João Guimarães Rosa, no romance Grande Sertão, Veredas, repete regularmente esta frase: «Viver é muito perigoso».
Ora, estamos hoje a sair de um período onde essa frase ainda fazia mais sentido. As pessoas foram obrigadas a fechar-se em casa, quando iam à rua pareciam fantasmas, de máscara a tapar-lhes a boca e o nariz, evitavam-se umas às outras, os pais deixaram de ver os filhos, os avós de ver os netos.
As cidades transformaram-se em grandes cemitérios, onde os raros transeuntes pareciam sombras furtivas a fugir de uma ameaça invisível. E os poucos carros que circulavam pareciam objetos estranhos.
Pergunto-me se tudo isto teria sido mesmo necessário. Nunca se saberá.
Hoje já não é obrigatório usar máscara na rua e quase todas as proibições decretadas para combater a pandemia foram aliviadas ou mesmo levantadas. Mas continuamos a ver muita gente de máscara na rua e a agir como se nada tivesse mudado. Porque as pessoas interiorizaram o medo. Um medo próximo do terror, que já fez estragos terríveis: conheço pessoas que pareciam saudáveis e vigorosas antes da pandemia e que envelheceram vinte anos nos últimos dois, parecendo hoje frágeis e acabadas. A luta contra a pandemia, quer pelo medo que se instalou, quer pelo isolamento a que obrigou, fez muitas vítimas. E fará muito mais se rapidamente o clima de terror não for combatido.
As pessoas têm de recomeçar a viver. Isto não é vida. Mas a toda a hora vemos médicos na televisão a insuflar o medo. A recomendar a continuação do uso de máscara na rua pois, como explicam, «há outras doenças». Mas essas doenças não existiam antes? Surgiram agora?
Tenho chamado regularmente a atenção para os perigos de pretendermos viver numa sociedade assética. «O homem é um ser eminentemente social», escrevia-se num livro outrora obrigatório nos liceus. Acontece que, para vivermos normalmente em sociedade, precisamos de ter resistências aos vírus, às bactérias e aos fungos mais comuns. E essa resistência consegue-se na exposição a esses agentes.
Se vivêssemos numa redoma, não teríamos doenças. Mas no dia em que saíssemos à rua adoeceríamos gravemente.
Já referi várias vezes o exemplo de um senhor das minhas relações que, muitos anos antes desta pandemia, tinha cuidados extremos com a higiene. Quando chegava a casa desinfetava-se dos pés à cabeça e mudava totalmente de roupa.
Pois bem: um dia teve de fazer uma operação relativamente simples, a intervenção correu bem, mas logo a seguir ocorreu uma infeção a que o seu organismo não foi capaz de reagir, a infeção generalizou-se, degenerou em septicemia, e o senhor morreu. À força de tanto se proteger, o seu sistema imunitário era muitíssimo frágil. E à primeira agressão em forma não teve forças para resistir.
O prolongado período de confinamento que vivemos terá consequências do mesmo tipo. O facto de termos vivido muito tempo sem sair de casa, metidos num casulo, de só sairmos à rua mascarados, de lavarmos e desinfetarmos constantemente as mãos, de não apertarmos a mão nem beijarmos ninguém, de mantermos distâncias em relação aos outros, diminuiu-nos muito as resistências. Estamos hoje menos protegidos contra muitos vírus e bactérias do que estávamos antes da pandemia.
E esta é uma situação que teremos rapidamente de resolver.
Assim, embora neste recomeço se imponham algumas cautelas, não podemos pensar que vamos eternamente viver numa bolha, longe das doenças, longe dos contágios. Os nossos sistemas imunitários têm de ser reativados. Temos de nos expor ao risco, como aconteceu desde sempre. Porque só dessa forma nos fortaleceremos. Aqueles que vão à TV aconselhar-nos a continuar a usar máscara na rua, a prolongarmos todos os cuidados e mais alguns, estão a ver a ponta do nariz – não estão a ver o futuro.
Além de continuarem a semear o medo, que já deitou abaixo muita gente, estão a contribuir para eternizar uma situação que pode ter consequências muito graves.
Temos de pensar muito a sério que a proteção excessiva paradoxalmente nos expõe mais ao perigo.
Viver é muito perigoso. E exige criar resistências naturais, expormo-nos às doenças para aumentarmos as resistências.
Assim, é urgente voltarmos a andar de cara destapada, voltarmos a apertar as mãos, a dar beijos, a falarmos com os outros sem medir as distâncias. Se não o fizermos, se seguirmos pelo caminho que pretensos especialistas nos indicam, não teremos defesas para resistir a nada. E num próximo futuro qualquer gripezinha nos deitará abaixo.
P.S. – A respeito do último artigo publicado nesta coluna, sobre a descolonização de Angola, Miguel Caetano, filho de Marcello Caetano, escreveu-me dizendo que – ao contrário do que poderia induzir-se desse texto – o seu pai nunca defendeu para Angola um regime idêntico ao da África do Sul, de apartheid. Tem inteira razão! Defendia uma ‘autonomia progressiva’, com a integração de negros na administração colonial.
Porém, com o agravar da situação (sobretudo no próprio Exército português e na Guiné), o processo teve de ser acelerado, ocorrendo conversas nesse sentido com o governador-geral de então, Santos e Castro. Entretanto acontece o 25 de Abril, e o governador tentará transformar a ‘autonomia progressiva’ em ‘autonomia imediata’, procurando o apoio indispensável da África do Sul. Que lho negou, depois de ouvir os americanos.
Julgo entretanto que, tal como Marcello Caetano, o governador Santos e Castro também não tinha na cabeça uma cópia do regime sul-africano, pensando antes numa integração sucessiva de nativos angolanos no governo local.