“Talvez não o consiga contactar outra vez”, avisou o diretor de uma organização não-governamental afegã dedicada aos direitos das mulheres, num email ao i. São palavras duras de ler.
“Nunca estive tão stressado na minha vida. Não consigo dormir, não consigo descansar, tranquei-me numa casa que não é a minha”, desabafou, enquanto os “estudantes de teologia” penetravam Cabul, trocando símbolos da República pela bandeira branca do seu emirado, fazendo comunicados no palácio presidencial, com espingardas de fabrico americano em punho. Lá fora, começavam as revistas casa a casa, à procura de armas e veículos, conta-nos o ativista.
“Ninguém sabe qual será o próximo passo! O nosso medo perturba-nos mais quando sabemos que eles foram ao Ministério das Finanças desenterrar os registos fiscais de cada indivíduo”, continua. “Fica ainda pior quando somos membros de uma minoria étnica e religiosa, os hazaras”, lamenta, referindo-se a uma comunidade xiita alvo de uma série de brutais atentados nos últimos anos, incluindo um massacre numa maternidade.
“Tenho a minha mulher e o meu filho de sete anos comigo. Vê-los nervosos e assustados destrói-me, a cada momento”, conclui. “Esperemos o melhor”.
O medo sentido por este ativista está longe de ser caso único. Afegãs habituadas a ter nas mãos o seu destino fecham-se em casa aterrorizadas, cabeleireiros e salões de beleza deitam abaixo placares com imagens de mulheres destapadas. Os preços das burcas estão inflacionados, passaram de uns 200 afegânis (cerca de dois euros) para dois ou três mil, contaram ao Guardian, porque há demasiadas avós, tias e mães a comprá-las à pressa, para jovens que nunca souberam o que é viver escondidas atrás do tradicional manto de tecido azul afegão.
Pânico As histórias que chegam de Cabul mostram uma cidade cosmopolita tomada pelo pânico, à espera de uma nova idade das trevas. Os mais receosos tentam escapar a todo o custo do Afeganistão. E esse custo pode ser a vida, tendo pelo menos sete pessoas morrido no caos do aeroporto internacional Hamid Karzai, várias delas porque caíram de um avião de transporte militar americano, a que se agarraram desesperadamente enquanto este levantava voo, avançou a USA Today.
Os cerca de três mil militares enviados pela Casa Branca para a evacuação varreram a pista de aterragem, disparando tiros para o ar. Mas as imagens de centenas de afegãos a correr em redor de um Boeing C-17A, gritando, acenando e pondo-se à frente da aeronave, arriscam ficar marcadas na história, como as fotos da correntes humana até ao telhado da embaixada americana em Saigão, quando o Governo sul-vietnamita apoiado pelos EUA caiu, em 1975.
Essas velhas fotos ressurgiram de novo nas redes sociais, muitas vezes contraposta com a atualidade, mal os talibãs chegaram aos portões da capital, no rescaldo de tomarem Kandahar e Herat, a segunda e terceira maiores cidades do Afeganistão. A rapidez da sua ofensiva, que em boa parte do país não encontrou resistência, com rendições em massa, muitas vezes mediadas através de anciões e alianças tribais, surpreendeu tudo e todos.
Enquanto o Presidente Ashraf Ghani fugia discretamente de Cabul – com quatro carros e um helicóptero carregado de dinheiro, afirmaram fontes diplomáticas russas à Reuters – e os talibãs entravam na capital a pretexto de repor a ordem, tendo militares e polícias fugido, todos se questionavam o que aconteceu às duas décadas de apoio da NATO às forças afegãs. Bem como aos quase 75 mil milhões de euros investidos nelas.
Falhanço É incrível como os talibãs, cujas forças estão estimadas em cerca de 60 mil combatentes com armamento ligeiro, podendo chegar aos 200 mil chamando forças irregulares e milícias aliadas, segundo o US Combating Terrorism Center, derrubaram umas forças armadas com 300 mil efetivos, armamento moderno, artilharia, tanques e centenas de aeronaves.
“Era sabido que esses 300 mil homens em boa parte não passavam do papel. Ou seja, por questões de corrupção, de soldados que estavam registados mas eram os oficiais que encaixavam o dinheiro”, explica Bruno Cardoso Reis, subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-IUL), especialista em Segurança.
“E também se sabe que muitos desses soldados eram forças pouco treinadas, o Ocidente não treinou 300 mil homens a fundo. Fez isso com algumas dezenas de milhares de forças especiais, que continuaram a ter alguma capacidade de resposta”, salienta o professor.
Não é por acaso que essas forças especiais são alvo de um ódio particular dos talibãs. Ainda em julho, quando estes já ensaiavam a política de escoltar soldados afegãos rendidos até casa, ou dando-lhes dinheiro para a viagem, para incentivar às deserções, 22 comandos cercados que se renderam foram massacrados a tiro, entre gritos de alegria dos fundamentalistas, mostram vídeos obtidos pela CNN.
“No fundo, grande parte do exército afegão era uma milícia que teve treino q.b. e que muitas vezes tinha deficiências na sua educação. Por isso tinham alguma dificuldade em utilizar o armamento mais complexo que lhes era fornecido”, continua Cardoso Reis. Os talibãs não hesitaram em explorar essa fraqueza, e quando se aperceberam que Cabul tinha mais dificuldade em substituir os pilotos que as aeronaves, lançaram uma campanha de assassinatos para as manter em terra.
“De facto as forças afegãs foram treinadas para combater com o apoio de exércitos ocidentais, com apoio de meio aéreos”, acrescenta o professor. “A retirada disso tem um impacto militar objetivo, mas também psicológico e moral. Se as coisas corressem mal, a ideia era que forças americanas iam resolver o problema, mas isso desapareceu. E muito rapidamente”.
Tudo isto explica de algum modo a queda do Governo afegão. Mas, a quem se espanta que tenha sido tão súbito, e sem grandes batalhas urbanas, casa a casa, rua a rua, importa lembrar que o Afeganistão é um país que está há décadas constantemente em guerra, onde se aprendeu a viver à volta do conflito.
“Sabemos que isto é tradicional nas campanhas no Afeganistão. Aqui não há inimigos mortais”, nota Cardoso Reis. “Tal como os talibãs nas suas primeiras campanhas nos anos 90 conseguiram cooptar muita gente, que supostamente estava do outro lado, aconteceu a mesma coisa em 2001, comandantes locais voltaram a mudar de lado quando perceberam que os talibãs iam cair”.
Agora, a pergunta é onde vai o Afeganistão nas mãos de uma coligação tão heterogénea e com interesses tão diversos quanto os talibãs – e se isso não resultará numa guerra civil, com um banho de sangue semelhante ao que se viu após a retirada dos soviéticos, em 1989.