Mais doença, maior afluência às urgências, mais mortes. É sempre assim nos invernos, até à covid-19 dominados pela gripe, que abre a porta a outras infeções respiratórias e pneumonias, e pelas consequências do tempo frio, que aumenta descompensação de doença crónica, o risco de AVC e outras doenças agudas com a contrição vascular e a própria circulação de vírus, menos expostos a radiação e com os hospedeiros (nós) tendencialmente mais em espaços fechados. Com a evolução do SARS-CoV-2 para um vírus endémico, o que é normal esperar? O aumento de diagnósticos que se está ver nas últimas semanas já pode ser considerado o comportamento expectável do vírus numa situação de endemia, em que o novo vírus continua a circular sem nunca ser erradicado?
Em vésperas de uma reunião do Infarmed, o virologista Pedro Simas foi categórico: na SIC na segunda-feira à noite, depois de surgir no ar a diretora-geral da Saúde a reiterar que a pandemia ainda não acabou, disse precisamente o contrário, recusou a necessidade de novas medidas e avançou com números: “Sabemos que em média, no mundo, as pessoas contraem duas a três infeções superficiais das vias respiratórias por ano, multiplicado por 10 milhões portugueses, são 20 a 30 milhões de infeções por ano. Se fosse distribuído igualmente pelos 365 dias do ano, que sabemos que não é, são 55 a 82 mil infeções por dia. Sabemos que o vírus da gripe contribui para estas infeções com 5% a 15%, no caso do coronavírus 10% a 15%. O que é normal então é ter pelo menos 5 a 12 mil infeções por dia. Parece muito, seria muito numa situação pandémica, neste momento não é preocupante porque estamos protegidos com a vacina”, afirmou. Ao i, mantém que a covid-19 não está com o crescimento exponencial, clarificando que a comparação é com o inverno passado antes das vacinas, e que o vírus deve circular para se manterem os níveis de imunidade na população, defendendo no entanto que a população mais vulnerável continue a usar máscara.
Ouvidos pelo i, especialistas refutam a ideia de que não está a haver um crescimento exponencial e alertam que, embora com menor severidade do que no ano passado, a pandemia não acabou no mundo, nem em Portugal, que não está “numa bolha”. Com o risco de sobrecarregar os serviços de saúde e prejudicar ainda mais os doentes não covid-19 a justificar “prudência” e manutenção dos cuidados e barreiras que controlem a disseminação da infeção ao ponto de sobrecarregar o SNS.
Como será um inverno normal com covid-19? É cedo para saber, concordam Manuel Carmo Gomes, epidemiologista e professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e Gustavo Tato Borges, vice-presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, rejeitando as estimativas avançadas por Pedro Simas com base nos indicadores de incidência de outros coronavírus com que o Homem convive há séculos.
“Temos doenças endémicas epidémicas e doenças endémicas não epidémicas, por exemplo a gripe e a tuberculose, respetivamente”, começa por separar Carmo Gomes, considerando que no caso das doenças endémicas epidémicas, há uma previsibilidade no seu comportamento, por exemplo sazonal, que na covid-19 ainda não se verificou, com grandes surtos a ocorrer de verão ou inverno.
Além disso, verifica-se um aumento exponencial de infeções, insiste. “Neste momento estamos com um aumento médio de casos de 5% por dia, o que significa que em cada dia há mais 5% de casos do que no dia anterior. Esta é a definição de crescimento exponencial, um crescimento constante, que começa por ser muito suave e depois explode. A covid-19 está em crescimento exponencial desde o princípio de outubro, há cinco semanas e meia, só que agora é que começamos a ver a fase explosiva ”, sublinha.
Aqui há logo uma diferença para a gripe e para outras infeções respiratórias a que estávamos “habituados” no inverno, cuja intensidade de circulação começa mais tarde, em meados de novembro, atingindo um pico no início de janeiro/fevereiro. A nova vaga de covid-19 começou antes da chegada do tempo frio. E a repercussão em doença grave e internamentos, menor que no ano passado, mantém-se maior do que a gripe e dos outros coronavírus que já circulavam.
O vírus influenza nunca foi diagnosticado da mesma forma que a covid-19, com testes tão acessíveis, mas os doentes graves aparecem regra geral nos hospitais e são diagnosticados, diz Carmo Gomes. Neste momento, mesmo com a vacinação, há 80 internados com covid-19 em cuidados intensivos. Na última época de gripe sazonal antes do SARS-CoV-2, 2019/2020, foram hospitalizados ao longo de cinco meses 121 doentes com gripe em UCI e em alguns anos chegam a 200, mas vão pouco além disso. “Até meio de agosto de 2021 tinham sido internadas cerca de 63 000 pessoas com covid-19 das quais 6800 em UCI. Neste momento temos quase 18 300 óbitos. Passou menos de dois anos. A gripe faz isto?”, insiste Carmo Gomes, sublinhando por que motivo é preciso continuar a encarar a doença com prudência e insistir no reforço da vacinação da população em maior risco, maiores de 65 anos. “Vai haver uma altura em que a covid-19 se torna uma doença endémica, epidémica e mais previsível. Neste momento continua a ser imprevisível e não está estável. Todas as doenças que estão entre nós estão entre nós há muitos anos, tiveram muito tempo para estabilizar a sua dinâmica. A covid-19 é uma doença que nasceu ontem, é uma doença bebé. Ainda estamos longe de perceber o que será a sua dinâmica normal. Acho que vai ser uma doença endémica, que poderá ter epidemias sazonais, mas não sei dizer o que poderá ser uma epidemia normal sem estabilizar primeiro, sem percebermos o impacto da vacinação e estamos agora a revacinar porque se percebe que em especial nos mais velhos a proteção diminui rapidamente”, sublinha.
Gustavo Tato Borges é também taxativo: “Ainda estamos em pandemia. Os efeitos na nossa saúde são menores porque felizmente temos uma população que aderiu de forma extraordinária à vacinação, agora em termos epidemiológicos há um aumento exponencial de casos e estamos a assistir a uma nova onda. É necessário continuar a olhar para a doença de forma especial até porque continua a haver a ameaça de novas variantes. Não estamos num planalto de infeções, estamos claramente num crescendo”, sublinha.
Manter estado de alerta Para Tato Borges, há uma falha nas estimativas de Pedro Simas: “Parte do pressuposto de que as 5 mil a 12 mil infeções eram todas diagnosticadas e olha para esta realidade de 2 mil casos por dia como sendo um todo da doença, quando sabemos que encontramos uma percentagem pequena. Além disso, é preciso perceber o que significam esses casos em termos de internamento e sobrecarga nos serviços de saúde. O SARS-CoV-2 não se comporta como os coronavírus que conhecíamos”, salienta.
Admitindo que de uma “perspetiva exclusivamente virológica” possa fazer sentido o que diz Pedro Simas, em termos práticos e populacionais a pandemia continua a ser um problema: “No próximo ano à partida teremos vacinas mais eficazes de segunda geração. O processo natural de tornar endémico um vírus demora muito tempo. Desta vez tivemos a vantagem de união da comunidade científica e farmacêutica no desenvolvimento de vacinas e medicamentos, o que antigamente demoraria décadas. Foi uma mais-valia, mas isso não acelerou o processo de tomar endémico o SARS-CoV-2. No futuro, poderemos vir a ter mais uma etiologia de um síndrome gripal, mas não agora. Daqui, a ano, dois, três, talvez, mas neste momento precisamos de manter um elevado estado de alerta”, apela.
Quanto a medidas, concordam que é importante sobretudo acelerar o reforço da vacina, reforçar o uso de máscara e reduzir lotações, por exemplo em estádios. “Penso que podemos resolver isto sem confinar mas adotando medidas que restrinjam contactos, sem que isso afete muito a nossa vida social e economia”, diz Carmo Gomes, sublinhando que a evolução de doentes em UCI, já acima de 30% da linha vermelha definida para evitar afetar outros doentes e suspender cirurgias, será o indicador mais crítico.