Face ao verão abrazador no sul do Irão, com as temperaturas a rondar os 50 ºC, no meio da pior seca em meio século, multidões têm saído à rua em Avaz, na província do Cuzistão, exigindo água. Os protestos noturnos depararam-se com a polícia de choque, gás lacrimogéneo, tiros de caçadeira e de metralhadora, matando pelo menos oito pessoas, deixando muitos outros feridos, incluindo crianças atingidas por chumbos de caça, denunciou a Amnistia Internacional na sexta-feira passada. Esta segunda-feira, os protestos alastraram até Teerão, a mais de 820 km de Avaz, avançou a Newsweek, com estradas bloqueadas por manifestantes aos gritos contra o regime dos aiatolas.
São crises diferentes que se misturam. Por todo o Irão, há queixas de apagões recorrentes, de que a inflação do rial tornou bens essenciais inacessíveis. Mas no Cuzistão falta o mais básico dos básicos, não há água nas torneiras. “Queremos água, apenas água, não temos água”, são os gritos que mais se ouvem, contou Mohammad, um vendedor de rua de Avaz, ao telefone com o New York Times.
O bizarro é que, se o clima da maior parte do Irão é semi-árido, o Cuzistão até é das províncias mais húmidas do país, cruzada pelo rio Karun, e em tempos conhecida pela sua paisagem verdejante. No entanto, o Cuzistão – que tem as principais reservas de petróleo iranianas, mas é das regiões mais pobres – também é lar de uma significativa minoria árabe sunita, bem como de grupos não-persas, que há muito se queixam de descriminação da maioria persa xiita. E boa parte da sua água foi desviada para as província desérticas no centro do país ou para barragens, enquanto a que sobra chega contaminada por descargas industriais.
A questão é que o Irão “está essencialmente falido de água”, avisou Kaveh Madani, investigador da Universidade de Yale e antigo dirigente da agência ambiental iraniana, à rádio PRI. É algo potenciado pelas alterações climáticas, como noutros pontos do globo, mas também por má gestão hídrica – na primavera passada o Cuzistão até sofreu de cheias devastadoras, com vários mortos, segundo a France Press – e pelo impacto das sanções americanas, argumentou o investigador.
“As sanções não são a raiz deste problema”, ressalvou, num artigo no Rethinking Iran. No entanto, deixaram o Irão sem acesso a tecnologia avançada, que poderia mitigar a poluição de rios e aquíferos pela sua indústria, além de tornarem a economia mais dependente da exploração intensa de recursos naturais, incentivando a uma política “de sobrevivência e insustentável”, queixou-se Madani.
Agora, a seca apanhou o regime dos aiatolas num momento de extrema vulnerabilidade, tendo o Irão sido dos países mais afetados pela pandemia, no rescaldo de umas eleições presidenciais em que foram desqualificados praticamente todos os candidatos moderados.
Os ultraconservadores, previsivelmente, ficaram com o poder nas mãos, com a vitória de Ebrahim Raisi – mas os iranianos deixaram o seu desagrado bem claro, com uma taxa de abstenção de 51,8%, a mais elevada desde o estabelecimento da República Islâmica, em 1979, bem acima dos cerca de 27% de abstenção em 2017 e 2013.
Importa lembrar que não seria a primeira vez que a seca fazia tremer regimes autoritários no Médio Oriente. A guerra na Síria, que se arrasta desde 2011, foi despoletada por protestos contra o regime de Bashar Al-Assad associados a uma seca extrema que devastou a agricultura síria.
E já em 2015 um ex-ministro da Agricultura do Irão, Isa Kalantari, citado pela Bloomberg, avisava que a escassez de água podia levar 50 milhões de iranianos, uns 60% da população, a ter de fugir do país – ou a sair às ruas como vimos na última semana.