Depois de várias centenas de veteranos do Ultramar, ex-comandos e ex-paraquedistas terem protestado, no domingo, por terem sido impedidos de cantar “Pátria Mãe”, no desfile da cerimónia do Dia do Exército, em Aveiro, o Presidente da República garantiu que “não houve proibição nenhuma”.
Em declarações ao i, José Rato, um dos administradores da página “Paraquedistas”, diz que está “certo” de que aquilo que “aconteceu visava especificamente o general Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), e o ministro da Defesa acabou por ser vaiado também, mas ‘por tabela’”, enquanto o major-general Carlos Chaves espera “que o CEME tenha caído na real e apresente a sua demissão”.
Relativamente à página “Paraquedistas” do Facebook – facilmente encontrada por meio da pesquisa do username @qnpvsc, acrónimo de “Que Nunca Por Vencidos Se Conheçam”, isto é, o lema dos paraquedistas portugueses –, que “pretende ser, apenas, um espaço de discussão entre o pessoal ativo, inativo ou simplesmente interessado nas Tropas Paraquedistas”, como é possível ler na descrição disponibilizada, José Rato declara que tanto ele como os restantes administradores e membros estão atentos “àquilo que é partilhado nas redes sociais por vários grupos e associações de paraquedistas”.
Assim sendo, entende “que este protesto foi inicialmente motivado por uma diretiva recente do CEME que proíbe os militares das forças especiais de usarem as respetivas boinas fora das unidades específicas dessas mesmas forças, utilizando a boina preta comum a todas as especialidades do Exército” e realça que, no âmbito de comemorações como aquela que decorreu há dois dias, “a diretiva emanada do CEME proibia especificamente – a negrito – a tradicional marcha lenta com canto do Batalhão de Paraquedistas, que é sempre feita no final do desfile, após desfilarem as restantes forças”, sendo que “esta diretiva levou aos protestos que se ouviram”.
Apesar de não conseguir precisar a data em que estes cânticos surgiram, sabe que “Pátria Mãe” é, pelo menos, contemporâneo e “cantado exatamente da mesma forma desde que foi criado” à semelhança dos restantes. “A objeção do general CEME, na nossa opinião, não será tanto com o teor do cântico em si, mas o facto de uma das forças na parada ter um ‘destaque’ em relação às outras, porque esta marcha e cântico surgem habitualmente no final do desfile, sem banda, e encerram de facto a cerimónia”.
“Ó Pátria Mãe / Por ti dou a vida / Há sempre alguém / Que não te quer perdida” é a primeira quadra da letra que os militares teriam cantado oficialmente se não estivesse em vigor esta regra. Devido a esta restrição, tal como àquela que foi implementada acerca do uso da boina, os profissionais em causa decidiram vaiar o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, proferindo frases e expressões como “Palhaço”, “és um vendido”, “vai para casa” e “deixa os homens cantar”.
“Em relação à cerimónia, as opiniões dividem-se entre aqueles que participaram ativamente no protesto e os que se limitaram a entoar o cântico durante o desfile, mas não concordaram com o ruído criado durante toda a cerimónia. Embora todos estejam de acordo em oposição às diretivas do general CEME”, refere, acrescentando que “o general não queria ouvir esse cântico, mas acabou por ouvir o cancioneiro todo”, constata o gestor da página que também pode ser encontrada no Reddit (reddit.com/r/Paraquedistas).
“Esse cancioneiro é ainda hoje distribuído aos recrutas no início da formação militar. As músicas que constam no mesmo são todas ensinadas e cantadas em diferentes estágios da formação, mas em cerimónias é habitualmente cantado o Hino dos Boinas Verdes ou o Pátria Mãe. O Brado é sempre entoado no final de cada dia de instrução do Curso de Paraquedismo e a Prece do Paraquedista é sempre entoada à noite, no final de cada dia de instrução do Curso de Combate – que antecede o Curso de Paraquedismo”, avança, esclarecendo que esta questão foi muito mais abordada, nos órgãos de informação, do que aquela que diz respeito à boina “talvez por ser um assunto extremamente específico das forças armadas e não haver grande interesse da população civil nele”.
Por isso mesmo, José Rato acredita que o protesto que aconteceu “apenas teve este destaque devido ao facto do ministro da Defesa estar presente na cerimónia e as primeiras notícias que foram publicadas identificarem-no como o alvo dos protestos, dando a impressão de que ‘os militares estão contra o Governo’”, frisando que “embora seja um título sensacionalista, não corresponde necessariamente à verdade”.
Até porque salienta que “houve uma ‘mini polémica’ em relação às boinas há algum tempo, quando a GNR adotou boinas verdes no seu fardamento e muitos paraquedistas interpretaram essa decisão como uma ‘apropriação’ de um dos seus símbolos”.
No Facebook, na página “Periquitos-Maçaricos-Checas”, é possível ler comentários de vários membros, em relação a este tema, que remontam ao ano de 2016. “A primeira unidade militar a usar boina em Portugal foram as tropas paraquedistas da Força Aérea em 1955. O Exército só adotou a boina (para as suas unidades de Caçadores Especiais) em 1960”, está escrito na publicação, enquanto na caixa de comentários encontram-se opiniões como “Só lamento que em Portugal se permitisse banalizar uma peça de fardamento que tanto orgulho dá a quem a ganhou com suor, esforço e dedicação. Seja de que cor for ou a que Arma pertença! A boina é um artigo militar e como tal o seu uso só a eles devia pertencer”.
Independentemente das razões pelas quais são convocadas manifestações, indica que “a maioria destes ‘protestos’ são organizados e alimentados nas redes sociais, e a sua dimensão varia sempre do assunto e da tomada de posição de algumas pessoas mais influentes nessas redes”, tendo em conta que “os ex-paraquedistas são notórios por serem extremamente expressivos nas redes sociais e criarem ‘guerras’ e discussões nessas redes, às vezes, sem qualquer razão palpável”, algo que pode ser confirmado em algumas publicações de antigos veteranos paraquedistas e na página do Regimento de Paraquedistas.
“Em termos de simbolismo, consideramos que a boina verde terá tanto valor como os cânticos. Pensamos que apenas terá tido um maior mediatismo agora, pela presença do ministro da Defesa no local”.
“O senhor Presidente mentiu” Marcelo Rebelo de Sousa afirmou, ao ter conhecimento da revolta gerada, que “não houve proibição nenhuma” de cânticos, mas sim “uma orientação” para que não fossem realizados por questões sanitárias “Não houve proibição nenhuma, continuará a haver os cânticos, o que houve foi por razões meramente de medida sanitária nesta cerimónia dada uma orientação para que não existisse. Mas foi nesta cerimónia, não como regra geral, que eu acharia estranho, não faria sentido e felizmente não ocorreu”, explicou o Presidente da República aos jornalistas, falando à margem da cerimónia da Jornada Memória e Esperança, durante a qual foi evocada a memória das vítimas da pandemia de covid-19.
João Gomes Cravinho não reagiu aos insultos, tendo dito apenas que foi “um dia de celebração, de agradecimento. Este foi um ano extraordinário, muito difícil para as Forças Armadas e o Exército” e não respondendo diretamente às questões dos jornalistas.
“Lemos os comentários do Presidente da República a afirmar que a proibição se deveu a razões sanitárias. Relembramos que esta cerimónia se iniciou com o Hino Nacional, e que o próprio speaker da cerimónia convidou ‘todos os militares e civis’ a entoá-lo. É certo que o ato de cantar constitui uma forma de propagação do vírus, mas não nos parece honesto considerar que o risco de um batalhão a cantar é superior ao da totalidade de militares e civis presentes na cerimónia e nas imediações”, na medida em que se sabe que estava a decorrer simultaneamente uma exposição do Exército, com centenas de participantes. “Parece-nos mais uma manobra de ‘damage control’ muito mal executada”.
Nas redes sociais e no mundo da política, as reações não tardaram em chegar. “Não consigo entender o motivo para proibir as tropas especiais de entoarem os seus cânticos guerreiros, com marchas militares impressionantes, e donos de uma convicção militar de exceção. Não se percebe a doutrina nem a exigência agora imposta”, explicou o antigo inspetor da Polícia Judiciária, Francisco Moita Flores, numa publicação veiculada no Facebook.
“Nunca me passou pela cabeça ver os meus camaradas, os meus irmãos paraquedistas, fuzileiros, comandos e de operações especiais inibidos de ostentarem pela voz ou uniforme a condição que tanto sofrimento, abnegação e coragem lhes custou para conseguirem. Vem um homenzinho, um maneirinho dono de uma janotice idiota, investido de poder político, e vai daí inventa”, lamentou Eduardo Manuel Barros Loureiro, membro da Assembleia de Freguesia da Madalena, em Vila Nova de Gaia, eleito pelo “Nós, Cidadãos!”.
O presidente do CDS-PP, Francisco Rodrigues dos Santos, pediu respeito pelas tradições militares, frisando que “não são negociáveis”. “Hoje o socialismo colocou Portugal de luto pelo ataque que fez a todos os nossos militares, onde durante a parada militar as nossas tropas paraquedistas foram impedidas de cantar o seu hino de guerra por este Governo socialista e pelas suas imposições do politicamente correto”, declarou em Portimão, na sessão de encerramento da escola de quadros da Juventude Popular.
No entanto, José Rato não concorda com estes pontos de vista. “Não temos conhecimento de qualquer interpretação política do teor dos cânticos, por parte do ministro da Defesa ou de qualquer membro do Governo. Não quer dizer que não tenha existido, mas não foi a interpretação que fizemos dos acontecimentos, nem vimos essa questão discutida por paraquedistas nas redes sociais”, assinala, adicionando que tem conhecimento de que a diretiva para a cerimónia foi emanada pelo gabinete do CEME, pelo que parte do princípio que o seu conteúdo partiu do próprio. “Essa própria diretiva foi descrita por vários militares no ativo como tendo a proibição expressamente referida a negrito, mas não tivemos acesso à mesma”.
Esta informação vai ao encontro daquela que foi noticiada pelo jornal Público, sendo que este “apurou que o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, apresentou-se na cerimónia como convidado, tendo sido do exército a total responsabilidade pela gestão e organização do evento, nomeadamente pelo facto de não ter sido permitido o hino dos paraquedistas”.
“Tal como no caso dos ex-paraquedistas, pensamos que haverá militares no ativo que encaram esta situação de ambas as perspetivas. Como é óbvio, ao contrário dos ex-militares, os paraquedistas no ativo não podem expressar publicamente a sua opinião”, destaca José Rato, partilhando que quem integra a página “Paraquedistas” pensa que importa referir “que os militares no ativo que participaram na cerimónia fizeram-no exemplarmente, de acordo com as ordens emanadas pelo escalão superior, e completamente alheios aos protestos”.
Mas o major-general Carlos Chaves teve acesso à diretiva e, ainda que a não a possa divulgar, garante que “o senhor CEME, o general José Nunes da Fonseca, tem vindo a limitar, ao longo do tempo, a utilização de características individuais de alguns corpos e tropas”, percecionando que “isto não foi mais do que um passo no sentido de alcançar uma errada uniformidade pretendida para o Exército quando é uma instituição e esta vive dos seus princípios, valores e tradições porque fortalecem as suas convicções”.
Na opinião daquele que é Cavaleiro da Ordem Militar de Avis – que realizou o concurso de ingresso à Academia Militar em outubro de 1971, tendo concluído o curso de Infantaria, como segundo classificado, em agosto de 1975 –, “ao tentar uniformizar, chega-se ao exagero de atingir o coração de algumas unidades. E isto já tinha sido objeto de um despacho a limitar o uso da boina”.
“Esta narrativa tem vindo num crescendo e chega-se a esta situação ridícula. O cântico, tanto quanto eu sei, tem a ver com os cânticos de unidades similares como a Legião Espanhola e a Legião Estrangeira Francesa. Que lá não sofrem qualquer contestação. Quando as coisas atingem uma determinada temperatura, é difícil controlar o ser humano. E, obviamente, que não gostei muito de ver aquilo que aconteceu, mas compreendo. Era uma cerimónia com determinadas características e integrou este tipo de protesto. Mas é razoável face a tudo o que estava para trás”, aclara o profissional que, a 15 de dezembro de 2005, iniciou funções como comandante da Escola da Guarda Nacional Republicana, procedendo a uma modificação das estruturas de formação desta força de segurança e cessando funções volvidos quase três anos.
“Em determinadas alturas, apareceram boinas verdes: estavam lá. Houve um sargento condecorado que levou a sua boina. Aquele hino guerreiro faz parte da marcha dos paraquedistas. Eu não sou um deles, mas sou um militar com quase 50 anos de serviço e habituei-me a respeitar as tradições. E nunca me passou pela cabeça que uma tradição como esta fosse proibida”, confessa aquele que, entre 15 de setembro e 31 de dezembro de 2008, desempenhou as funções de Inspetor da Guarda, nas instalações do Comando-Geral da GNR, tendo sido nomeado comandante do Comando da Doutrina e Formação, órgão superior de comando e direção, entre o ano seguinte e 2010.
“Não tenho conhecimento de outras situações como esta. Vaiar o ministro foi além de tudo o que era razoável. O senhor ministro era um convidado. Perante aquilo que se passou à frente dos seus olhos, ele, a dizer alguma coisa, só podia dizer que até às x horas do dia o senhor CEME teria de pedir a demissão porque não tinha condições para continuar a comandar o exército”, adianta, justificando que “os chefes têm, muitas das vezes, o culto da sua figura e pensam que as coisas não acontecem”, mas observando que “estava em marcha um processo nas redes sociais”, alinhando-se com José Rato.
“E não só valorizaram o facto, por presunção e altivez, como acharam que controlariam tudo. E não houve ninguém que tivesse mão nisto. Espero que o CEME tenha caído na real e apresente a sua demissão. Porque de outra forma passa a ser chefe de uma pequena unidade do exército e não do Exército”.
“Mais importante do que inovar, é preservar. E numa tentativa esdrúxula de inovar, acabaram por não preservar. Estes episódios dão origem a que se oiça as vozes da baixa política. Como é que o presidente do CDS disse aquilo que disse? Pediu a demissão do ministro publicamente. Isto é um problema de organização no Exército e não da baixa política”, critica o major-general.
“O ministro reagiu para além daquilo que eu estava à espera. Só espero que tire as devidas conclusões acerca do CEME. Gostava que ele tivesse noção, a bem do Exército, mas não acredito que pedisse a demissão. Uma marcha é indissociável do cântico”, remata. Por outro lado, dá importância ao contexto socioeconómico vivido atualmente no país, pois, a seu ver, está na raiz este tipo de movimentos.
“Nós estamos num momento particularmente agitado da vida nacional em diversos setores e por diversas razões, mas espero que cada um de nós, a começar pelo simples cidadão e a terminar no supremo magistrado da nação, se comporte com dignidade e contribua para pacificar Portugal. Há todo um ambiente de efervescência. E a presença sistemática do senhor Presidente da República a comentar tudo agita ainda mais as águas. É a minha opinião muito concreta e sincera. Peço que adquira o recato digno de um Presidente. Ele não quer despir o fato de comentador. Até pode sê-lo, mas agora acresce uma função muito mais importante. Não estamos habituados a ter um Presidente comentador. Sai fora dos nossos hábitos”, começa por finalizar Carlos Chaves, notando que ontem “pela primeira vez, o senhor Presidente fugiu dos jornalistas. E isto é indicativo. E no domingo mentiu. E foi à vista de toda a gente. Não há razões sanitárias porque primeiro cantou-se o hino e fizeram-se atividades que estiveram muito além das questões sanitárias. Por favor, digam a verdade. Basta de mentiras! Há documentos escritos que comprovam isto. Outra vez equívocos? Já chega deles”.