Tendo em conta a proximidade que Anthony Bourdain cultivou com a sua audiência e leitores, depois da sua morte por suicídio há três anos ter provocado uma onda de consternação em todo o mundo, era de esperar que um documentário sobre a sua vida provocasse reações apaixonadas, ainda para mais um com a assinatura de Morgan Neville, que tem já no seu currículo uma série de explorações do género sobre figuras como Keith Richards (Under the Influence, 2015), Brian Wilson (A Beach Boy’s Tale, 1999) ou Johnny Cash (Johnny Cash’s America, 2008). Tudo servia para elevar as expectativas em relação a Roadrunner: A Film about Anthony Bourdain, documentário que estreou a 16 de julho, e que logo no trailer se esquivava do simples registo hagiográfico, prometendo mergulhar nalguns aspetos mais negros da vida de Bourdain.
Depois de este se ter apresentado no mês passado no festival de Tribeca, em Nova Iorque, sendo recebido de forma entusiástica pela crítica, e depois de uma estreia nas salas de cinema que, tendo atraído bastante gente, representou um balão de ar para esses cinemas de bairro mais ameaçados pela pandemia, na semana passada Neville deu por si enredado numa dessas tempestades nascidas num copo de água que ameaça pôr em causa a seriedade das duas horas do filme por causa de uma opção questionável que afecta 45 segundos deste. Em duas entrevistas dadas pelo documentarista à The New Yorker e à GQ, este admitiu que tinha recorrido a um programa de inteligência artificial para simular a voz de Bourdain, usada então para ler três frases que ele nunca disse em voz alta, mas escreveu. O modelo criado partiu de 10 horas de gravações e conseguiu enganar toda a gente. Mas depois de Neville ter confessado o truque que usou, as reações indignadas começaram logo a borbulhar no tacho antes de fazerem explodir a tampa com o maior estardalhaço possível, derramando a sopa. «Quando eu escrevi a minha crítica ao filme não sabia que os autores tinham recorrido à inteligência artificial para falsear a voz de Bourdain», escreveu no Twitter Sean Burns, crítico da estação pública de rádio de Boston.