“Dez médicos não chegam para a cova de um dente”

Nuno Fachada, diretor clínico demissionário do CHS, insiste que são precisas mudanças na política de recursos humanos. “O problema do hospital vem de décadas de abandono”, acrescenta José Poças, que em fevereiro escreveu uma carta aberta à ministra.

Quando foi inaugurado em 1959, o Hospital de S. Bernardo em Setúbal, foi o primeiro hospital regional do país, substituindo o antigo hospital da Misericórdia. Em 2005, juntou-se ao Hospital Ortopédico do Outão, passando a chamar-se Centro Hospitalar de Setúbal. Serve cerca de 350 mil pessoas mas desde o princípio dos anos 2000 que tem falta de médicos e os dos quadros foram envelhecendo. As queixas somam-se em cada especialidade e eram descritas ponto a ponto num documento assinado em junho de 2020 por alguns diretores e enviado na altura ao Ministério da Saúde e ao Parlamento. Já este ano tinha havido uma carta dirigida à ministra da Saúde sobre o “estado de catástrofe na luta contra a pandemia” no hospital e depois uma moção dos diretores. Nada mudou, segundo os médicos os especialistas têm diminuído ao longo dos anos, pese a entrada de internos; as vagas para recém-especialistas não são todas ocupadas e mesmo médicos que vieram de outros hospitais já pediram entretanto para sair. O recurso a prestações de serviço para assegurar as urgências continuou a aumentar e o novo edifício prometido ao longo dos anos, obras incluídas nos Orçamentos dos Estado de 2020 e 2021 – cujo concurso o Governo garante que será agora lançado na primeira quinzena de outubro – também ainda não saíram no papel, quando o investimento inicial de 1,8 milhões de euros estava inscrito no Programa de Investimentos na Área da Saúde (PIAS) desde 2019. E receiam que agora sirva não apenas para dinamizar as urgências, mas para integrar outros serviços, diminuindo-os.

Fazendo um fast-forward para o presente, depois de queixas reportadas à Ordem dos Médicos, que visitou a instituição, do pedido de demissão do diretor clínico Nuno Fachada na semana passada a que se solidarizaram esta semana 87 de 90 diretores e chefes de equipa, quem viveu as dores da casa nos últimos anos admite que só quer encontrar soluções, mas que as sejam mesmo. E garantias como a de que serão contratados dez médicos, uma das respostas do Ministério da Saúde nos últimos dias, não resolvem a situação quando só em obstetrícia faltam 14. “Não chegam para a cova de um dente, não chegariam sequer para assegurar um dos serviços mais carenciados que temos que é a obstetrícia, por exemplo. Não é nada”, diz Nuno Fachada, sublinhando o que quer dizer com a imagem. “Não digo isto porque queiramos cem, mas porque o que é necessário é uma política de recursos humanos que seja atrativa, nomeadamente para hospitais da periferia, e um financiamento adequado. Se não se altera a política de recursos humanos do SNS e a política de financiamento dos hospitais para a resposta que têm de dar, não vamos a lado nenhum”, resume o médico. Uma das queixas internas é a disparidade no pagamento a tarefeiros e médicos da casa nas urgências, um problema para o qual têm alertado nos últimos anos sindicatos e Ordem.

As críticas que Nuno Fachada fez ao decidir pedir a demissão, foram duras e não se ficam pelo perímetro do hospital, falando de uma orfandade crescente dos doentes também nos cuidados primários, mas pondo a tónica na capacidade e resposta do hospital, que compara a um doente que não recebe o tratamento atempado a uma doença vital. “A covid-19 veio expor ainda mais as fragilidades crescentes a que o SNS está sujeito desde há mais de duas décadas, apesar das alegadas crescentes injeções financeiras sobre o mesmo. O SNS está refém de um aparelho burocrático pesadíssimo e completamente dispensável”, defende. “O peso desse tumor que parasita o SNS está a ser a causa da sua morte lenta e previsível. Assim, se não for feita uma revolução profunda do SNS, iremos ver o mesmo a ser vendido em peças ao setor privado nas suas vertentes lucrativas, ficando as residuais para assistência na indigência ou pouco mais”.

 

Abandono de décadas

José Poças, diretor do serviço de infeciologia do Centro Hospitalar de Setúbal, que já em fevereiro tinha escrito uma carta aberta à ministra da Saúde e que esta semana foi um dos 87 médicos que solidarizou com o diretor clínico, começa também por ir atrás na história, agora que está marcada uma audição do conselho de administração e do diretor clínico no Parlamento para a próxima quarta-feira. “Temos estado entregues a nós próprios. Não estamos envolvidos nisto porque queremos protagonismo, pelo contrário. E havendo diferentes visões em cada serviço, estamos unidos em reconhecer que o hospital está a ficar à beira do abismo, como eu diria que está a acontecer noutros pontos do SNS, mas não conheço nenhum hospital do país, numa capital de distrito, que há 30 ou 40 anos esteja completamente abandonado pela hierarquia”.

José Poças insiste no mesmo: a capacidade de reter e fixar profissionais, dando o exemplo de duas demissões no seu serviço e de internos que à partida irão para fora do país. “A nossa frustração é ver que não deixamos um legado e não o queríamos em nosso benefício: põe em causa a formação médica e a assistência aos doentes. Só não vê quem não quer ver”, atira, continuando com uma das suas incompreensões perante as diferentes queixas que apresentaram ao longo dos anos, interna e externamente, mesmo descontando o momento agudo da pandemia. “Há 20 anos que não vem nenhum ministro ao hospital. Não que seja imprescindível para resolver o problema, mas a vinda de um ministro é um sinal que o Ministério dá de que está interessado em perceber o que se passa. Existe uma chamada de atenção para a situação calamitosa para a situação do hospital e desde então pouco ou nada aconteceu”, resume, deixando também a ideia de que o concurso para contratação de novos médicos, sem mais incentivos que os fixem, podem ter um desfecho: voltarem a ficar lugares desertos.

Questionado sobre as queixas dos médicos que anunciaram o pedido de demissão, nomeadamente quantos médicos faltam neste momento no hospital, nos últimos concursos quantos lugares ficaram por preencher, se considera que será possível contratar os dez profissionais autorizados pelo Governo e qual a despesa da unidade com prestações de serviço, que no caso das urgências a Ordem dos Médicos aponham que cheguem a representar 70% das equipas, o centro hospitalar confirmou apenas que no dia 6 de outubro “recebeu um documento enviado pela Ordem dos Médicos em que alguns clínicos deste hospital manifestam ‘partilhar a sua apreensão’ sobre os motivos que presidiram à tomada de decisão do Sr. Diretor Clínico”, parecendo assim afastar que tenha havido um pedido de demissão. Ao i, José Poças garante que houve e que pode ser clarificado e que foi uma tomada de posição conjunta, não significa abandonar os doentes, mas um grito de alerta. Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, que na quarta-feira teve uma reunião com os diretores, de onde saiu a tomada de posição conjunta, lamenta a desvalorização e alerta que a incompreensão com as queixas, que diz que têm sido recebidas de outros hospitais, pode servir de “rastilho” junto dos profissionais.

Em resposta ao i, o Ministério da Saúde garante que está “naturalmente, a acompanhar a situação, tendo sido entretanto autorizadas, para além dos médicos especialistas contratados no último procedimento concurso (em julho deste ano), contratações nas especialidades de Ortopedia, Ginecologia/Obstetrícia, Anestesiologia, Cardiologia, Pneumologia, Medicina Intensiva e Oncologia Médica”. São assim sete especialidades a reforçar, não sendo referido o número de vagas. A tutela reforça também que o Centro Hospitalar de Setúbal vai lançar o concurso internacional de ampliação durante a primeira quinzena de outubro e a obra, que representa um investimento de 17,2 milhões de euros, deverá estar terminada em 2023, sublinhando ainda que o “Centro Hospitalar de Setúbal e os seus profissionais de saúde mantêm o empenho em prestar os melhores cuidados à população”. Quanto a não ter havido uma visita do titular da pasta em 20 anos ao hospital, como reclamam os médicos, não confirma nem responde se está previsto que venha a acontecer. Para já é o hospital que vai, na próxima semana, a São Bento, após um requerimento urgente do PCP.