Há pouco mais de um ano Andrew Cuomo encontrava-se no cume do seu esplendor político. A serenidade e esperança marcavam os seus discursos e traziam otimismo aos lares nova-iorquinos aterrorizados por um vírus que espalhava infeções, mortes e internamentos a uma velocidade relâmpago.
As aparições televisivas do experiente político de 63 anos, nas suas conferências de imprensa diárias, contrastavam com a agitação das de Donald Trump. A opinião pública começou inclusivamente a vê-lo como possível candidato à presidência norte-americana, numa altura em que Bernie Sanders se perfilava como o grande adversário de Trump e Biden se resguardava da pandemia.
De um momento para o outro, o cenário transfigurou-se. A reputação, o prestígio e a própria liderança de Cuomo – filho do ex-governador de Nova Iorque, Mario Cuomo e irmão do conhecido pivot da CNN Chris Cuomo – sofreram um grande revés. Esta semana o mundo ficou a saber que, nos bastidores, Cuomo abraçou, beijou e apalpou várias mulheres durante todo este tempo. Agora que o inquérito independente de cinco meses chegou ao fim, a investigação concluiu que o governador do estado de Nova Iorque assediou sexualmente onze mulheres, tendo violado leis federais e estaduais, revelou a procuradora-geral do Estado, Letitia James.
O relatório de 165 páginas, onde constam todos os detalhes do processo, dá a conhecer os primeiros assédios ocorridos em março, quando duas assessoras se queixaram de comportamentos impróprios no local de trabalho; os abraços, os beijos, os apalpões – sem consentimento – e os comentários de que várias outras mulheres foram alvo; ou o quão «tóxico» se tornara o local de trabalho, onde o assédio era permitido e considerado quase normal.
«O que esta investigação revelou foi um padrão perturbador de comportamentos do governador de Nova Iorque», afirmou a procuradora. A porta-voz da assembleia de Nova Iorque adjetivou da mesma forma as descobertas evidenciadas , considerando que mostram que Cuomo «não é apto para o cargo».
A investigação foi supervisionada pela própria procuradora, que nomeou dois advogados externos para a liderar, Joon Kim e Anne Clark. O inquérito deu entrada em março, numa altura em que as acusações públicas não paravam de surgir, tendo a própria administração de Cuomo emitido um pedido formal para que fosse levado a cabo um inquérito independente. Conhecidos os detalhes, Letitia James afirmou que do seu gabinete não partirá nenhuma acusação criminal contra o governador, na medida em que David Soares, procurador do condado de Albany (capital do Estado de Nova Iorque), se disponibilizou para formalizar as acusações em tribunal.
De Biden a Nancy Pelosy, dos congressistas aos senadores de Nova Iorque, choveram os pedidos de demissão. «Penso que ele deve renunciar», afirmou Biden aos repórteres na terça-feira.
‘Nunca toquei em ninguém’
O New York Times retrata também, em breves entrevistas, o que sentem os eleitores nova-iorquinos que outrora votariam sem pensar duas vezes em Cuomo: «É um grande infortúnio que esses dois sejam a mesma pessoa», lamentou Sarthal Sharma, de 33 anos. Rob Lombardi, dono de um restaurante, disse que até votaria no atual governador em 2022, mas não depois do sucedido. «Como poderia? Tenho uma filha».
«Os factos são muito diferentes daquilo que foi retratado no relatório. Nunca toquei em ninguém de forma inapropriada, isso não é quem eu sou nem quem nunca fui», alegou Cuomo na terça logo depois da publicação do relatório. Declarou também que só sairá do cargo após o final do atual mandato (o terceiro), em novembro de 2022. Tendo em conta a conjuntura de desconfiança por parte do poder legislativo democrata e da Casa Branca e a investigação da assembleia estadual em curso para averiguar se existem ou não motivos para uma destituição, parece uma missão condenada ao fracasso.
Germano Almeida, comentador da SIC Notícias, especialista em política norte-americana e autor do recente livro Joe Biden: o Homem e as suas Circunstâncias, considera que Andrew Cuomo «chegou ao fim da sua carreira política, pelo menos ao mais alto nível». «É um daqueles casos de desperdício político. Ele tinha um grande capital político, era apontado como um dos futuros líderes democratas a nível nacional, mas perdeu todo esse capital depois desta situação».
O caso torna-se especialmente mais grave, segundo o especialista, pela «discrepância entre o que Cuomo dizia e fazia. Sempre mostrou ser alguém que defendia as vítimas do Me Too, mostrou nas campanhas para o cargo de governador de Nova Iorque que tinha tolerância zero em relação ao assédio sexual e perante a acusação, que apesar de não ter terminado é bastante forte, faz-me crer que o futuro político de Cuomo está perfeitamente comprometido», prevê.
A hipótese de ser afastado do cargo também é real. «O que torna a posição de Cuomo insustentável é que não é apenas o partido republicano a exigir a sua demissão. Na assembleia estadual de Nova Iorque, onde Cuomo é líder do executivo, a maioria dos deputados [mais de 80 em 150 no total] já exigem o impeachment dele. Desses cerca de 80, metade são democratas. Não é uma daquelas situações de republicanos num lado e democratas no outro. Isso torna, na minha opinião, a situação dele do ponto de vista político insustentável».
O estigma negativo criado à volta de Cuomo parece poderá ser incontornável, segundo Germano Almeida. «Não seria novo na política americana, olhando para casos como o de Clinton ou do próprio Trump, os eleitores desculparem esta situação com outras. Mas não creio que isso aconteça no caso de Cuomo. As declarações de Biden tornam quase impossível a sua escapatória desta situação».
E antevê o analista: «Ainda há coisas a determinar, há pequenas partes em que ele ainda se pode defender mas neste momento a situação parece-me estar numa fase em que mesmo antes de ele perder judicialmente o mandato, poderá perder a nível político as condições para continuar».
*Editado por José Cabrita Saraiva