Lápis de cera

Por Catarina Teles de Menezes Há duas coisas que fazem parte da infância de todos os sortudos. Claro está, lápis-de-cera e avós. Atrevo-me a dizer que como quase todos nós, tive melhores avós que lápis de cera. Para o Admirável Mundo Novo de Huxley – em parte, já entre nós (como Nosso Ford) – poderá…

Por Catarina Teles de Menezes

Há duas coisas que fazem parte da infância de todos os sortudos. Claro está, lápis-de-cera e avós. Atrevo-me a dizer que como quase todos nós, tive melhores avós que lápis de cera.

Para o Admirável Mundo Novo de Huxley – em parte, já entre nós (como Nosso Ford) – poderá parecer inacreditável, mas uma altura houve cuja moda, entre crianças, não era o TikTok. O que mais se via, ainda antes do tempo dos Tamagotchis (os gadgets mais icónicos da última década do milénio de D. Afonso Henriques) eram umas maletas recheadas de material primoroso, oferecidas na compra de determinados jornais. É verdade. Como as coisas mudam!

Eram o apogeu do conceito ‘aesthetically pleasant’. Revestidas de uma madeira suavemente envernizada, repartiam-se por secções logicamente meditadas, das cores quentes às cores frias, das mais claras às mais escuras. Tal e qual o pináculo da estética, era melhor a aparência que a essência. Do lado superior direito, as canetas, secas de si. Abaixo, uma tesoura inoperante e um tubo de cola ineficiente. Do lado superior esquerdo, os lápis de cor, sem bico ao primeiro rabisco. Abaixo, os lápis de cera, partidos, mas resistentes. O resto… Bom, o resto que não recordo, certamente os nossos irmãos ou primos tinham tirado da maleta e nunca mais posto no sítio.

No café central, invariavelmente alma concelhia do ordenamento do território, avós discutiam questões complexas aos ouvidos das crianças, saco de pão e jornal pousados em cima da mesa, ambos destinados a matar a fome dos netos. Perdi a conta da quantidade de pães e de recortes de artigos que recebi para as mãos. Intrigava-me a divindade do pão, mas sobretudo o interesse pelos colunistas (um tal de MEC), sei lá se cheios de coisas para dizer, mas que se faziam ler pelos meus avós… Como se fossem gente!

Depois de lidos, sabidamente, o seu destino era fatal. Haveriam de ser base de um dos projetos do Art Attack, matéria-prima de todos os pequenos Manny Mãozinhas deste país que outrora se julgaram Picassos. Não era o meu caso e não era, certamente, o caso de muitas crianças. O fim que destinava àqueles lápis de cera era outro. À data, convicta de querer, nos tempos livres, ser um devaneio de Pessoa ou uma criação de Sophia, usava-os para escrever aquilo que nunca escrevia bem. Recordo um Avó Crida cuja intenção seria um Avó Querida (mas, convenhamos, não seria tão sentido). Há, nos erros inocentes, qualquer coisa de bonita. Gosto de pensar que éramos crianças visionárias de um futuro acordo ortográfico ou que no limite, um escritor podia tudo (creio atrevidamente que Saramago concordaria).

Neste Admirável Mundo Novo, em que a maioria das crianças desconhece o luxo que é ter uma maleta daquelas, os sonhos são cada vez menos vividos porque a realidade é cada vez mais sonhada. A maioria dos sonhos das crianças descobre-se para lá do esteticamente agradável e, com sorte, sob o incentivo de avós, essa relação tão carinhosa perdida no tempo. Que geração sortuda essa que sonhou os sonhos e viveu a realidade. Por tê-lo feito, hoje comprarei o pão e o jornal, que oferecerei aos meus avós. Sei que recortarão este artigo com ainda mais carinho do que aquele com que cortarão o pão que (também) os alimenta.

O tempo inverteu os papéis, mas o amor que nutro por eles e por lápis de cera é o mesmo. Sou uma sortuda por poder continuar a dizer que tenho melhores avós que lápis de cera. Contudo, sou sobretudo sortuda por continuar a dizer que tenho avós quando já não faço a menor ideia de onde estará a maleta.

Vila Nova de Cerveira, 
agosto de 2021