Entre muitos lisboetas, a promessa de uma Fábrica de Unicórnios em Lisboa, por Carlos Moedas, autoproclamado “autarca da inovação”, foi recebida com uma mistura de perplexidade e gozo. Os memes sobre o assunto multiplicam-se. O facto é que ainda há muito poucos detalhes concretos sobre o que a proposta significa.
Sabemos que a Fábrica de Unicórnios – ou startup avaliadas em mais de mil milhões de dólares – deve arrancar para o ano, e pretende ensinar aos jovens “qual o processo para fazer uma empresa, o que precisam de aprender em termos de marketing, processos de empresas, gestão de recursos humanos”, descreveu Moedas, terça-feira, na Web Summit, a maior conferência tecnológica da Europa.
O recém-eleito presidente da Câmara vê este como “o primeiro passo” dos seus sonhos para a cidade. Mas afinal, o que é que isso significa? Será algo que pode trazer receita e empregos para a Lisboa? O futuro? Uma ficção? Um golpe de propaganda?
Haverá algum tipo de financimento disponível para startup? Será uma cópia expandida da Startup Lisboa, uma incubadora que oferece espaço, estrutura e mentoria a empreendedores, só que com o nome chamativo de Fábrica de Unicórnios?
Nem sequer entre os néons da Web Summit, no meio da multidão de empreendedores, investidores, gente de fato e gravata, techies, hipsters e voluntários, se encontram grandes certezas quanto ao que poderá ser a fábrica de unicórnios de Moedas.
“Não percebi nada do que é que ele quer fazer cá em Lisboa”, assume Ana Pinto, product owner na Vodafone – jargão para o responsável de maximizar o rendimento em projetos de desenvolvimento de software. “Todo o discurso dele foi muito vago, mas sonante. Da sustentabilidade à inovação, foi à volta disso”, concorda a sua colega, Carla Almeida, gestora de projeto. Não se trata de um veredito positivo para um presidente da Câmara que pretende tornar Lisboa “a cidade que liga os sonhos e os detalhes”, como descreveu o próprio.
“Ele repetiu isso varias vezes”, sublinha Ana Pinto. “Mas faltam os detalhes todos. Isto mandar ideias para o alto, vagas, é bom mas depois não tem detalhes, falta saber o resto. Tem pouco conteúdo”, sentencia a sua colega. Quanto à ausência de referência de Moedas a mecanismos de financimento direto a startups, além da logística, também parece ser outra falha. “Há muita gente com ideias, com skills e falta de capital”, nota Ana.
De facto, “as primeiras rondas de investimento são o mais difícil. Depois de lançados, o resto é muito mais fácil, creio”, concorda Joana dos Santos Afonso, fundadora da Careceiver, uma startup que criou uma aplicação móvel para cuidadores informais. “Passa por tudo o que é gestão de cuidados para pessoas que são doentes crónicas”, explica.
No que toca à Fábrica de Unicórnios, como quase toda a gente, continua a não saber bem o que pensar. “Ainda é um conceito abstrato não é?”, questiona esta enfermeira, que se uniu a um amigo que percebia de informática para fazer a sua aplicação, mais outro para a parte financeira. Talvez lhe tivesse feito falta algo como uma Fábrica de Unicórnios nesse processo. “Se fosse algo no sentido de dar formação, para aqueles que sonham ter a estabilidade que requer uma unicórnio. Aí talvez….”, pondera Joana dos Santos Afonso. Mas não parece muito convencida. “É dar tempo ao tempo”.
Outros são mais entusiásticos. Imaginam que a Fábrica de Unicórnios “seria um apoio, quer financeiro quer tecnológico para as startups, para se transformarem num unicórnio”, descreve Jaime Figueiredo, um estudante que se voluntariou para a Web Summit. “Agora, o que seria o apoio concreto e as etapas a seguir, isso não sei “.
Ao seu lado, Maria Alves, outra estudante voluntária, explica-nos porque aceitaram trabalhar à borla neste evento, organizado por um grupo cujas receitas subiram para 47.9 milhões de euros em 2019. “Como aluna de gestão, obviamente que isto é uma das áreas que me interessa. E é um evento caro, que não é acessível a toda a gente”, salienta. Vê a sua participação como algo que pode potenciar o seu currículo e permitir fazer contactos. Mas quem trabalhou neste género de eventos e conferências sabe como é um trabalho mais desgastante do que seria imaginar, com longas horas de pé ou a andar de um lado para o outro.
“Há cargos aí na FIL em que fazemos quase igual aos que o fazem pago”, nota Alves. “Ou até fazemos mais”, retorque um dos seus colegas. Uns momentos depois, intervém um membro do staff. Aparentemente, os voluntários estão proibidos de falar com a imprensa sem autorização da organização. Após uma espera, com telefonemas para a frente e para trás, lá conseguimos autorização para tal.
Precedentes A ideia de uma Fábrica de Unicórnios não surgiu do nada, mas sim de observar o sucesso de unicórnios portugueses, a Farfetch, Talkdesk, OutSystems, Remote e Feedzai. A expectativa é que Nuno Sebastião, CEO desta última empresa, dedicada a soluções de combate à fraude nos pagamentos eletrónicos, deverá estar na linha da frente da formulação do projeto de Moedas.
A Feedzai soube perceber que, com a transição para um mundo de pagamentos digitais, havia também cada vez maior potencial de fraude ou lavagem de dinheiro – estima-se que só a lavagem de dinheiro movimente mais de dois biliões de dólares, uns 2,5% do PIB global – e que, logo, havia mercado a combater estas práticas. A aposta, com recurso a machine learning e inteligência artificial, valeu à startup uma avaliação acima dos 1,1 mil milhões de euros, sendo que o total dos unicórnios nascidos em Portugal já valem mais de dois quintos do PSI-20, o principal índice da bolsa portuguesa. Se haverá outras startup a seguir os passos destes unicórnios, graças à Fábrica de Unicórnios de Moedas, só o tempo o dirá.
O certo é que, pelo pouco que se sabe da proposta parece-se muito com algo que já existe, a Startup Lisboa, nota Joana Franco, fundadora da Stories Studio, um pequeno estúdio de animação. Aliás, foi neste espaço que começou a sua empresa. Algo como a Fábrica de Unicórnios provavelmente seria “só mais um bocadinho com um nome fancy”, palpita a artista. O que “é fixe”, ressalva.
“Porque nos dão ferramentas que não temos, desde marketing, advogados, contabilidade”, explica. “Mas não é mais do que nós fechados numa sala, a fazer ideias, que é o que nós fazemos no dia a dia, cada um na sua casa. Não dormimos, comemos muitos noodles, é tudo igual”.