Numa reentrância de difícil acesso da gruta de Lascaux que é conhecida como ‘O Poço’ encontra-se um dos mais misteriosos desenhos alguma vez feitos pelo homem. Um desenho tosco, mas também por isso dotado de um especial poder de sugestão.
Quando pensamos em Lascaux, o que nos vem de imediato à mente são possantes touros e cavalos pintados em tons terrosos. Mas o que temos aqui é uma estranha cena de um homem derrubado por um bisonte. Em cima de um poste há um passarinho e, à esquerda, vemos um rinoceronte a afastar-se. Tudo representado apenas com traços negros, como se tivesse sido feito por uma criança com um lápis grosso.
O bisonte parece ter uma lança atravessada e uma massa pende-lhe do ventre. O homem não é um homem qualquer. Já lhe chamaram homem pássaro, por causa do bico no rosto, mas há outras singularidades. Apesar de a sua situação parecer desesperada, exibe uma proeminente ereção! Além disso é extremamente comprido, esticado ao ponto da caricatura.
«O bisonte está literalmente eriçado de furor, com a cauda levantada e as entranhas a derramarem-se com pesadas volutas entre as suas pernas», descreveu Georges Bataille n’O Nascimento da Arte, o livro que dedicou a Lascaux. «O homem está nu e é itifálico; um desenho de feitura pueril fá-lo ver deitado ao comprido, como se acabasse de ser atingido de morte; os braços estão afastados, as mãos abertas (e não têm mais do que quatro dedos)».
O Nascimento da Arte resultou de uma visita que Bataille fez àquela gruta em 1955. Já foi notado que o título é altamente enganador. Os especialistas estimam que as pinturas da famosa gruta datem de há cerca de 17-19 mil anos.
Se tivermos em conta que a obra de arte mais antiga que se conhece na Europa é de há 35 mil-40 mil anos (o homem-leão de Hohlenstein-Stadel), perceberemos que a arte de Lascaux não estava exatamente na infância. Mais: em dezembro de 1994, cerca de 50 anos depois da visita que deslumbrou Bataille, seria descoberta a gruta de Chauvet, cujas pinturas se estima que tenham cerca de 30 mil anos.
Mas se a tese de que assistimos em Lascaux ao ‘nascimento da arte’ fica em xeque, nem por isso algumas passagens deste livro perdem qualquer do seu encanto.
Deixo um exemplo: «Se procurarmos imaginar o que foi para eles esta sala extraordinária [Sala dos Touros], devemos pensar num certo número e nalgumas ocasiões um grande número, de pequenas lâmpadas de gordura feitas numa pedra côncava, com um efeito luminoso que poderia parecer-se com o das velas à noite numa igreja. […] devemos supor que as cavernas pintadas, que não era locais de habitação […], atraíam por causa do natural horror do homem à escuridão profunda. O terror é ‘sagrado’ e a escuridão religiosa; o aspecto das cavernas contribuiu para a sensação de poder mágico, de intervenção num domínio inacessível que era nesse tempo o objecto da pintura».
Voltando ao ‘homem do poço’, muitas teorias foram já avançadas. Seria não um caçador morto, mas um xamã num momento de transe?, questinou H Kirchner? Ao ler Bataille, e olhando para o desenho, ocorreu-me que há vários aspetos intrigantes. Se está morto, pode ter uma ereção? Por que se apresenta tão esquemático e desproporcionado, ao contrário do bisonte, que é fielmente representado? Poderia ser, em vez de um homem mascarado, uma espécie de espantalho? Ou será que o horror que o artista sentiu perante a morte do seu semelhante foi tão grande que teve de distorcer o cadáver de uma forma quase histérica?
Evidentemente estou a divagar… Mas diria que os livros também servem para isso. Não são meros repositórios de informação ou veículos das ideias do autor. São companheiros que ajudam a pensar. E o livro de Bataille cumpre na perfeição esse papel.