Quem tenha lido a última entrevista do primeiro-ministro, pode ser levado a concluir que a UE está à beira de reelaborar os seus equilíbrios e a sua efetiva liderança (eixo Franco-alemão), substituindo-a por novos protagonistas, quem sabe se recrutados num qualquer país da periferia. Se isso dependesse dos ‘spin doctors’ que elaboraram o balaço do “sucesso” da presidência portuguesa, recentemente terminada, o problema estaria resolvido.
Só que não está. Como se verificou nos últimos dias e como seria de esperar, Merkel e Macron (ou seja a Alemanha e a França) lideraram, em nome da UE, uma importante reunião com o presidente chinês onde foram debatidos muitos dos aspetos que são importantes para as duas partes (direitos humanos, relações comerciais, alterações climáticas, geoestratégia, etc.).
É bom recordar que a presidência de Portugal foi precedida pela presidência semestral alemã, ou seja pela liderança de Angela Merkel, e que foi durante esta presidência que foi obtido o acordo político que permitiu à UE, com o apoio de todos os estados membros, recorrer aos mercados financeiros (um tabu que parecia intransponível) e dessa forma viabilizar o plano de recuperação europeu.
Foi também durante essa presidência que se aprovou um plano de aquisição conjunta de vacinas que, independentemente de vicissitudes várias por que passou, se revelou imprescindível como elemento decisivo de combate à pandemia. Com estes dois factos e muitos outros poderiam ser acrescentados, a presidência alemã tem lugar garantido na história europeia e será avaliada de forma muito positiva no futuro.
Ora foram estes os principais dossiers que a presidência portuguesa herdou e se em boa verdade em nada contribuiu para os atrasar, também é justo que se diga que nada fez (talvez porque não pudesse) para acelerar o ritmo da sua execução.
Por isso se disse, em texto anterior, que se tratou de uma presidência irrelevante que, dificilmente merecerá mais do que uma simples nota de pé de página na avaliação futura do projeto europeu. E não tinha de ser necessariamente assim, pois se nos dois aspetos citados, os dados estavam lançadas e o ‘sucesso’ era apenas não atrapalhar, havia uma área – a defesa das liberdades e dos direitos humanos – onde Portugal, enquanto presidente do Conselho da União Europeia, poderia ter deixado uma marca indelével.
Mas neste campo tudo começou mal quando o primeiro ministro, em estágio para o exercício de presidente do Conselho da União, foi a Budapeste defender que não achava aceitável fazer a ligação (como queriam, por exemplo os Países Baixos) entre o cumprimento integral do estado de direito e o acesso aos recursos financeiros indispensáveis para a recuperação europeia.
Naquele momento e com este ato político, que não é gratuito e muito menos proclamatório, Portugal definiu, através do seu representante mais qualificado, a sua agenda política, em matéria de defesa de direitos essenciais e fundamentais para a coesão do projeto europeu e aceitou, na prática, a violação do estado de direito.
Assim o que podia ter corrido bem, correu muito mal e o decurso da presidência portuguesa, até pela ocorrência de diversos factos negativos, que embora de origem doméstica tiveram repercussão internacional, tornou este semestre europeu num período de acentuada irrelevância. No fim da presidência e depois do lamentável episódio da neutralidade sobre a carta dirigida a Orban ainda houve uma tímida tentativa de ativar os processos contra a Hungria e a Polónia, iniciados alguns anos antes pela Comissão.
Mas tudo isto só pode ser considerado ficção política para consumo dos distraídos e sobretudo uma profunda hipocrisia, sabendo-se, como se sabe, que a atual presidência de turno – a da Eslovénia -–jamais dará seguimento a estes procedimentos, como, aliás, o reconheceu o primeiro ministro esloveno ao declarar, que «a imposição de valores europeus imaginários [repare-se na subtileza ‘imaginários’] é caminho rápido para o colapso da União Europeia».
Uma oportunidade ingloriamente perdida para fazer história é o mínimo que pode dizer-se da nossa esforçada presidência e nem o enumerar frenético e complacente, a que alguns recorrem, de supostos, porque artificiais e marginais, pequenos êxitos (bazuca, pac, certificado, testes e social) pode colocar em crise esta apreciação.
Como sabemos a natureza tem horror ao vazio e a União Europeia tem um projeto e um desígnio que, com mais ou menos adversidades, já não pode voltar para trás. O problema não é pois de retrocesso, mas sim de quem está preparado no plano institucional, económico, social, cultural e das liberdades públicas para continuar com êxito.
Para lá de instituições fortes e resilientes (Parlamento, Conselho, Comissão e Banco Central) esse êxito continua a estar extremamente dependente da condução do projeto europeu por parte do eixo franco alemão e do suporte que a Itália de Mário Draghi, ultrapassada a fase aguda da sua crise económica, lhe possa vir a dar.
Por estranha, mas muito feliz coincidência, o calendário atribuiu a próxima presidência, que se iniciará em 1 de janeiro de 2022, à França. Com o dinheiro do Plano de Recuperação a chegar em força às economias europeias e com a determinação política de Macron entrarão finalmente em velocidade de cruzeiro iniciativas, no plano social e no campo dos acordos internacionais, que as duas presidências anteriores (a irrelevante portuguesa e a seguramente negativa eslovena) se limitaram a abordar, sem grandes decisões e consequências. E ficará outra vez provado que sem a Alemanha e a França, não há Europa que valha a pena.