Dentro dos círculos de poder em Angola a tensão está no ar e não falta quem esteja a fazer contas à vida. Num momento em que o Presidente João Lourenço parece mais frágil do que nunca, em plena crise económica, com o seu prometido combate à corrupção a ser apontado como um falhanço – ou como manobra de distração, acusam críticos – e a menos de dois meses do congresso do MPLA, todos querem saber o que significa o regresso de José Eduardo dos Santos a Luanda, a bordo de um jato Falcon, seguindo para sua casa no Bairro de Miramar, após um exílio autoimposto em Barcelona.
Ninguém acredita que o ex-Presidente, de 79 anos, por mais traído que se sinta pelo seu sucessor, pense em regressar à vida política. Mas ninguém dúvida do peso que José Eduardo dos Santos, que governou Angola durante quase quatro décadas, ainda mantém no seio do MPLA.
Quer José Eduardo dos Santos pondere uma rutura com a atual direção ou não, durante o mês em que planeia estar em Luanda, o certo é que «todos os descontentes com João Lourenço vão fazer uma romaria a Miramar», assegura o politólogo Olívio N’kilumbu, ao Nascer do SOL. E descreve um partido em luta interna, crispado, quase fratricida, onde «há lourencistas e há eduardistas».
«João Lourenço não está a conseguir unir as elites e os interesses que confluem no MPLA, era suposto conseguir fazer isso», estranha N’kilumbu. «Se não conseguir unir o partido no congresso de dezembro, então fica visível que José Eduardo dos Santos pode ter de apoiar uma outra figura», avalia. «Isso complica as contas do MPLA, que sempre foi um partido com uma impressionante coesão interna, mas hoje está a viver uma das suas piores crises».
Já o jornalista Rafael Marques, autor de Diamantes de Sangue – Corrupção e Tortura em Angola (Tinta da China, 2011), em tempos ativista contra o regime de José Eduardo dos Santos, chegando a ser preso após o acusar de corrupção, e que hoje é próximo do Governo de João Lourenço, assegura que a relação entre o atual Presidente e o seu antecessor não está tão mal quanto se pinta. «É importante notar que a sua estadia em Barcelona tem sido suportada pela Presidência da República. Se as relações fossem assim tão más não seria assim», salienta.
Quanto a divergências internas no partido governante, Rafael Marques minimiza a questão, recordando que houve momentos piores, como no 27 de Maio de 1977, quando «quase metade do bureau político do MPLA foi fuzilado pela outra parte». Dificilmente se trata de uma comparação confortante.
«O que está a haver agora é uma grande distração, de tricas e intrigas, que em nada abonam para se buscarem soluções para os problemas que Angola enfrenta», sublinha Rafael Marques. «Que têm muito a ver com falta de competência no Governo, continua a ser uma sociedade que não preza o conhecimento».
Seja por causa disso ou não, a crise económica de Angola, que se arrasta desde 2014, com a quebra nos preços do petróleo, e foi agravada pela pandemia, tem vindo a piorar. A taxa desemprego bateu nos 35%, mostram dados recentes do Instituto Nacional de Estatística, com perda de 500 mil empregos só em 2020, afetando sobretudo os jovens, e estando mais de 60% da população a viver na pobreza extrema.
Não é de espantar que a insatisfação cresça, tendo milhares de angolanos saido à rua este sábado, em Luanda, numa manifestação convocada pelo maior partido da oposição, a UNITA, que travou uma longa, sangrenta e intermitente guerra civil contra o MPLA (1975-2002). Sendo que o seu líder, Adalberto Costa Júnior, já chegou a ser apontado como mais popular que o próprio Presidente, numa sondagem do AngoBarómetro de fevereiro. E o descontentamento parece ter-se aprofundado.
Não é por acaso que o tom do presidente do grupo parlamentar da UNITA, Liberty Chiyaka, é quase triunfal quanto às perspetivas para as eleições gerais, que deverão ocorrer em 2022.
«A crise económica e social acentuou-se ao longo dos últimos dois anos, e a esmagadora maioria da população, sobretudo os mais jovens, vêm na UNITA e no seu presidente uma alternativa de governação. Daí esse nervosismo do regime», diz o dirigente, que vê uma ligação entre a quebra de popularidade do MPLA, as suas disputas internas e o regresso de José Eduardo dos Santos, algo «surpreendente, mas não totalmente inesperado».
«Existem várias movimentações, que apontam em dois sentidos», nota Chiyaka. «Uma perspetiva é de aproximação entre o Presidente João Lourenço e José Eduardo dos Santos», continua. «Outro cenário que se coloca é que o ex-Presidente tenha regressado para dinamizar uma candidatura à liderança do MPLA de um dirigente que lhe seja leal».
Lei eleitoral
Caso esse último cenário se verifique, seria o primeiro congresso na história do MPLA com vários candidatos à liderança do partido. Seria um sinal de grande insatisfação interna, avalia Olívio N’kilumbu, resultado da noção da fraqueza eleitoral de João Lourenço.
Aliás, será isso que terá levado os deputados do MPLA a aprovar a proposta de uma Lei de Alteração à Lei Orgânica, que serviria para «legalizar a fraude eleitoral, diminuindo o grau de monitorização eleitoral e aumentando a influência do MPLA no processo eleitoral», resume o politólogo. Face à forte contestação social e da oposição, o Presidente recuou e recusou promolgar a lei.
«Mas a não promulgação da lei é uma faca de dois gumes. Pode significar um recuo estratégico ou uma rutura com o seu MPLA», nota N’kilumbu. «Porque muitas pessoas que trabalharam, deram a cara e assumiram os riscos para aprovar esse documento sentir-se-ão traídas».
Já Rafael Marques considera que a UNITA, que quer ir a eleições junta com Bloco Democrático e o projecto Pra-Já Servir Angola, não é uma grande ameaça MPLA. Mesmo face às mobilizações da semana passada, que a imprensa estatal angolana se recusou a cobrir, dando como motivo agressões a jornalistas por apoiantes da oposição.
«A UNITA sempre teve capacidade de mobilização popular», avalia. «Agora, essa capacidade mostra-se mais ou menos consoante o momento ou a crise política, mas não há nada de novo quanto a isso».
Mas Chiyaka deixa uma ferroada. «Por mais manifestações que o MPLA organize, por maiores que sejam, as pessoas vão condicionadas», acusa o dirigente. «Porque se não aderirem podem sofrer problemas no trabalho, perder privilégios, muitas vezes não é uma adesão consciência».
Corrupção em alta
Por outro lado, não há quem não reconheça que o combate à corrupção prometido por João Lourenço, a grande bandeira nas eleições legislativas de 2017 que o colocaram no poder, não está a correr nada bem.
«A corrupção também é consequência dos nossos níveis extraordinários de incompetência. Porque há pessoas que roubam milhões e milhões de dólares e depois nem sabem o que fazer com eles», queixa-se Rafael Marques, «Se não se reforça instituições do Estado, se o sistema judicial não funciona, pouco ou nada se pode fazer», justifica, notando que «foram 40 anos a estragar o país, não é em quatro que se resolve isso». Mas admite que «mudou-se o Presidente mas não mudou tudo o resto. São os mesmos dirigentes do MPLA, as mesmas pessoas com os mesmos vícios».
Liberty Chiyaka vai mais longe. «Desde sempre que estivemos de acordo que se faça o combate à corrupção. Mas sempre fez alguma confusão como esse suposto combate à corrupção foi desencadeado de uma perspetiva seletiva», acusa o dirigente da UNITA. «Existem muitos, muitos corruptos dentro do regime que andam à vontade, nada lhes é apontado. Vê-se que o objetivo era atingir figuras muito próximas do ex-presidente, e protegerem-se outras figuras».
O politólogo Olívio N’kilumbu concorda. «Todos os Estados que assumiram lutar contra a corrupção, mas mantêm os mesmos regimes, cheios de gente que se engradeceu com a corrupção, usaram-na para afastar adversários».
«Isso aconteceu na China com Xi Jinping, na Turquia com Recep Tayyip Erdogan, na Rússia com Vladimir Putin», enumera. «João Lourenço fez a mesma coisa. Todos os potenciais candidatos a presidente do MPLA, que demonstram alguma capacidade ou perfil para tal, estão com processos sérios no tribunal, isso diminui as suas hipóteses». Ou como se diz na gíria angolana, «têm as caudas presas».