Diz-se que a Rainha-Mãe britânica bebia um gin antes do almoço, vinho a acompanhar a refeição, de seguida um cálice de Porto, um Martini ao final da tarde e ainda champanhe Veuve Clicquot ao jantar. Ou pelo menos assim consta no livro Behind the Throne: A Domestic History of the Royal Household, do historiador Adrian Tinniswood.
Winston Churchill era também um conhecido fã de uísque e de charutos cubanos e junta-se a uma interminável lista de personalidades políticas que não promoviam propriamente os estilos de vida mais saudáveis e virtuosos, mas que marcaram para sempre a História da Humanidade.
São muitos os políticos que além e áquem fronteiras se viram forçados a reconhecer em público questões do foro privado para evitarem ataques ou campanhas de adversários políticos.
Nuno Morais Sarmento, ministro de Durão Barroso, foi um dia à televisão fazer dos tempos difíceis em que consumiu drogas duras.
Quando se fala de outros detalhes da vida privada das figuras políticas, como as suas preferências sexuais, recorda-se um extenso rol de nomes que, ao longo de milénios, exibiram também orientações e estilos de vida pouco ou não mesmo heteronormativos, mas que deixaram a sua marca na História da Humanidade.
Em Portugal, nos últimos anos, várias figuras políticas assumiram publicamente a sua homossexualidade, com o eurodeputado Paulo Rangel a tornar-se o mais recente caso. A ministra da Cultura, Graça Fonseca, e André Moz Caldas, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, são dois outros nomes que assumiram publicamente a sua orientação homossexual. Um detalhe da sua vida privada que os mesmos decidiram trazer a público e que levantou discussão sobre a relevância e os desafios que se desdobram ao misturar vida pública foro privado.
Será que, afinal de contas, os detalhes da vida privada (como a orientação sexual) dos políticos devem ser fatores a ter em conta no momento de os escolher para um cargo público?
O politólogo João Pereira Coutinho é cauteloso na resposta. «Eu sei que a resposta politicamente correta é dizer que a vida privada de um político não tem qualquer relevância para o conhecimento público, e concordo, mas abro uma exceção, que é quando podem existir situações de chantagem», começou por explicar ao Nascer do SOL. «Quando existem estas situações, ou campanhas negras que podem condicionar a atuação de um político, e quanto mais importante e mais responsabilidade tem, mais importante é que o próprio entenda revelar aspetos da sua vida pessoal, que em condições normais ficariam reservados e bem reservados», acrescentou.
O politólogo relembrou precisamente o caso de Paulo Rangel, achando «bem ter simplesmente esclarecido a situação, não porque seja do interesse nacional, mas porque isso desarma campanhas negras ou eventuais situações de chantagem que se podiam abater sobre ele». A vida de um político, continuou Pereira Coutinho, «não tem interesse público, exceto quando pode ser alvo de campanhas negras».
Para o politólogo, «não existe nenhuma relação substancial entre uma conduta privada mais ‘liberal’ e a qualidade da governação», colocando mesmo um exemplo caricato sobre a mesa: Pereira Coutinho compara Churchill, «que não era conhecido por levar uma vida saudável, e, ainda assim, foi um líder que a Europa precisava» com figuras como Maximilien Robespierre, o ‘incorruptível’, «de conduta privada e imaculada, que, no entanto, pôs a guilhotina a funcionar bem», e até Adolf Hitler, um conhecido vegetariano que não revelou em vida excessos nem detalhes sórdidos da sua vida privada. «Prefiro um político com vícios do que um sem vícios, porque pelo menos significa que é humano», concluiu.
Menos informação,
mais emoção
Também a investigadora e professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Raquel Varela desvaloriza a relevância dos detalhes da vida privada dos políticos para a governação, afirmando que é «muito importante falar disto nesta sociedade de ‘espetáculo’». «Com as altamente comunicativas campanhas eleitorais ainda explodiu mais, e tem de haver uma barreira clara e independente entre aquilo que é privado e aquilo que é público», salienta a historiadora, declarando que «a comunidade não tem nada a ver com os aspetos privados dos políticos». Raquel Varela, no entanto, deixou uma separação entre detalhes que possam interessar ao bem público e comum, como relatos de contas públicas que incidam sobre serviços e bens públicos, e detalhes do foro privado dos políticos.
Raquel Varela acrescenta uma outra perspetiva sobre este assunto, dando conta dos casos onde a questão não se prende tanto sobre se é ‘seguro’ ou ‘válido’ que um político partilhe os dados privados da sua vida, mas sim sobre o uso que os mesmos políticos dão a estes mesmos detalhes privados da sua vida. «Ao que assistimos é a um aproveitamento dos políticos que utilizam a sua vida privada em seu proveito, mas também assistimos a campanhas negras para as quais os media e os jornais acabam por ser veículos de transmissão, para tentar retirar alguém da vida política, através da vida privada», constatou a historiadora, falando de uma cultura de «incentivo ao voyeurismo e da invasão da vida privada».
A título de exemplo, Raquel Varela referiu Marcelo Rebelo de Sousa, um Presidente da República que não esconde o local onde passa férias, que é conhecido por ser ‘o Presidente dos afetos’, e que, para a historiadora, «utiliza os detalhes da sua vida privada para se promover». «Quanto menos cultura e formação política há, mais sobram fotografias e detalhes da vida privada. Discutir a dívida pública, o lugar do país no mundo e a crise económica exige uma complexidade para a qual não há formação política, mas discutir a praia onde o Professor Marcelo vai ou quem é homossexual ou não é, há 10 milhões de pessoas que têm opiniões sobre isso», ironizou.
Raquel Varela acusou a chegada de uma «onda puritana», e de um conservadorismo que «vem da esquerda e da direita». «Vivemos uma onda persecutória, de fim da fronteira entre público e privado, com muitos movimentos puritanos a vir ao de cima. Se pensarmos nas políticas de cancelamento, também referem muito isso», concluiu a historiadora..