Jorge Sampaio: A pequenina luz bruxuleante

A despedida de Jorge Sampaio teve honras de Estado mas as cerimónias primaram pela simplicidade, marcadas pelas tocantes intervenções dos filhos, Vera e André, e do Presidente Marcelo.   

Sendo das honras de Estado, pautou-se pela simplicidade o funeral do ex-Presidente da República Jorge Sampaio, no passado domingo. Em dia santo, centenas de pessoas marcaram presença em Belém para se despedirem de um dos mais consensuais políticos portugueses. Desde populares ao Rei de Espanha, muitas foram as figuras que, ora através do ecrã gigante no exterior do Mosteiro dos Jerónimos, ora nos seus claustros, fizeram questão de marcar presença na homenagem ao lado da Família: Marcelo Rebelo de Sousa, Eduardo Ferro Rodrigues, António Costa,  Ramalho Eanes, Cavaco Silva, António Guterres, o Rei Filipe VI, de Espanha,  Ulisses Correia e Silva (primeiro-ministro de Cabo Verde), Aniceto Guterres Lopes (presidente do Parlamento de Timor-Leste), os líderes dos diferentes partidos, entre outras personalidades e amigos.

A cerimónia não foi só elogiada pelo olho comum. Também embaixadores – como Francisco Seixas da Costa – fizeram questão de deixar uma palavra positiva: «Se alguma coisa tivesse falhado, se houvesse algum incidente ou um precalço (sic) inesperado, teria sido um ‘aqui d’el-rei’. Como tudo se passou exemplarmente, não é ‘notícia’». Mas é: as cerimónias foram bonitas e impecavelmente organizadas.

Cerca de 300 pessoas circunscreviam, dentro dos Jerónimos, o corpo de Sampaio ao centro da essa. Às 11h00, o Coro do Teatro Nacional de São Carlos e a Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a batuta da maestrina Joana Carneiro, rompem o sepulcral silêncio, cantando e tocando o Hino Nacional. Seguiu-se Sampaio em «voz e imagem», através da visualização do seu discurso de tomada de posse como Presidente da República, em 1996 – momento em que profere a célebre frase: «Não há portugueses dispensáveis, essa é uma ideia intolerável». Depois, mais «voz e imagem»: agora, dos estúdios da CNN, onde, através de um inglês sem-par na política nacional, defendeu a honra portuguesa e apelou à paz no conflito de Timor-Leste. Ainda no contexto timorense, ouviram-se mensagens do ex-primeiro-ministro de Timor-Leste, Mari Alkatiri, e do ex-Presidente da República e Nobel da Paz, José Ramos Horta. Por fim, uma interpretação da música Timor’, dos Trovante, por parte do coro da escola portuguesa de Díli, momento que deixou os filhos de Sampaio – Vera e André – em lágrimas (aquelas que o seu Pai também não poupava). 

Toca a Lacrimosa, de Mozart, e as lágrimas dos irmãos Sampaio encontram algum alento: o suficiente para subirem ao púlpito e, com emoção, inaugurarem os elogios fúnebres. Primeiro a filha, Vera: «O nosso Pai era um homem bom, atento, e disponível. Para quem as pessoas contavam, acima de tudo. Não as pessoas em geral, mas cada pessoa, com nome e rosto, com problemas e aspirações. (…) O nosso Pai não gostava da arrogância e cultivava a humildade. Cultivava a amizade e a coragem porque sabia que, na vida e na política, nada se pode fazer sozinho. (…) Havia, no nosso Pai, uma sabedoria que lhe iluminava os olhos e o tornava confiante no futuro. (…) Dotado de grande sensibilidade, tinha a capacidade de se emocionar, partilhando lágrimas como quem partilha um abraço. E aqui estamos nós, a partilhar, convosco, a emoção do dia mais triste das nossas vidas». Depois o filho, André, agradeceu a presença às figuras – atuais e antigas – de Estado, assim como a Filipe VI – em irrepreensível castelhano – e a todos os seus admiradores espalhados pelo mundo. Contendo as lágrimas, concluiram ambos: «Por último queríamos deixar um profundo agradecimento a nossa Mãe [Maria José Ritta]. Estamos aqui para ti e sempre contigo».

Seguiu-se a declamação do poema Uma pequenina Luz, de Jorge de Sena, dito por Maria do Céu Guerra. Depois, o primeiro-ministro discursa, recordando Sampaio como uma «referência» e alguém que «adorava o debate intelectual». «Culto e informado do que se passava no mundo, foi um político com princípios, exigente. Podemos mesmo dizer: ultra-exigente consigo próprio». Costa, discípulo de Sampaio na política e no direito, não se poupou à pessoalidade: «Nunca esquecerei a deferência do seu trato, as provas de amizade, a atenção afetuosa e vigilante (…). Com a coragem de deixar a emotividade exprimir-se em lágrimas, porque um homem chora quando precisa mesmo de chorar». 

Findo o discurso, os violinos entoam a Cavalleria Rusticana: Intermezzo, de Pietro Mascagni, fazendo prelúdio aos elogios de um grande camarada de Sampaio, hoje na presidência da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues: «É também um momento para lembrar quão afortunado foi Portugal, por ter tido em Jorge Sampaio um dos seus cidadãos mais ilustres e que é, desde há muito, por direito próprio, uma referência política do Portugal democrático».

Interlúdio com Requiem Op. 48: In Paradisium, de Gabriel Fauré, para a entrada do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que, num discurso notável, muniu-se da narrativa do epopeico heroísmo português para elogiar um dos seus «maiores» contribuidores – aquele que agora parte: Jorge Sampaio. «Aqui se fizeram mais de 500 anos de história. Aqui se afirmou e se afirma tanta da nossa História, tanta da nossa cultura, tanto do nosso humanismo, tanto da nossa portugalidade. (…) Aqui amar o que somos é amar pessoas com nome, com rosto, com biografia escrita pelos dramas de todos os dias. Aqui tem sentido evocar alguns dos nossos maiores e agradecer-lhes a vida que deram à nossa vida. Jorge Sampaio é um desses maiores – na História que sentiu, que pensou, que construiu com a suprema delicadeza de quase pedir desculpa por estar a construí-la». «Tomando a lição de Tolentino de Mendonça», Marcelo nota que Sampaio «amou Portugal como algo que, precisamente por estar colocando dentro da História, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos.  Jorge Sampaio não amou Portugal pela força, amou Portugal pela fragilidade. Quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso amor a chama deste é muito mais pura», voltando a Tolentino. «Jorge Sampaio amou Portugal no calor imparável dos seus sonhos de jovem, liberdade, igualdade, democracia, socialismo, universalidade. Amou Portugal na saga do povo timorense, no abraço aos pobres vindos de fora, falando português com os moçambicanos aquando dos ciclones, ou aprendendo essa fala com os estudantes refugiados sírios e, ainda há dias, afegãos. Amou Portugal pela fragilidade e tantas vezes na fragilidade. Mais do que isso: fez dessa fragilidade sua, de todos nós, força sua, nossa, de todos nós». E volta ao heroísmo português, personalizando-o, para concluir, assim, um retumbante e   indubitavelmente histórico discurso: «Nunca quis ser herói, mas foi em tantos e tantos lanços de vida heroico – daquele heroísmo discreto, mais lírico do que épico, mais doce do que impulsivo, firme mas doce. E também por isso, Jorge Sampaio foi um grande senhor da sua e nossa pátria. Foi um grande senhor do seu e nosso mundo. Uma pequenina, mas enorme, luz bruxuleante, que deu vida, que dá vida a Portugal, que vida, e dá vida ao mundo».