Se a variante Delta causou complicações em países desenvolvidos com taxas de vacinação contra a covid-19 elevadas, no continente africano, está a causar uma avalanche de casos. “O pior acabou para alguns países”, em termos de hospitalizações e mortes, graças à vacina, anunciara Mike Ryan, da Organização Mundial de Saúde. Mas da Tunísia à África do Sul, do Senegal ao Uganda, esta nova variante mais transmissível tem levado ao limite sistemas de saúde que já eram frágeis à partida, num continente onde menos de 2% da população tomou duas doses de vacina, segundo a OMS.
África está prestes a alcançar os seis milhões de infeções registadas, segundo dados da Universidade John Hopkins. Na África do Sul, que sofreu cerca de 35% dos casos africanos e tem batido recordes, com mais de 20 mil infeções registadas só este sábado, foram fechados restaurantes e limitou-se a venda de álcool, apostando-se em acelerar o programa de vacinação. Mas isso não chega.
“A nossa campanha de vacinação está a ganhar ímpeto, mas obviamente é demasiado tarde para fazer muito em termos de reduzir o impacto de atual ressurgência que estamos a experienciar”, lamentou Shabir Madhi, professor de vacinologia na Universdidade de Witwatersrand, à Associated Press, salientando as dificuldades em obter fornecimento de vacinas.
A ironia é que a África do Sul, à semelhança da Índia, tem uma grande capacidade de produção farmacêutica, tendo perdido meses a lutar junto da Organização Mundial do Comércio para suspender patentes de vacinas contra a covid-19. Mas essa via de abastecimento foi bloqueada por países desenvolvidos, que se diziam temerosos de que isso afetasse a inovação na industria farmacêutica.
Como tal, o Governo da África do Sul teve de depender do envio de vacinas da AstraZeneca – suspendendo o seu uso quando a eficácia da vacina contra variantes foi questionada, uma decisão criticada pela oposição – e de acordos de fabrico entre a sul-africana Aspen Pharmacare e a Johnson & Johnson.
A Aspen tinha capacidade de produzir até 200 milhões de doses por ano, segundo a AP. Mas esse programa foi suspenso quando se suspeito de uma relação entre a vacina da Johnson e coágulos sanguíneos. Deixando a população sul-africana num ponto em que apenas cerca de 6.5% receberam sequer uma dose de vacina, mostravam os dados do Governo no sábado.
A mesma história Do outro lado do continente, na Tunísia, o sistema de saúde já colapsou, alertou o ministério da Saúde, que apelidou a situação de “catastrófica”, segundo a France Press. Nos hospitais, corpos de vítimas da covid-19 foram deixados junto a outros pacientes por mais de 24h, tal é a pressão sobre profissionais de saúde e casas mortuárias, e já escasseia o oxigénio.
Só no último sábado, registaram-se mais de 9 mil casos entre os 12 milhões de tunisinos, batendo o recorde anterior, que não chegou às 6 mil infeções diárias. Como na África do Sul, trata-se de uma população sem grandes recursos a enfrentar uma variante que alastra cerca de 225% mais rápido que a versão original do vírus, segundo o SAGE – e só uns 4% dos tunisinos receberam sequer uma dose da vacina contra a covid-19.
O cenário repete-se no Uganda, o primeiro local do continente a registar casos da variante Delta. Desde o primeiro momento da pandemia, o Uganda fechou de fronteiras e impôs quarentenas a viajantes, optando por estritos confinamentos, tentando, como tantos outros países, comprar tempo precioso até à chegada da vacina.
Conseguiram manter os casos controlados até junho, mas a taxa de vacinação nunca bateu os 2% dos ugandeses. Agora, até o Mandela National Stadium, em Kampala, inicialmente reservado para o isolamento de casos ligeiros ou assintomáticos de covid-19, está a admitir pessoas a precisar de oxigénio, dada a sobrecarga dos hospitais.
“A não ser que sejam tomadas ações imediatas por países mais ricos que acumularam vacinas, a escassez de vacinas face ao crescendo de casos e mortes será o legado duradouro do surto no Uganda e no resto de África”, acusou Mohammed Lamorde, investigador do Instituto de Doenças Infecciosas da Universidade de Makerere, num artigo de opinião no New York Times. “O recurso mais valioso que temos agora não é dinheiro, é tempo. Mas estamos a perdê-lo”.