Em 1969, o presidente do Barcelona chamava-se Nacís de Carreras e era fanaticamente católico-apostólico-romano e amigo do peito do bispo de Urgel. Jorge incomodava-o.
Não por ser mau jogador, bem pelo contrário, não por ser diligente e trabalhador, que o era e muito, mas porque pertencia às Testemunhas de Jeová. Motivo mais do que suficiente para lhe fazer um risco em cima e tentar ver-se livre dele com a maior urgência possível.
Jorge Mendonça chegara ao Barcelona com aura de um grande. Natural de Angola, nascido em Luanda no dia 19 de setembro de 1938, fazia parte de um grupo de irmãos impactante no futebol português aquando da sua chegada à metrópole.
Com Fernando e João a seu lado, revolucionaram o futebol do Braga desde que desembarcaram no Minho na época de 1957-58. Como do Minho à Corunha é um pulo, e o Deportivo nunca tirou os olhos dos manos Mendonça, foram os três para Espanha. Jorge era, dos três, o mais habilidoso e mais goleador.
O Deportivo era pequeno demais para ele. Não tardou a mudar para o Atlético de Madrid e a tornar-se um herói da ‘aficción. De tal ordem que chegou a ser chamado à selecção espanhola, embora nunca tivesse jogado com a camisola da Fúria. No Atlético fazia companhia ao campeão do mundo brasileiro Vavá na frente de ataque.
Jorge Mendonça era um daqueles príncipes negros que surgem, de vez em quando, nos romances de Henry Rider Haggard, esse fabulista escritor vitoriano. A sua elegância de movimentos, o seu remate poderoso e a forma como voava na área dos adversários como se fosse um Mercúrio de asas nos pés, fizeram dele um ídolo.
«Su zancada, en medio campo, con el balón controlado, era digna de verse, sus pases eran perfectos, su regate seco y su disparo durísimo», recordou um jornalista espanhol do seu tempo. Que concluía: «Foi dos jogadores mais perfeitos que conheci em toda a minha carreira!».
Uma tristeza por dentro
Volta e meia, Jorge Mendonça, que se naturalizou espanhol e passou a ser conhecido por Mendonza, não aparecia em campo. Isto é, ele estava lá, a sua camisola também, mas mergulhava numa abulia que deixava todos em seu redor desesperados. Hoje seria fácil diagnosticar-lhe sintomas depressivos e arribá-lo a doses de quiatipina. Mas cada tempo tem o seu tempo. Jorge entrava em campo de baixos caídos ao longo do corpo, mergulhado numa tristeza que o consumia por dentro e nem ele próprio era capaz de explicar.
Depois, passava-lhe. E voltava a ser o grande Mendonça, como num jogo para a Taça das Taças -–foi o primeiro português a conquistar o troféu, em 1961-62, na final ente Atlético e Fiorentina (3-0) – frente ao Dínamo de Zagreb, quando depois de já ter feito gato sapato de toda a defesa croata, pegou na bola, fintou três adversários e, à saída do guarda-redes, picou a bola suavemente encaminhando-a lentamente para as redes. Rabos e orelhas, como nas touradas. E o público entrou em massa dentro da arena para carregá-lo em ombros depois dessa perfeita faena.
Jorge Mendonça viveu em Madrid os anos mais felizes da sua vida. E os mais extraordinários da sua carreira de verdadeiro fora de série, certamente um dos mais espetaculares que alguma vez vestiu a camisola colchonera com aquelas riscas brancas e vermelhas que faziam lembrar os colchões de palha de casa dos avós.
A melancolia nunca o abandonou. Ao contrário do seu estilo de jogo, espampanante e alacre, Jorge era um homem introvertido e dado àquele Spleen de Paris de que falava o poeta Charles Baudelaire: «– Quem é então que tu amas, extraordinário estrangeiro?/– Eu amo as nuvens.., as nuvens que passam lá longe… as maravilhosas nuvens!».
Em abril de 1966, o Barcelona abriu os cordões à bolsa e resolveu roubar a estrela mais brilhante do Atlético. Se os críticos apostavam, singelo contra dobrado, como nos livros do Texas Jack, que Jorge Mendonça iria ser, em Barcelona, ainda maior que fora em Madrid, perderam todos os ‘duros’ que tinham nos ‘bolsillos’. Jorge Alberto Mendonça não daquira somente a nacionalidade espanhola; tornara-se num indefetíveis seguidores das Testemunhas de Jeová.
Procurava, muito provavelmente, algum sossego para toda a inquietação que o envolvia, uma resposta aos súbitos momentos de ansiedade que o diminuiam como homem e como atleta. Para Jorge, o seu fracasso em Barcelona teve sempre uma explicação simples: «El presidente era muy católico y me condenó al banquillo por motivos religiosos». Ponto final.
Salvador Artigas era o treinador do Barça quando Mendonça chegou ao clube. Um fraco, pelos vistos. Também foi Jorge que o classificou de forma dura: «Se puso de rodillas!» («Ajoelhou-se!») Perante o poder do presidente, como está bem de ver. Sem saída no Camp Nou, Mendonça mudou-se para o Maiorca. De Bíblia na mão ia de casa em casa, batendo à porta dos candidatos a crentes.
Mas se houve alguém que se recusava a abrir-lhe a porta era o presidente do clube que acumulava salários em atraso: «Tuve que perseguir en coche al presidente del club, Guillermo Ginard, para que me pagase; como en las películas», contou Jorge mais tarde.
Voltou a Angola, já após a independência. Levava consigo ideia para revolucionar o desporto no novo país que bateram de frente contra o muro de uma política demasiado fechada para ele: «Foi o maior erro da minha vida. Mas Angola será sempre a minha terra!».