A‘normalidade’, que deixou deste lado do mundo de ser um dado adquirido na manhã de 2 de março de 2020, quando o país confirmou os dois primeiros casos de covid-19, chega a uma sexta-feira, 1 de outubro. Ou o mais próximo que se pode esperar disso nos próximos meses, que vão ser em todo o hemisfério Norte um derradeiro teste de stresse à eficácia da vacinação na proteção dos mais vulneráveis e no controlo de transmissão num contexto de levantamento das restrições. E em que, ainda que com a expectativa de covid-19 mais controlada, os serviços de saúde terão de lidar com a nova doença que há dois anos sobrecarregou cuidados intensivos mais do que qualquer época gripal, com o esperado regresso da gripe e descompensação de doentes crónicos que todos os anos causam períodos de stresse nos hospitais e com outras infeções respiratórias, com maior incidência no inverno – quer porque os vírus ‘sobrevivem’ mais tempo com temperaturas mais baixas, porque está frio e as pessoas se concentram em espaços mais fechados e porque o próprio sistema imunitário fica mais vulnerável nesta altura.
O anúncio da derradeira etapa no desconfinamento, que se cumprirá 578 dias (bons, maus e péssimos) após ter sido confirmada a chegada do vírus ao país, foi feito ontem por António Costa no final do Conselho de Ministros, sem recorrer a termos como ‘libertação’, que chegou a usar, e pondo a tónica na «responsabilidade individual», como tinha recomendado a equipa de Raquel Duarte na última reunião do Infarmed. «Apesar de estamos num início de outono solarengo, vamos ter pela frente o período de invernia», lembrou o primeiro-ministro.
Mas a meta de chegar aos 85% de vacinação, será cumprida, segundo a task-force, na próxima semana e o plano avança com poucos ajustes. «Creio que não dei nenhuma novidade a ninguém hoje», disse António Costa, desviando-se das críticas de Rui Rio, que acusou o primeiro-ministro de eleitoralismo com o timing do anúncio. Costa defendeu que o que tem vigorado são restrições à liberdade individual, que só podem manter-se enquanto forem proporcionais. E já não são. O número mágico são os 85% de vacinação, que o Governo associa à quebra de diagnósticos e internamentos que se tem estado a verificar mas que já foi afastado como patamar de imunidade de grupo. Atualmente, na UE, segundo o último relatório do Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças, Portugal não é o país com menor incidência de covid-19, mas continua com trajetória descendente e o RT nunca foi tão baixo sem medidas mais restritivas em vigor, sendo atualmente de 0,8. Mas os casos de covid-19 estão a baixar ou estáveis noutros países da UE, mesmo naqueles que têm menor cobertura vacinal, à exceção dos países a leste.
Tal como estava previsto, reabrem desta sexta-feira a oito as discotecas (que o Nascer do SOL apurou que deverão ter limitações à lotação) e na maioria dos restantes estabelecimentos a vida volta a ser como dantes, sem os papéis à entrada que ditavam dois ou três clientes de cada vez nos espaços mais pequenos. As máscaras mantêm-se obrigatórias em alguns locais fechados como hospitais e lares e ainda nas grandes superfícies e salas como cinemas, mas o Governo decidiu deixar cair o uso de máscara nos recreios das escolas, sobrepondo-se ao que tinha sido a recomendação da Direção-Geral da Saúde, que tem agora outras decisões em mãos: fechar a revisão do período de isolamento daqui para a frente quando se tem contacto com alguém infetado com covid-19, que vários especialistas defendem que deve ser encurtado, definir em que eventos continuará a ser pedido certificado covid-19 e rever os critérios de testagem – a discussão é entre testar tudo ou testar apenas casos sintomáticos. Os certificados deixam de ser obrigatórios em restaurantes e hotéis mas passam a ser para visitas a lares e doentes nos hospitais. Mantêm-se também obrigatórios no acesso a grandes eventos, com limites a definir pela DGS. O teletrabalho, em que muitos portugueses permanecem desde aquela semana de março de 2020 em que muitas empresas mandaram as pessoas para casa antes de ser decretado o estado de emergência, deixa de ser recomendado. E mesmo as maiores empresas, que já estavam a convocar os trabalhadores, ganham a última luz verde para mandar regressar computadores e funcionários.
«É preciso ter atenção aos outros vírus»
O levantamento das restrições foi consensual na última reunião do Infarmed, sendo Portugal dos países europeus que mantém mais restrições apesar de liderar a nível mundial a vacinação. Pedro Simas, virologista do Instituto de Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, olha para trás e lembra que chegámos ao momento de que falou algumas vezes ao longo dos últimos meses: o vírus tornar-se-ia endémico, não sendo eliminado, e continuaria a circular como os outros coronavírus que o antecederam. Na história contemporânea, foi possível erradicar apenas um vírus por via de uma campanha de vacinação, a varíola, erradicada a nível mundial em 1980.
O poliomielite está quase erradicada (Portugal teve o último caso em 1986) e o sarampo chegou a ser declarado eliminado de Portugal, mas surtos a partir de casos importados voltaram a gerar cadeias de transmissão, embora seja uma doença para a qual uma cobertura de vacinação acima dos 95% em Portugal garantiu aquilo a que tecnicamente chama a imunidade de grupo (há surtos contidos mas não transmissão comunitária e casos sem link epidemiológico, os termos que se tornaram conhecidos com a covid-19). O que tem sido afastado com a covid-19 como também não se alcançou na gripe, dado que as vacinas não protegem 100% de infeção e há casos de reinfeção quer em pessoas que tiveram covid-19 quer em vacinados, o que no sarampo é raro. Sendo ainda mais contagioso do que a variante delta do SARS-Cov-2 (sem medidas ou vacinas, cada infetado pode contagiar 12 a 15 pessoas enquanto na variante delta do Sars-Cov-2 tem sido estimado um R0 entre 6 e 7), a maioria das pessoas só tem sarampo uma vez e as que nunca tiveram estão vacinadas.
«Em relação à covid-19, penso que estamos na situação normal em que o vírus é endémico e se torna um vírus como outros vírus respiratórios que circulam e que provocam na maioria dos casos sintomas de constipação», diz Pedro Simas, sublinhando que a esta altura não está preocupado com a diminuição dos anticorpos detetáveis em pessoas vacinadas, a chamada imunidade humoral, dado que existe também imunidade celular, que vai sendo reforçada, como na gripe, à medida que se contacta regularmente com os vírus, o que já acontecia com os outros coronavírus.
O virologista considera que, em relação ao inverno, a maior preocupação será não tanto a covid-19 mas os outros vírus, que com menos restrições e mais contactos terão mais terreno para circular, podendo haver agora um grau menor de imunidade para os vírus de sempre dado o inverno atípico do ano passado sem casos de gripe detetados.
Além da gripe, Simas alerta para outros vírus respiratórios, cuja circulação já aumentou no verão, como Vírus Sincicial Respiratório, que pode trazer mais complicações a crianças e idosos, devendo os serviços de saúde estar preparados para isso, recomenda. Desaconselha no entanto uma vacinação em massa, quer contra a covid-19 quer contra a gripe, que pode ser «contraproducente» por pressionar o vírus, defendendo que se devem proteger os grupos de risco.
Do que foi anunciado pelo Governo, Simas considera que havia condições para desconfinar mais cedo dado que os 85%, significando proteção elevada, não mudarão nada de um dia para o outro, e considera ue a esta altura certificados digitais, defendendo no entanto que as medidas sejam seguidas. Além do levantamento do uso de máscaras nos recreios, considera que também o uso de máscaras nas salas de aula poderia ser levantado, estando a maioria dos jovens vacinados. Já nos lares e hospitais, considera que o uso de máscaras, pelo menos sazonalmente, vem para ficar. «Temos de nos mentalizar que o vírus vai circular mesmo na população vacinada e isso é essencial para a ecologia do vírus e para ir criando imunidade, temos de transmitir às pessoas que isso é o normal, sendo necessário manter a vigilância dos mais vulneráveis, mas neste momento podemos falar de voltar à normalidade».