Face aos persistentes rumores de que os talibãs estão a elaborar listas de opositores, e ao êxodo de gente desesperada por sair do Afeganistão, os fundamentalistas islâmicos esforçam-se por mostrar que não são o mesmo movimento sanguinário que governou o país até 2001.
Esta terça-feira até prometeram uma amnistia total para todos os apoiantes da oposição, bem como aqueles que colaboraram com a intervenção da NATO, “quer tenham sido tradutores, quer tenham tido atividades militares, todos foram perdoados”, garantiu o porta-voz Zabihullah Mujahid, traduzido pela Al Jazeera.
“Ninguém vai bater à porta para os inspecionar ou interrogá-los”, assegurou, negando qualquer “vingança”, considerando que as buscas casa a casa que decorrem por todo o país foram abusos de militantes. E o novo emirado “não quer que as mulheres sejam vítimas”, acrescentou Enamullah Samangani, da comissão cultural talibã, citado pela rádio NPR.
O que isso significa, concretamente, é outra questão. E mesmo que a liderança talibã, sedenta de fundos internacionais, não queira repetir exatamente o que se viu nos anos 90 – quando as afegãs não podiam sair à rua sem um “guardião” masculino, estavam impedidas de trabalhar ou estudar, era proibida música, filmes ou televisão, e havia punições como chicoteamento ou execução pública – há grandes dúvidas de que tenha pleno controlo dos seus homens. Afinal, falamos de um movimento heterogéneo, baseado em células quase independentes, redes lideradas por senhores da guerra rivais e alianças tribais desconfortáveis.
Um dos principais chefes talibãs, Amir Khan Muttaqi, está na capital para negociar com o que sobra da liderança afegã, após a fuga do Presidente Ashraf Ghani, avançou a Associated Press. Não é esperado algo como se viu em 1996, quando talibãs entraram em Cabul, capturaram o ex-Presidente Mohammad Najibullah num complexo da ONU, torturaram-no até à morte, arrastaram-no pelas ruas e penduraram-no num poste com o irmão.
A estratégia atual dos talibãs é clara. “Agora que os combatentes das montanhas e desertos chegaram às portas das cidades, os mujahidin não querem lutar dentro da cidade”, explicara Muttaqi em julho, quando os fundamentalistas cercavam boa parte das capitais distritais. “É melhor usar quaisquer canais possíveis para fazer chegar o nosso convite”, afirmou o talibã à France Press, pretendendo “evitar que as cidades deles fiquem danificadas”.
Entretanto, com cada vez mais opositores em fuga, o controlo do país pelos talibãs reforça-se. Forças da NATO têm conseguido manter sob controlo o aeroporto internacional Hamid Karzai, após as cenas desesperadas de segunda-feira, com multidões na pista de aterragem e gente a cair de uma aeronave em pleno voo. Têm a aparente bênção dos talibãs, que não tentaram impedir as suas operações.
A expectativa é conseguir retirar do país pelos menos mil passageiros por dia. Contudo, só num único avião de carga militar viajaram (ver foto) mais de 640 pessoas rumo ao Qatar, incluindo mulheres e crianças, encafuadas no porão, o maior número de tripulantes alguma vez levado por um C-17, avançou a Defense One.
Incerteza À medida que, pouco a pouco, são reveladas peças do puzzle que é o futuro do Afeganistão, os afegão que não conseguem fugir desesperam.
“De momento toda a gente está abrigada nas suas casas”, contou ao i Susan Aragaki, uma voluntaria do Conselho das Mulheres do Afeganistão sediada nos EUA, que não esconde a preocupação com as suas colegas que agora vivem à sombra dos talibãs. “A maioria está a tentar fugir. Eu estou a tentar ajudá-las”.
A situação não está fácil para uma organização que tenta há décadas melhorar as condições de vida das afegãs – atravessaram a intervenção militar soviética, a retirada em 1989 e a desastrosa guerra civil que se seguiu, a tomada de poder pelos talibãs, a sua queda e agora o seu regresso a Cabul. No meio desse caos, geriram um hospital no bairro de entre programas de ensino a mulheres, incentivadas a levar os seus filhos com elas, para que não tenham de abdicar das aulas.
Agora, “as operações da ONG estão suspensas. Não há salários. Os fundos secaram. A corrida aos bancos significa que não há dinheiro vivo”, lamenta Aragaki. “Os talibãs têm uma ideologia opressiva. É incerto que possamos retomar as atividades”.
Por mais concessões que os talibãs façam, não há grandes esperanças para as afegãs. Nos últimos tempos, sempre que recebem repórteres estrangeiros, fazem questão de mostrar que nas áreas que controlam algumas raparigas têm ido à escola – mas só até aos 12 anos, a idade para casarem, e mesmo isso depende da disposição dos comandantes talibãs locais. Na prática a sua ideologia, uma mistura muito particular do islão fundamentalista com o código tribal pashtun, o Pashtunwali, continua a ser a pedra basilar do movimento.
“Tenho o coração pesado. Por favor apele aos líderes do seu país, à comunidade internacional, que pressione os talibãs a apoiar os direitos de mulheres e raparigas”, pede a voluntária do Conselho das Mulheres do Afeganistão. Fez questão de enviar por email as fotos da última cerimónia de graduação das estudantes da sua ONG, orgulhosa (ver pág. 4). Talvez seja das últimas graduações de mulheres no Afeganistão durante muitos anos.
A incredulidade com a perda das conquistas das últimas décadas, com o ódio dos talibãs, é geral. “Nunca compreendi quem vocês são e porque não querem que vivamos em paz”, escreveu no Instagram Shamsia Hassani, conhecida como a primeira grafiter afegã, quando publicava um dos seus trabalhos (foto acima), que virou viral nas redes sociais, pelo mundo fora. “Quero o meu país de volta”.
Cabul nas mãos dos fundamentalistas Com os talibãs firmemente instalados em Cabul, o resto do mundo pensa em como lidar com o novo regime.
Face ao desastre que foram as últimas duas décadas de intervenção militar liderada pelos EUA, não parece haver qualquer apetite por uma ação mais musculada. A linha vermelha é o ressurgimento no Afeganistão da Al Qaeda ou de outras organizações terroristas com ambições globais, avisou o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, ameaçando que a organização “tem capacidade de atingir grupos terroristas à distância”.
Outra forma de influência sobre o regime talibã pode ser a dependência do seu país quanto ao auxílio humanitário internacional, para providenciar os serviços mais básicos às populações – caso os restantes países não sigam o exemplo da Alemanha, que cortou toda a ajuda ao desenvolvimento do Afeganistão.
“Historicamente o Estado afegão é sempre muito fraco, com a exceção de umas poucas cidades, como a capital. Está muito pouco presente e, como consequência, praticamente não cobra impostos, por isso depende de subsídios e apoios”, salienta Bruno Cardoso Reis, subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-IUL) e especialista em Segurança.
Em 2018 quase 80% do orçamento público afegão, de cerca de 9,4 mil milhões de euros, veio de doações estrangeiras, segundo o Banco Mundial – também era essa a tendência quando a potência dominante sobre país eram os soviéticos, mas é algo que já vem desde 1842, quando os britânicos foram escorraçados de Cabul, num dos piores desastres da história do seu império, e o Afeganistão recebeu algum grau de autonomia.
“Nós sabemos que os apoios ocidentais são absolutamente indispensáveis para o orçamento do Afeganistão. Na medida em que os talibãs queiram manter alguns aspetos de um Estado moderno, precisarão deles”, considera Cardoso Reis. “Agora, vamos ser claros, não é muito evidente que o queiram, pelo menos no que toca a todas as fações dos talibãs”, ressalva.
Um sistema judicial como o conhecemos, por exemplo, não parece estar na agenda dos talibãs, tendo em conta a maneira como têm gerido o seu território. Aí, imperam os tribunais tradicionais, que seguem a sharia, onde comandantes talibãs, aconselhados por anciãos locais, julgam arguidos sem qualquer representação legal ou recurso, a quem muitas vezes são extraídas confissões sob ameaça de morte ou tortura, com base em rumores.
As penas são aberrantes. “A nossa sharia é clara, para aqueles que têm sexo e não são casados, sejam raparigas ou rapazes, a punição é 100 chicotadas em público”, relatou Haji Badruddin, um juíz talibã da província de Helmand, à BBC. “Para qualquer um que seja casado, têm de ser apedrejados até à morte”.
Os tribunais talibãs são surpreendentemente populares. Gente condenada por roubo perde uma mão, crimes graves resultam em morte, tudo em julgamentos sumários. Algo que agrada a quem está cansado da lentidão do sistema judicial, da corrupção geral do Governo afegão. “Tive de pagar tantos subornos”, queixou-se um dos litigantes que se fartou e se dirigiu aos talibãs, ao canal britânico.
Seja como for, com sistema judicial moderno ou lei da sharia, os afegãos continuam a precisar de água potável, estradas, saúde, e os talibãs terão um enorme problema nas mãos se não responderem a essa necessidade.
“Penso que há uma fação dos talibãs que gostaria de manter alguma ajuda ocidental”, avalia Cardoso Reis. “No fundo, é a fação um pouco mais moderada, e que tem procurado chegar a algum tipo de coligação ou acordo, para cooptar alguns dirigentes do anterior Governo”.
A questão é que já têm alternativas. A Rússia de Vladimir Putin desde há muito que mantém relações com os talibãs, ansiosa por ganhar influência e proteger o seu flanco sul. E Pequim até convidou uma delegação dos fundamentalistas para se reunir com o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, no final de julho – no dia seguinte, pediam aos cidadãos chineses que abandonassem o Afeganistão assim que possível.
É uma fonte alternativa de fundos para os talibãs de linha mais dura, que não queiram fazer quaisquer concessões ao países ocidentais. “Desde que deem garantias de que não haverá qualquer tipo de apoio a movimentos armados islamitas uigures, a China não terá preocupações tão grandes com os direitos humanos ou das mulheres, e estará disponível para apoios ou investimento”, diz Cardoso Reis.
Entretanto, no noroeste do Afeganistão, adivinham-se alguns problemas internos para os talibãs. Quase todos os seus opositores se renderam, mas nem todos. Ahmad Masud, filho de Ahmad Shah Masud, conhecido com “leão de Panshir”, continua em pé de guerra nesta província montanhosa. A sua capital, Bazarak, no centro de um vale fértil, nunca foi tomada em décadas de guerra. E e já se juntou a Ahmad o vice-presidente Amrullah Saleh, que se proclamou líder do país após a fuga do Presidente, e que jurou lutar até ao fim.