Cúmplices do Holocausto. A procura incessante pela “justiça”

O tempo passa, mas a memória não deixa apagar aquela que é considerada uma das maiores atrocidades cometidas contra a humanidade. Já se passaram 76 anos e começou a corrida contra o tempo para encontrar aqueles que a fabricaram e apoiaram, antes que a morte se encarregue de os levar “sem castigo”. 

Podemos dizer que o tempo talvez tenha sido o melhor aliado dos cúmplices do Holocausto: milhares dos rostos responsáveis pelas atrocidades cometidas morreram sem precisar de responder à justiça. Mas e os que restam? Como encontrá-los? De que maneira castigá-los? 

A imagem que nos vem à cabeça quando pensamos nos “assustadores” membros das SS (Schutzstaffel, organização paramilitar ligada ao Partido Nazi), talvez seja a de jovens alemães bem aprumados, ríspidos e inflexíveis. Mas ao longo das décadas essa imagem foi cedendo o lugar a uma outra menos estilizada.

Agora, os cabelos loiros foram substituídos pelos brancos que refletem o cansaço do tempo, as caras são tapadas nos tribunais, as pernas já não têm força e, provavelmente, as mãos já não aguentariam com o peso das armas. Mas há um aspeto que se mantém inalterado: a crença na inocência.

As buscas pelos cúmplices 

Há uma década que o Escritório Central para o Esclarecimento dos Crimes do Nacional-socialismo, com sede na cidade alemã de Ludwigsburg, rastreia arquivos e colhe depoimentos de testemunhas para poder levar a julgamento os cúmplices, agora no fim da vida: guardas sem patente, pessoal administrativo e até secretárias.

Não se trata, pois, de perseguir apenas os que ordenaram os assassínios maciços, que apertaram o gatilho, colocaram os corpos nos fornos, ou prepararam as salas onde milhares de pessoas morreram pela inalação do gás Zyklon B. O objetivo já não é procurar ex-hierarcas do Terceiro Reich, porque a maioria deles nasceu no século XIX e é impossível que ainda estejam vivos… É, sim, encontrar “criminosos secundários”, mas sem os quais o Holocausto não teria sido possível.

Também o Canadá e os Estados Unidos iniciaram diferentes processos legais contra esses funcionários menores.
Efraim Zuroff, coordenador de investigações de crimes de guerra no Centro Simon Wiesenthal de Jerusalém, calcula que podem restar “várias centenas” de pessoas que cometeram crimes durante esse período negro da história: “Muitas delas vivem em países como Alemanha e Áustria, que têm sistemas de saúde muito bons e, portanto, com uma alta expectativa de vida”, explicou ao El País.

Por outro lado, Zuroff, que persegue nazis há 40 anos, perdeu a esperança de que sejam processados os criminosos que participaram no chamado “Holocausto por balas”, o fuzilamento em massa de judeus após a invasão da União Soviética, no verão boreal de 1941: “Ninguém está a fazer nada na Europa Oriental. Não querem processar os seus próprios cidadãos.

As pessoas que ainda podem estar vivas são os verdugos locais, porque os comandantes alemães, que eram mais velhos, já estão mortos. Isso está muito ligado ao facto desses países terem mudado a história do Holocausto na Segunda Guerra Mundial. Não negam o Holocausto, mas sustentam que foi uma questão exclusiva dos alemães, quando na verdade houve muita colaboração local”, elucidou. Entretanto, Zuroff acredita que os movimentos judiciais que têm sido realizados “mostram que a esperança de encontrar justiça para as vítimas não está perdida, principalmente na Alemanha”.

Também Devin Pendas, professor de História do Boston College e especialista na perseguição aos nazis no final da guerra, disse, ao mesmo jornal, “que é muito difícil saber em quantos países os criminosos que fugiram das ruínas do Terceiro Reich se refugiaram, e ainda mais saber quantos podem estar vivos”.

“Embora tenham escapado, espalhando-se pelo mundo, a maioria ficou na Alemanha, principalmente os criminosos de menor escalão”, explicou. Será aí, portanto, que aparecerão novos casos nos próximos anos, “embora a possibilidade diminua cada vez mais com o passar do tempo”.

O vigilante de Sachsenhausen

Os especialistas são unânimes: trata-se de uma corrida contra o tempo. Em fevereiro, a Procuradoria de Neuruppin apresentou formalmente a sua acusação contra um homem de 100 anos, antigo guarda do campo de concentração de Sachsenhausen, a 35 quilómetros de Berlim. Trata-se de Josef S., que se encontra atualmente a ser julgado por ser considerado “cúmplice do assassínio de 3.518 pessoas entre 1942 e 1945, anos em que trabalhou no campo”.

Pouco tempo depois, a Procuradoria apresentou outro caso de acusação contra Irmgard F., uma mulher de 96 anos que foi secretária do comandante do campo de concentração Stutthof, perto de Gdansk, na Polónia ocupada pelos nazis.

O julgamento de Josef S., atualmente a pessoa mais velha a ir a julgamento pelos crimes cometidos pelo regime nazi, começou na passada quinta-feira, 7 de outubro. De acordo com a Deutsche Welle, desempenhou o cargo de guarda numa torre de vigia do campo, tendo começado a exercer funções aos 22 anos de idade. Está acusado de ser cúmplice no assassínio de prisioneiros de guerra soviéticos e de prisioneiros envenenados com o gás tóxico Zyklon B. A acusação refere ainda que os prisioneiros do campo foram levados à morte através da “aplicação e manutenção de condições desumanas”.

O homem de 100 anos chegou ao tribunal de cadeira de rodas, com uma pasta com a qual tapou o rosto. O réu, que vive na área de Brandenburgo, nunca falou publicamente sobre as acusações de que é alvo. Antes do julgamento, uma equipa médica concluiu que, apesar da sua idade avançada, tem condições para falar perante o tribunal. No segundo dia de julgamento, Josef S. quebrou o silêncio e afirmou perante o juiz que está “inocente”. No processo, que deverá durar até janeiro, estão previstas 22 sessões, cada uma das quais não poderá ultrapassar as duas horas e meia.

No tribunal em Berlim, durante o julgamento, estiveram ainda presentes tanto familiares de vítimas do campo de concentração, como também pessoas que passaram por Sachsenhausen. “É o último julgamento para os meus amigos, conhecidos e entes queridos que foram assassinados”, disse Leon Schwarzenbaum, um sobrevivente do campo de concentração, de 100 anos de idade, citado pela BBC. “São muitas emoções. Não consigo falar”, disse à Reuters Antoine Grumbach, de 79 anos, filho de um combatente francês que morreu em Sachsenhausen.

A secretária do comandante das SS

Quanto a Irmgard Furchner, deveria ter começado a ser julgada no dia 29 de setembro. Contudo, a ex-secretária do comandante das SS, que se encontra a viver num lar de idosos, em Itzehoe, a norte de Hamburgo, apanhou um táxi e fugiu. Depressa as autoridades alemãs emitiram um mandado de detenção contra a mulher de 96 anos, conseguindo apanhá-la poucas horas depois em Hamburgo. O início do julgamento foi adiado para 19 de outubro.

Furchner, que começou a trabalhar como secretária de Paul Werner Hoppe, um comandante das SS, com 18 anos, está acusada de cumplicidade no assassínio de milhares de prisioneiros no campo de extermínio de Stutthof, na Polónia ocupada.

De acordo com a acusação, entre junho de 1943 e abril de 1945, Irmgard Furchner “ajudou os responsáveis do campo no assassínio sistemático de prisioneiros judeus, partisans polacos e prisioneiros de guerra soviéticos” através do seu papel de estenógrafa e secretária do comandante do campo, responsável por emitir ordens de execução ou enviar prisioneiros para Auschwitz. Furchner está acusada de ser cúmplice na morte de 11.412 pessoas. Segundo a Der Spiegel, transcreveu ordens de execução ditadas pelo comandante Paul Werner Hoppe, condenado em 1955.

As mulheres no terceiro reich 

Na realidade, o seu caso é insólito, primeiro porque pouquíssimas foram as mulheres julgadas e depois, porque na época, Furchner era menor. Peter Müller-Rakow, procurador de Itzehoe, afirma que o caso está aberto há cinco anos e precisou de “investigações extremamente complexas”, como a recolha de depoimentos nos Estados Unidos e em Israel.

Já a historiadora Astrid Ley, adjunta da direção do Memorial e Museu de Sachsenhausen, não se lembra de nenhum outro caso de mulheres processadas como cúmplices de assassinato nas últimas décadas. Segundo a especialista, após o conflito foram julgadas por crimes de guerra “apenas” dezenas de guardas de campos femininos como o de Ravensbrücke, já que havia poucas funcionárias.

As tarefas administrativas, por exemplo, “costumavam ser de responsabilidade dos homens, militares da SS, da mesma forma que a vigilância”. Ley diz que tal como os homens que se voluntariavam para trabalhar nos campos, as mulheres preferiam estes trabalhos às fábricas. “Eram mais bem pagos, não havia escassez e ofereciam uma vida no campo, longe dos bombardeiros de cidades, como Berlim e Hamburgo”, elucidou a historiadora ao jornal espanhol.

“Antes de ir não sabiam o que iriam encontrar”, admite Ley, “mas quando viam o que realmente estava a acontecer, muitas ficavam, e não é verdade que eram forçadas, que acabariam internadas caso se rebelassem (como alegaram nos julgamentos). Conhecemos numerosos exemplos de jovens que saíram e não sofreram represálias”, acrescentou. 

O Escritório Central para o Esclarecimento dos Crimes do Nacional-socialismo de Ludwigsburg investigou mais de sete mil casos desde sua criação, em 1958. Porém o foco virou-se para os cúmplices há relativamente pouco tempo. 
“Um erro”, defende Cornelius Nestler, que representou vítimas do Holocausto em vários processos. Segundo este advogado, durante décadas, “o escritório não investigou os colaboradores, os que fizeram parte da máquina do horror nazi”. Prova disso é que até 2011 ninguém havia sido condenado por cumplicidade.

Foi o julgamento de John Demjanjuk, de 91 anos, antigo guarda no campo de concentração nazi de Sobibor, na Polónia ocupada, que “mudou o rumo da história”. Demjanjuk era um simples vigilante voluntário. Foi extraditado dos Estados Unidos, onde se havia exilado, e condenado a cinco anos de cadeia como cúmplice de 28 mil assassínios. Na realidade, não foi provada a sua relação direta com nenhum crime concreto, mas não foi necessário: bastou provar que sabia do horror diário do campo.
 
Culpados ou inocentes? 

E foi assim que se começou a procurar os restantes “culpados”. “Os guardas das SS certificavam-se de que os prisioneiros não escapavam. Se sabiam que ocorriam assassinatos maciços organizados, cometeram um crime ao serem cúmplices”, acredita Cornelius Nestler, comentando o recente caso de Josef S. E o mesmo argumento vale para o caso da secretária de Stutthof: “Se ajudou o comandante a organizar os assassínios, foi cúmplice”.

Contudo, o advogado considera improvável que a mulher seja condenada à prisão. Primeiro, porque se trata de um tribunal de menores (já que Furchner era menor na altura) e, segundo, porque “a menos que os acusados estejam numa excelente forma para sua idade, é complicado que sejam sequer julgados”.
 
A banalidade do mal

A 11 de abril de 1961, 15 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, iniciou-se em Jerusalém o julgamento de Adolf Eichmann, depois de “o arquiteto da solução final” ter sido raptado pela Mossad na Argentina e levado para Israel. O julgamento foi intensamente mediatizado e quase todos os jornais do mundo enviaram correspondentes para cobrir as sessões, tornadas públicas pelo governo de Israel. Uma das correspondentes presentes ao julgamento, enviada da revista The New Yorker, foi a filósofa alemã, naturalizada norte-americana, Hannah Arendt.

Foi a filósofa quem, ao analisar aquele homem sentado no banco dos réus, cunhou a expressão de “banalidade do mal” no seu ensaio Eichmann em Jerusalém. Um conceito polémico e controverso, que parece assentar como uma luva aos anciãos processados recentemente. Arendt discutia “a perspetiva do mal provocado por ninguém, ou por pessoas destituídas da capacidade de pensar”. No nazi julgado, via apenas um burocrata zeloso, “incapaz de pensar por si”.

A banalidade do mal é então, para a filósofa, “a mediocridade do não pensar, e não exatamente o desejo ou a premeditação do mal”. Arendt via estas pessoas não como perversas ou doentias, nem sequer antissemitas ou raivosa. Segundo a escritora, apenas cumpriam as regras que lhe eram impostas, incapazes de pensar no que realmente faziam, “mantendo o foco somente no cumprimento de ordens”

Porém, a justiça alemã considera que tanto Josef S. como Irmgard Furchner foram cúmplices de assassínio, tal como considerou Bruno Dey, vigilante do campo de Stutthof, condenado no ano passado, aos 93 anos de idade, a dois anos de prisão pelo tribunal de menores de Hamburgo.

No veredicto contra Dey, a juíza Anne Meyer-Goering respondeu a uma pergunta que surgiu durante o processo: faz sentido perseguir anciãos de 90 ou 100 anos por crimes cometidos há oito décadas, quando eram apenas adolescentes?

“Pessoas muito normais, tal como o acusado, milhares, centenas de milhares, sim, milhões de pessoas muito normais na Alemanha fizeram isto a pessoas muito normais, milhares e centenas de milhares, milhões de judeus, polacos, lituanos, húngaros, russos e dissidentes. Facilmente. Por indiferença. Por sentido de dever. Por uma ordem. Por falta de consciência coletiva e individual”, sublinhou a magistrada, acrescentando que “o acusado não era uma pequena engrenagem, mas sim um ser humano, uma entre centenas de milhares de pessoas que propiciaram e apoiaram os crimes de Hitler. Também não houve uma máquina assassina, mas um assassínio em massa de seres humanos, inventado por seres humanos, organizado por seres humanos e executado com a ajuda de uma multidão de seres humanos”, rematou no veredicto.