Urgências cheias, com mais doentes graves e horas de espera

Urgências voltam a estar cheias – ontem em Loures doentes urgentes estavam com oito horas de espera. Nos centros de saúde, médicos continuam a ser desviados para áreas ‘covid’ sem ver doentes crónicos, que acabam nos hospitais descompensados.  

7 horas e 55 minutos de espera para doentes urgentes. Ontem ao final da tarde era este o cenário no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures. As urgências em Lisboa têm estado cheias nas últimas semanas, numa altura em que a afluência a nível nacional volta aos níveis pré-pandemia, depois da queda durante o último ano. «Não é covid-19 nem são tanto infeções respiratórias, que estão a começar, mas há uma inversão na tendência com mais doentes e mais doentes graves», explicou ao Nascer do SOL fonte hospitalar. Também no Santa Maria havia ontem quase quatro horas de espera para doentes urgentes, quando o tempo recomendado para ver doentes triados com pulseira amarela são 60 minutos. Os dados de monitorização das urgências, que o Nascer do SOL consultou, mostram que na última semana os doentes não urgentes representaram, a nível nacional, 42% das idas às urgências. Mas há hospitais em Lisboa onde a percentagem de doentes triados como urgentes subiu para 60%, parecendo inverter este ciclo clássico em que muitos doentes que podiam ser vistos fora dos hospitais recorrem aos serviços de urgência.

À percepção de que estão a chegar mais doentes descompensados aos hospitais, sinais de que vem aí uma época com mais infeções respiratórias com o regresso à normalidade e equipas desfalcadas em vários hospitais tem estado a aumentar a preocupação no setor, numa altura em que nos corredores é patente o cansaço e o «mal estar» dos profissionais, com espelho nas greves convocadas pelas diferentes classes. Ao mesmo tempo, a dificuldade em contratar por exemplo enfermeiros para o SNS mantém-se. «Nem enfermeiros em part-time estamos a conseguir contratar», disse ao Nascer do SOL outra fonte hospitalar, admitindo que há vários serviços com a corda na garganta, num problema que se estende a vários hospitais e, no caso dos médicos, é mais sentido em especialidades como anestesilogia e obstetrícia. E estar já no outono com as urgências congestionadas e com doentes (e grávidas) a ser desviados de uns hospitais para os outros é visto como um mau sinal. O problema das urgências, apurou o Nascer do SOL, tem inclusive sido objeto de reuniões com a Administração Regional de Saúde de Lisboa, mas as soluções tardam e a resposta em rede não se vê de imediato: enquanto ontem havia estes dois hospitais com tempos de espera mais elevados, no Amadora-Sintra o tempo de espera era inferior a uma hora, o mesmo por exemplo em S. José. 

Plano outono/inverno com um mês de atraso
No ano passado, o plano para o outono-inverno do Ministério da Saúde foi apresentado a 21 de setembro. Este ano, até esta semana, não tinha sido tornado público e questionada por este jornal, a tutela não deu qualquer previsão. Ontem, apurou o Nascer do SOL, os serviços foram informados que estaria «por horas», mas o tardar da apresentação de uma estratégia é também criticado nos corredores da Saúde. Os hospitais fizeram os seus planos de contingência como habitualmente, no final de agosto foi apresentado uma proposta de referencial numa reunião com as ordens mas não foi posta em marcha nenhuma nova organização para as urgências em articulação com os centros de saúde ou para a recuperação da atividade assistencial não covid, antecipando picos de pressão ou o impacto que isso pode ter no aparecimento de doentes mais descompensados, como os hospitais começam a verificar. 

Nos centros de saúde, essa é a maior preocupação, descreve ao Nascer do SOL Mónica Fonseca, médica de família em Lisboa e dirigente da sub-região de Lisboa da Ordem dos Médicos.

Mónica Fonseca explica que neste momento existe uma assimetria nos agrupamentos de centros de saúde, com uns que mantêm a funcionar as áreas de atendimento a doentes respiratórios (ADR) criadas no ano passado, as chamadas ‘áreas de covid-19’ para onde são canalizadas queixas respiratórias, e outros que as fecharam. 

Nos que as mantêm, os médicos de família continuam a ser desviados do atendimento dos doentes para preencher as escalas dos ADR, em edifícios separados, diminuindo as consultas aos seus doentes. «Se isto continua assim, nunca conseguiremos retomar a atividade assistencial. Neste momento as normas da DGS são para manter os ADR, mas há ACES que não os têm ou encerraram e neste momento penso que com mais de 85% da população vacinada, com equipamentos de proteção, o atendimento devia ser feito nos centros de saúde por forma a podermos acompanhar os nossos doentes», diz a médica, sublinhando que está criada uma iniquidade na resposta aos doentes nas unidade onde os médicos são escalados para as áreas de atendimento respiratório e naquelas que já retomaram o funcionamento normal. 

Para Mónica Fonseca, uma solução seria definir períodos de atendimento para queixas respiratórias nos próprios centros de saúde, com os médicos a ver os seus doentes, chamando a atenção que os sintomas são muito parecidos entre todos os vírus e que uma pessoa pode de resto não ter sintomas e estar infetada. «Temos forma de nos protegermos, não fazemos aeróssois nos centros de saúde, por isso o risco será sempre menor do que por exemplo num hospital.»
Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, admite também muita preocupação com o inverno e defende que a preparação devia ser neste momento a prioridade, criticando também por isso o timing com que esta semana foi apresentada pelo Governo a base de um novo estatuto do SNS. 

Sobre o novo diploma que o Governo anunciou ter aprovado na generalidade em Conselho de Ministros e que vai agora discutir com o setor – e que avança com a criação de uma direção executiva para o SNS, com a criação de Sistemas Locais de Saúde (previstos desde 1999), com duas modalidades de dedicação plena para médicos e promete maior autonomia para os hospitais contratarem e maior participação dos cidadãos,  – Alexandre Lourenço sublinha que, sem conhecer o normativo aprovado pelo Governo, não é possível comentar medidas que não foram «minimamente discutidas no setor». O administrador hospitalar salienta que muito do que está vertido no estatuto do SNS de 1993 «nunca foi posto em prática» e que a proibição de chefes de serviço terem os mesmos cargos no privado já existia, mas não era avaliada. Diz ainda que algumas das medidas anunciadas pelo Governo esta semana poderiam ser implementadas sem um novo estatuto e que é preciso clarificar o papel dos diferentes serviços do Ministério. «Neste momento não existem condições e informação suficiente para discutir o que ali está e seria importante que tivesse havido alguma discussão com o setor sobre estas matérias. Aprovar-se primeiro um diploma e discutir depois com quem trabalha diariamente no SNS é estranho», salienta. «A prioridade para o setor devia ser estar centrado na preparação do inverno e não a apreciar quatro ou cinco propostas que vão ter impacto daqui a dois ou três anos e que a esta altura não se percebe como serão implementadas», afirma ainda. 

Em relação ao inverno, Alexandre Lourenço sublinha que as preocupações maiores prendem-se, mais uma vez, com a capacidade de garantir uma resposta em rede dos hospitais e atuar sobre o problema da descompensação de doentes crónicos, que já antes da pandemia sobrecarregava as urgências e agora surge agravada pela diminuição da resposta assistencial no último ano e meio. «Temos atrasos nos rastreios, os centros de saúde ainda não retomaram totalmente a atividade, há uma diminuição na deteção precoce de doença. Há muito tempo que defendemos que devia haver uma avaliação das áreas mais afetadas e uma estratégia de recuperação, que até hoje não se conhece», diz, chamando ainda a atenção para a necessidade de reforçar os apelos à população sobre a correta utilização dos serviços de saúde nesta altura do ano e o recurso ao SNS24, garantindo que está preparado para responder ao aumento da procura. O reforço da informação à população foi também defendido durante a semana ao Nascer do SOL por Gustavo Tato Borges, da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, que alertou que as pessoas estão a valorizar menos os sintomas.