Com os casos de covid-19 a mostrar de novo uma tendência de aumento, as infeções respiratórias a subir e o vírus da gripe já a circular no país, especialistas ouvidos pelo i defendem que o uso de máscaras em espaços fechados, aliviado em setembro, deve ser retomado ao longo do outono/inverno. Outra preocupação, diz ao i o presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, prende-se com o facto de as diferentes infeções respiratórias mais comuns nesta época do ano apresentarem sintomas parecidos com os da covid-19, que estão a ser agora menos valorizados.
“Cada vez mais estão a aparecer infeções respiratórias agudas e é natural que apareçam devido também à diminuição das medidas restritivas”, diz Gustavo Tato Borges. “A covid-19 tinha dois sintomas específicos, que eram a perda de olfato e de paladar, que com a variante delta deixaram de ser tão significativos e passou a ser mais frequente o pingo no nariz, a dor de garganta, a dor de cabeça e a dor muscular. Nesta fase, em que estamos ainda com uma situação pandémica, mais controlada mas em que a covid-19 circula ainda com alguma intensidade, é fundamental que cada vez que temos estes sintomas e ao fim de dois dias não passam recorrer à Saúde 24 para fazer um teste”, aconselha, mostrando apreensão com a desvalorização a que se tem estado a assistir. “No ano passado por esta altura já havia muita gente que negligenciava os sintomas porque é o ‘normal’ nesta altura do ano. Este ano isso ainda é mais real e a sensação que temos é que as pessoas estão a assumir com mais frequência que estão constipadas até que algum colega seu, familiar ou um amigo acaba por fazer um teste que vem positivo e aí resguardam-se quando já estiveram muito tempo a passear. Há uma normalização da sintomatologia quando nesta fase era importante que as pessoas se mantivessem mais alerta. Não é preciso fazer testes todas as semanas, mas, quando há sintomas de novo, ao fim de dois, três dias deve fazer-se um teste.”
Para o médico, a normalização, que pode favorecer cadeias de transmissão, resulta da ideia da mensagem transmitida com o alívio de medidas há um mês, de o país ter atingido uma elevada cobertura vacinal e do exemplo que tem sido dado institucionalmente em vários eventos públicos, como nos últimos dias a tomada de posse de autarcas em cerimónias com concentrações de pessoas em espaços fechados sem máscara. “Tudo isto faz com que as pessoas se sintam mais tranquilas e pensem que a pandemia acabou e não assumam a sintomatologia como sendo problemática e isso pode ser importante para a evolução da situação epidemiológica nas próximas semanas”, diz, defendendo que o Governo, o Ministério da Saúde deveriam ter um papel “mais didacta” perante um inverno que em vários países está a ser encarado com preocupação e admitindo desde já a necessidade de reverter o fim de uso obrigatório de máscaras em espaços fechados, seja em locais de trabalho onde ficou ao critério dos empregadores ou cafés e pastelarias, de novo cheios.
“Continuamos a ter de desmistificar porque é que as pessoas não têm de usar máscaras nas discotecas mas têm nas escolas quando nas escolas é que estão bem, estão a proteger-se uns aos outros”, diz. “Sei que alguns especialistas, sobretudo não médicos, têm defendido que é importante para a nossa imunidade o contacto com outros agentes infecciosos e isso é verdade, mas se isso implicar ainda um risco de doença grave para cidadãos mais vulneráveis, seria mais aconselhável manter o uso de máscara este inverno para poder haver uma libertação na primavera em vez de andarmos a jogar um pouco à roleta russa com a vida de pessoas mais vulneráveis, sabendo que além da covid-19 teremos de novo mais casos de outras infeções respiratórias. É fundamental manter o uso de máscara para complementar o trabalho que foi feito com a vacinação.”
Preparar para despistar vírus Filipe Froes, consultor da DGS para a gripe e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos para a covid-19, sublinha que, para já, a vacinação tem permitido que o aumento da incidência não se traduza em mais doentes nos hospitais. Concorda no entanto que é essencial manter a monitorização e, além do SARS-Cov-2, despistar outros vírus, o que habitualmente não é feito, até pelo risco acrescido que existe no cruzamento das várias infeções. “Temos de antecipar uma maior capacidade de testagem para o vírus da gripe, para o vírus sincial respiratório e para o vírus da gripe, de maneira a poder identificar corretamente cada uma das situações e otimizar as intervenções. É preciso ter presente que este ano a gripe poderá potenciar a infeção com o SARS-Cov-2 e a gravidade da covid-19”, diz ao i o médico, salientando que a análise que tem sido feita sugere que a ter gripe e covid-19 ao mesmo tempo duplica o risco de morte. Uma conclusão publicada no Reino Unido, com base em casos de co-infeção detetados entre janeiro e abril de 2020. No último inverno, a gripe foi residual com as medidas contra a covid-19 em vigor e a interação entre as duas doenças acabou por não ser avaliada num cenário, o que agora surge de novo como um risco. Em Portugal foi confirmado laboratorialmente o primeiro caso de gripe do tipo B na segunda semana de outubro, sinal de que a época gripal já começou.
Para Filipe Froes, perante a circulação dos dois vírus é preciso acelerar o reforço com a terceira dose da vacina da covid-19 a pessoas mais vulneráveis, campanha que arrancou na semana passada e decorre agora em simultâneo com a vacina da gripe. Mas de 2,2 milhões de maiores de 65 anos elegíveis para o reforço, só 30 mil estão por agora vacinados. “É nestes grupos mais vulneráveis que vamos encontrar doença grave por isso devem ser a prioridade, mas é preciso também reforçar a vacinação dos profissionais mais expostos. De acordo com a evolução, podemos ter de equacionar outras medidas, nomeadamente uma maior utilização das máscaras. Tem de ser um cenário previsto”, defende Filipe Froes.
Manuel Carmo Gomes considera também que as máscaras deviam fazer parte da rotina este inverno em espaços fechados. O especialista diz que, em relação à covid-19, há uma subida de infeções no grupo etário entre os 18 e os 24 anos, com menor risco de doença grave, sendo mais problemático se se estender aos mais velhos onde tem havido aumentos pontuais com surtos em lares. “Estamos com o RT em cima de 1, com algumas oscilações, o que nos coloca numa situação de limbo”, diz, sublinhando que a variante delta é tão contagiosa como o vírus da papeira ou rubéola, que toda a gente mais tarde ou mais cedo apanha, mas que importa manter controlada para prevenir uma sobrecarga rápida dos serviços de saúde. Em Inglaterra, uma nova linhagem da variante delta (AY.4.2), com nove casos detetados também em Portugal, tem sido associada à subida de casos nas últimas semanas, mas permanece em estudo. “Neste momento os países do Sul da Europa, também pela elevada cobertura vacinal, são os que registam uma incidência mais controlada, quando vemos aumentos na Europa do leste, no Reino Unido ou na Holanda, países onde se aliviaram as restrições e se admitem agora recuos”, aponta. “Não vejo porque é que não devemos aprender com os outros países”, sublinha o professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, considerando que em Portugal, onde houve uma elevada adesão a medidas de controlo da pandemia e há uma elevada cobertura vacinal, não é necessário voltar a impor o uso obrigatório de máscara mas incentivá-lo.