O Imperial War Museum (IWM), em Londres, assinala os 20 anos dos atentados de 11 de Setembro de 2001 com com uma exposição sobre as dramáticas fotografias captadas pela lente de Wim Wenders após a tragédia. Ao refletir sobre o que testemunhou em Nova Iorque, o realizador afirmou: «A minha câmara panorâmica capturou esta mensagem incrível: ‘Algo terrível, totalmente infernal, aconteceu aqui. Mas, por favor, que isso não se torne um motivo para mais ódio, que as vidas que foram tiradas aqui não se tornem o motivo para mais derramamento de sangue. Que este lugar seja para sempre um símbolo de paz e cura’».
Em novembro de 2001, dois meses após os acontecimentos, o cineasta visitou o Ground Zero para testemunhar a devastação causada pelos ataques terroristas e a enorme operação de recuperação que estava a ser realizada. Mas onde estava Wenders quando tudo aconteceu? Quais foram as razões que o levaram a querer tomar parte deste episódio traumático? E por que se sentiu assombrado nos anos seguintes?
Sonho ou presságio?
Comecemos pela resposta à última pergunta… Nascido em agosto de 1945, Wenders cresceu entre os escombros e as ruínas da Alemanha Ocidental do pós-guerra. Em criança, em vez de sonhar com campos verdes, super-heróis ou animais, sonhava com torres em queda. Quase como um presságio, como se o menino estivesse já a adivinhar o que aconteceria décadas depois, durante a sua idade adulta.
Aos 56 anos assistiu incrédulo, através da televisão, ao colapso das torres gémeas do World Trade Center. A imagem que o perseguia há anos tinha-se realizado – e isso abalou-o. Além dos anos assombrados por sonhos que não conseguia explicar, essa nuvem negra continuou em cima dele: «O acontecimento começou a assombrar-me muito», afirmou numa entrevista ao The Guardian. «Como quase toda a gente, vi tudo ao vivo na televisão. Naquele momento, foi como se toda a humanidade fosse fortemente abalada», acrescentou.
Após os traumáticos acontecimentos, os sonhos continuaram a ser frequentes, mas com uma pequena nuance: desta vez, ele próprio estaria preso nas torres prestes a desabar. «Queria de alguma forma exorcizar essas coisas e achei que se voasse até Nova Iorque e as visse por mim mesmo, isso ajudaria», revelou.
A experiência vivida no local
Foi depois dessa reflexão que Wenders chegou ao Ground Zero e tirou as cinco fotografias de grande formato agora exibidas no Imperial War Museum, em Londres, como parte do seu programa 9/11 Twenty Years On. Obras extraordinárias que captaram grandes faixas horizontais e verticais desse apocalipse com guindastes, escavadores e bombeiros que se destacam em cores heroicamente brilhantes. Pilares despedaçados que se projetam em pilhas de vigas empenhadas num cenário infernal de caos e destruição.
Campeão de longa data no estrelado americano em filmes como Alice in den Städten, de 1974 e Paris, Texas, de 1984, Wenders residia nos Estados Unidos na época, embora tenha retornado brevemente a Berlim no dia em que as torres caíram. O diretor era amigo de Joel Meyerowitz, o único fotógrafo com autorização oficial da cidade para documentar o acontecimento dramático. Mas Meyerowitz podia levar um assistente e foi sob esse «disfarce», que o também cineasta conseguiu «participar».
«Foi como trabalhar num enorme cemitério», lembra agora o homem com 76 anos, duas décadas depois da tragédia. «Estava tudo silencioso e quieto. As conversas aconteciam em sussurros. De vez em quando, ouvia-se uma buzina a tocar e todos tiravam os seus capacetes, porque isso significava que alguém em algum lugar havia encontrado restos humanos», contou Wenders ao jornal britânico.
Wenders passou cerca de seis horas no local. Como sempre, esperava que o próprio espaço lhe revelasse alguma coisa: «Sou fotógrafo de lugares, praticamente nunca tiro retratos», disse o diretor, explicando que sente que «os lugares nos falam sobre nós próprios» e, por isso, enquanto fotógrafo, «se torna um ouvinte».
A determinada altura, conta o cineasta, de repente o sol apareceu no Ground Zero, fazendo brilhar os arranha céus adjacentes: «Joel, que já lá estava há semanas, disse-me que desde o acontecimento que nunca tinha visto o sol brilhar assim no local ao qual chamava de ‘buraco do inferno’», relembrou Wenders. Nesse momento sentiu uma coisa «inacreditável»: «Era como se o lugar nos estivesse a falar de uma cura em vez de perpetuar essa loucura e o derramar mais sangue», explicou.
E o seu trabalho fotográfico é discutido numa altura em que os talibãs voltam a apoderar-se do Afeganistão, «um novo capítulo arrepiante que começou no 11 de Setembro». Nesta altura, apesar de partilhar do sentimento geral de que estamos perante um recomeço de uma história «absolutamente horrível», Wenders diz acreditar que «os ataques do 11 de Setembro poderiam ter levado a história por um caminho diferente, longe do ciclo interminável de guerra, imperialismo e interesse próprio». «Assisti a alguns cultos em que participaram todas as religiões do mundo», elucida. «Durante algum tempo pareceu que esse evento poderia ter um efeito catártico incrível. Bush poderia ter se tornado um defensor da paz se não reagisse com a velha e pior reação que pode existir – a vingança», admitiu.
The Land of Plenty
Em vez disso, a história tomou um curso mais sombrio – o caminho das ‘duras mentiras’ – como diz Wenders.
Depois das fotografias, a resposta seguinte por parte de Wenders ao 11 de Setembro foi o drama de 2004, The Land of Plenty, em português Medo e Obsessão. O filme conta a história de dois personagens opostos que vivem em Los Angeles. Um deles é Paul, interpretado por John Diehl, ex-veterano do Vietname obcecado com a ideia de defender o seu país a todo custo, e o outro é sua sobrinha Lana (Michelle Williams), que viveu na África e na Europa e voltou a Los Angeles para liderar uma batalha de solidariedade em favor dos sem-abrigo. São duas personagens que, apesar do seu grau de parentesco, estão em polos opostos: mental e politicamente. Paul recorre às ruas de Los Angeles com um equipamento moderníssimo para intercetar comunicações em busca de árabes – que para ele são todos terroristas – enquanto Lana ajuda a servir comida aos indigentes.
Depois de terem assistido ao assassinato de um jovem paquistanês decidem entregar o seu corpo à família e é precisamente esse acontecimento que leva Paul a reavaliar as suas crenças relativamente ao povo muçulmano.
«Paul é mais uma vítima do sistema. Arriscou a vida no Vietname e, ao voltar da guerra, descobriu que o povo do seu país tinha horror aos veteranos, alguns dos quais haviam cometido delitos horrendos contra os direitos humanos», explicou Wenders, em 2004.
Terminando com a dupla olhando para o Ground Zero, o filme foi a sua tentativa em trabalhar «os seus sentimentos complicados em relação ao país adotivo»: a negligência da América em si mesma e a sua recusa em admitir «qualquer vulnerabilidade». Filmado de forma semi-improvisada em LA e no deserto de Mojave, foi mais uma tentativa de Wenders de «ouvir um lugar».
Um ataque a Bush
Contudo, o filme não foi assim tão bem recebido, tendo sido palco de polémica na 61.ª edição do Festival de Cinema de Veneza (2004), já que o cineasta criticou duramente a «guerra contra o terrorismo» empreendida pelo presidente norte-americano George W. Bush.
Segundo Wenders, em declarações na altura, Bush «é um presidente que repete e repete as mesmas mentiras, e há pessoas, como o meu dentista, que acabam acreditando nelas», defendeu, acrescentando que depois do 11 de Setembro, «o Governo norte-americano declarou a guerra ao terrorismo e, com isso, legitimou-o». E defende que era necessário «combater as causas e não os efeitos»: «Penso no Médio Oriente, mas também nas enormes diferenças que existem entre pobres e ricos! Há uma grande confusão no meio do povo norte-americano e na informação com que lidam. Parece um país de terceiro mundo», exaltou. «O meu filme não é polémico, nem oferece soluções, mas quer colocar em evidência, sob minha ótica de europeu, o atual estado que domina atualmente os Estados Unidos», declarou acrescentando que The Land of Plenty «não é de forma alguma um filme antiamericano, é sim um filme que tenta lidar com muita confusão, dor e paranoia».
Ao The Guardian o cineasta adiantou que ficou orgulhoso quando a Alemanha e a França se recusaram a aderir à invasão do Iraque em 2003, formando o que o New York Post chamou de axis of weasel, em português, o ‘eixo da doninha’. Na época, para mostrar o seu «entusiasmo», Wenders vestia uma camisola que dizia: «Orgulho de ser uma doninha».
Parece óbvio traçar uma linha entre a tragédia de 2001 e a infância de Wenders. Tal como a destruição das Torres Gémeas, a sua casa em Düsseldorf, cidade onde nasceu e cresceu, foi 80% destruída na segunda guerra mundial. Wenders viveu até os seis anos na antiga loja de farmácia do seu avô. Da mesma maneira, que o futuro diretor sonhava com torres sendo atacadas e desabando, também teve uma intuição de que se tornaria «um viajante»: «Não havia televisão e nós nunca íamos ver cinejornais ao cinema. Mas eu conhecia outros lugares por causa de pinturas e fotografias e cedo percebi que o mundo, noutros lugares, era bem diferente do meu. O meu foi, provavelmente, o pior de todos», revelou.