou os esclavagistas do Sul, quando a Confederação travou uma brutal Guerra Civil para manter afrodescendentes acorrentados, num conflito que se estima ter custado mais de 750 mil vidas, traumatizando toda uma geração. Ainda assim, um pouco por todo o país continua a haver monumentos, estátuas e toponímia a celebrar os confederados, inclusivamente no Capitólio, símbolo máximo do Estado que os derrotou.
Mas não por muito tempo, se o Senado apoiar a resolução aprovada pela Câmara dos Representantes esta semana, para remover símbolos confederados do Capitólio, bem como defensores da escravatura e da segregação.
Não se trata de um assunto particularmente fraturante. A resolução para retirar estátuas foi aprovada com 285 congressistas a favor e 120 contra, contando até com o apoio de 67 republicanos, num momento de enorme polarização, em que estes estão a votar contra praticamente tudo o que tenha apoio democrata. Contudo, o tema ganhou visibilidade quando apoiantes de Donald Trump acenaram bandeiras confederadas, vitoriosos, em plena invasão do Capitólio, um feito que nem os próprios confederados conseguiram.
Foram imagens que deixaram muitos americanos ultrajados e incrédulos, como quem vê um fantasma surgir das profundezas da história. Outros notavam que a bandeira confederada estava a ser acenada perante estátuas de bronze de gente como o próprio presidente da Confederação, Jefferson Davis.
Ou do general Joseph Wheeler, conhecido pelo massacre de Ebenezer Creek, em 1984, quando carregou com a sua cavalaria sobre uns cinco mil escravos recém-libertados, sobretudo mulheres, crianças, velhos e enfermos, que ficaram para trás quanto tentavam fugir do sul. Na fivela do cinto da estátua de Wheeler, em pleno Capitólio, ainda se vêm esculpidas as letras ‘CSA’, acrónimo de ‘Confederate States of America’.
Junto a estes monumentos, podemos encontrar estátuas de outros supremacistas brancos, que estão na calha para sair. Temos o governador Charles Aycock, da Carolina do Norte, que literalmente liderou a «Campanha pela Supremacia Branca», entre 1898 e 1900, derrubando num golpe de Estado a câmara municipal de Wilmington, por incluir negros. Bem como o vice-presidente John C. Calhoun, o mais proeminente opositor das tendências abolicionistas que surgiam no norte, antes da Guerra Civil, arquiteto dos argumentos jurídicos pela sucessão usados pelos confederados, alcunhado de «Marx da classe dominante» pelo historiador liberal Richard Hofstadter, em 1948.
Honrar um ‘traidor’
Os 120 republicanos que votaram contra a retirada das estátuas confederadas do Capitólio justificaram-no como tentativa de impedir que a história «seja apagada ou alterada por capricho de burocratas do Governo», nas palavras do congressista Jerry Carl, citado pelo Alabama Political Reporter. É um argumento repetido uma e outra vez, no rescaldo do crescimento do movimento negro, após o homicídio de George Floyd, que exigiu um novo olhar sobre a história dos EUA.
No entanto, ao contrário do que se poderia imaginar, as estátuas dos confederados no Capitólio – à semelhança da vasta maioria das homenagens a confederados no resto do país – não são relíquias sobreviventes da Guerra Civil (1861-1865), mas sim uma herança muito mais recente. A iniciativa de criar o National Statuary Hall – que permitiria a cada estado mandar esculpir e ali e colocar duas estátuas de cidadãos «dignos de comemoração nacional» – surgiu nos últimos anos da guerra, mas só quase meio século depois, no início do século XX, quando a segregação racial tomava conta do Sul, varrendo liberdades conquistadas no rescaldo da Guerra Civil, é que começaram a chegar estátuas confederadas.
«Seria uma desgraça», reagiu o congressista Charles Curtis, em 1903, face à notícia que a Virginia enviaria uma estátua do general confederado Robert E. Lee para o Capitólio. «Ele foi um traidor para este país, e não irei sancionar uma honra oficial para um traidor», prometeu Curtis, um republicano – à época, o partido ainda era conhecido como o partido de Abraham Lincoln – que se tornaria vice-presidente.
Mesmo no capitólio estadual da Virginia – um estado ‘redimido’, ou seja, que reescrevia a história colocando os confederados como vítimas da guerra, para justificar a segregação – houve consternação, recordou a Atlantic, e apelos a que, em vez de celebrar Lee, se comemorassem outros virginianos, como Thomas Jefferson, James Madison ou James Monroe, pais fundadores do país. Mas não serviu de nada, e lá foi a estátua de Lee para o Capitólio, de uniforme confederado e tudo.
Costuma dizer-se que a história é escrita pelos vencedores. E nesses anos, quem estava na mó de cima eram os segregacionistas, saudosos do ‘Velho Sul’, enchendo os seus estados de memoriais a esse passado, que também era o seu projeto de futuro. Dos 1747 monumentos confederados, a esmagadora maioria foi construída entre 1900 e 1920, nos tempos de Jim Crow e do ressurgimento do Ku Klux Klan, com um outro pico na década de 1960, para intimidar a comunidade negra, segundo um relatório de 2019 do Southern Poverty Law Center.
Alguns monumentos nem sequer são em estados que pertenceram à Confederação, obscurecendo a história. Passeando pelo Kentucky, que construiu 56 memoriais confederados e apenas dois à União, ninguém diria que este estado sulista – que eventualmente abraçaria a segregação racial – contribuiu com mais do dobro dos recrutas à União do que à causa da escravatura.
Já a estátua de Lee só seria retirada do Capitólio em dezembro do ano passado. Foi levada para o Virginia Museum of History and Culture, em Richmond, e substituída (ver texto ao lado) por uma estátua de Barbara Rose Johns, uma afrodescendente pioneira do movimento dos direitos civis.
Entretanto, a disputa pela história continua. Desde 2000, construíram-se pelo menos 45 monumentos à Confederação, segundo o levantamento Southern Poverty Law Center.